A Mão Que Não Treme

Medico-Maquina

Será um homem bom aquele que for excelente. Esta asserção, bem ao estilo aforístico, a merecer facilmente o nosso concordante balançar de cabeça, já nos traiu em segundos. “Então?”. Então, é que a Excelência como foi largamente pensada por Aristóteles, no seu “Ética a Nicómaco”, é coisa que dificilmente nos assiste. Sobretudo, porque temos hoje um entendimento distinto do que seja a Excelência. Porque transformámos essa remota “ética do ser” numa muito prática “ética do fazer”. Não nos enganemos. Hoje encontramo-nos (perdemo-nos?) noutro nível. Se quisermos, noutro mundo.

Será excelente aquele que funcionar com eficácia. A provocação é de Gonçalo M. Tavares, provavelmente o contemporâneo que, de fora das engrenagens, melhor tem pensado o fundamentalismo da técnica e os seus impactos sociais, éticos e existenciais. Chama-lhe a “ética da máquina”, e acrescenta aos sete mortais pecados um oitavo e maior: a incompetência. [pullquote align=”right”]As primeiras incursões hospitalares dos estudantes de medicina podem ser marcantes, e muitos reconhecerão pelo menos um momento em que se sentiram moralmente constrangidos, no lugar de observadores.[/pullquote]Diz que os valores morais clássicos foram pensados na relação de um homem com outro homem, uma relação direta e imediata, e que rareia. “A lealdade entre dois homens só se poderá manifestar na cidade europeia do século XXI se, pelo menos num deles, existir um conjunto de habilitações técnicas mínimas”. Eis o que fizemos da empatia. No seu romance “Aprender a Rezar na Era da Técnica”, encontramos talvez o paralelo que mais nos interessa e preocupa. O protagonista, um ilustre cirurgião de nome Lenz , para quem a destreza das mãos representa menos um dom posto ao exercício da bondade que uma performance técnica exímia, vive obcecado com o triunfo sobre a natureza, os homens fracos e a doença. Escusado será dizer que Lenz morre, do modo mais indigno que poderia desejar: doente e fraco. “É a terra que te come, e não o inverso”. O desfecho, mais que um golpe de justiça narrativa, recorda-nos de uma certa unidade que não se perdeu, mas se esqueceu – a de continuarmos a ser, contra todas as expectativas, tão incrivelmente frágeis. Naturais.

Apesar do tom hiperbólico de tudo isto, não nos movemos, em essência, longe da realidade. As primeiras incursões hospitalares dos estudantes de medicina podem ser marcantes, e muitos reconhecerão pelo menos um momento em que se sentiram moralmente constrangidos, no lugar de observadores. Construamos um cenário: hospital público, salas de espera apinhadas por pessoas que desesperam pelos seus quinze minutos de atenção. Rostos de mais para o médico comum recordar. [pullquote]O consultório é pequeno para lágrimas. E há mais doentes para orientar, com a precisão de quem não se pode perder. Onde foi que nos perdemos, mesmo?[/pullquote]No consultório, entre médico e doente, um proeminente monitor de computador. Diário clínico a preencher, exames a consultar, requisições a pedir – não sem uma sofrível sucessão de bloqueios do sistema informático, esse indispensável ditador. Pelo meio, uma má notícia, que entre o assomo de procedimentos acaba por ser transmitida com um “e este papel entrega no IPO, de onde a vão chamar para quimioterapia, tem de ser”.  O consultório é pequeno para lágrimas. E há mais doentes para orientar, com a precisão de quem não se pode perder. Onde foi que nos perdemos, mesmo?

Aos iniciados na arte médica, a nós, deseja-se que sejam também iniciados da vida. Que o longo caminho que percorram não os afaste tanto do essencial como os amadureça e fecunde. Que os seus gestos, precisos, também possam tremer – se tremer for o que ainda faz de nós homens. Homens que sejam tão bons como máquinas facilmente serão substituídos. Por máquinas.

(O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.)

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Joana Aguiar ingressou no Mestrado Integrado em Medicina em 2008, na FCM-NOVA, onde frequenta agora o 2º ciclo de estudos. Actualmente é Directora da Revista Frontal, dinamizando a secção Sete Palmos de Testa - espaço que se quer (des)construtivo o bastante que não caiba em gavetas ou rotulações. Francamente interessada em Medicina Holística (particularmente Nutrição, Saúde Ambiental, Psicociências e Comportamento), Filosofia e Literatura, publicou pela primeira vez em 2008 um livro de Poesia, e foi agraciada em 2012 com o Prémio Literário José Luís Peixoto - Poesia.

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