Será desta?

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Muito promete a terapia genética no tratamento das mais diversas enfermidades, desde doenças genéticas, doenças oncológicas, rejeição de transplantes, até àquela que se veio tornar, no século passado, uma das mais graves pandemias da actualidade – a SIDA. Perante todas estas possibilidades, as expectativas são elevadas, a pressa é muita e, à medida que nos vão caindo no colo sucessivos reality checks, a paciência começa a ficar por um fio. Tanto a dos médicos como a dos investigadores, mas principalmente a daqueles por quem de facto a Medicina existe – os doentes. Aquilo que à partida parece um sucesso garantido acaba por se tornar em algo mais semelhante a uma travessia do deserto. CRISPR: será um oásis ou mais uma miragem?

 

Uma short answer cínica ao título deste artigo seria simplesmente remeter o leitor para o link http://en.wikipedia.org/wiki/Betteridge%27s_law_of_headlines. Contudo, dar numa de Velho do Restelo e ficar-se por aqui sem se dar sequer ao trabalho de investigar que descoberta “nova” (já é aplicada desde há dois anos) foi esta é, no mínimo, prova de uma razoável desonestidade intelectual.

 

O que é o CRISPR/Cas9?

O CRISPR/Cas9 é um componente do sistema imunitário das bactérias que lhes permite defenderem-se de ataques por vírus bacteriófagos, descoberto em 2010 na Universidade de Berkeley, Califórnia, e Universidade de Umea, Suécia. Resumidamente, as bactérias possuem segmentos de DNA com repetições de determinadas sequências de bases (as sequências CRISPR – “Clustered Regularly Interspaced Palindromic Repeats”), repetições essas que se encontram intercaladas com sequências complementares com um dado gene viral. A transcrição destes segmentos de DNA originará RNA que se ligará por complementaridade de bases com a sequência do gene viral, sendo que em seguida um par de nucleases Cas9 (“CRISPR-associated proteins”) se ligará às sequências CRISPR que flanqueiam a sequência complementar com o gene viral, “cortando-o” e neutralizando a ameaça representada por este. Em 2013, uma equipa da Universidade de Harvard e outra do Massachussetts Institute of Technology converteram este mecanismo de defesa das bactérias numa ferramenta de edição genómica mais prática do que as anteriormente utilizadas, as ZFN’s (“zinc-finger nucleases”) e as TALEN’s (“transcription activator-like effector nuclease”), já que as últimas envolvem a produção de proteínas diferentes para diferentes segmentos de DNA, um procedimento mais moroso do que simplesmente produzir pedaços de RNA cuja afinidade para com segmentos de DNA será ditada pela complementaridade de bases azotadas, garantindo maior eficácia do processo e menos erros. Desde o seu advento que foi rapidamente adoptada por todo o mundo, aplicada na manipulação genética de diversos organismos e linhagens celulares, humanas e não só, proporcionando um método mais eficiente para criar modelos animais de doenças e para estudar a importância de determinados genes.

 

Less talk, more action, please

Foi apenas no mês de Novembro do passado ano de 2014 que pela primeira vez se aplicou esta técnica a células extraídas de pacientes, em genes com relevância clínica. Particularizando, investigadores do Harvard Stem Cell Institute, Boston Children’s Hospital e Massachussetts General Hospital retiraram o gene que codifica a β2-microglobulina (B2M) de células T CD4+ e o gene do receptor-5 de quimiocinas (chemokine receptor 5 – CCR5) das mesmas células T CD4+ e de células estaminais hematopoiéticas e progenitoras (hematopoietic stem and progenitor cells – HSPC’s) CD34+. A B2M constitui uma cadeia acessória do complexo major de histocompatibilidade humana (major histocompatibility complex – MHC) classe I necessária para a expressão do MHC I à superfície das células, pelo que a sua consequente ablação tem interesse do ponto de vista da imunoterapia e da transplantação. O CCR5, por seu lado, é um co-receptor utilizado  por algumas estirpes de HIV-1 para penetrar nas células T CD4+, cuja haploinsuficiência, ou mesmo ablação, resulta em protecção contra a infecção pelo vírus.

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Inicialmente, tratou-se um grupo de células de cada tipo com uma variedade de gRNA’s direccionados isoladamente tanto para o B2M como para o CCR5, tendo sido ,em seguida, utilizadas combinações de pares de gRNA’s com o mesmo fim, verificando-se maior eficiência. Uma análise por PCR e sequenciação mostrou que havia delecção tanto monoalélica como bialélica tanto para B2M como para CCR5. Em seguida, a equipa cultivou um grupo de HSPC’s tratadas com um gRNA direccionado ao CCR5, um segundo tratado com dois gRNA’s e ainda um controlo durante duas semanas, demonstrando, quer in vitro quer in vivo após transplantação para ratinhos, que o potencial de diferenciação destas células não é afectado pelo CRISPR/Cas9 nem pela ausência do gene CCR5. Por último, recorrendo a análises por sequenciação muito profundas, a equipa verificou também que a taxa de mutações off-target dos grupos tratados com gRNA não diferia da dos controlos por uma margem suficiente para ter relevância estatística, nem mesmo quando se utilizaram dois gRNA’s, à excepção do locus do gene CCR2, homólogo do CCR5.

A equipa mostrou, assim, que o CRISPR/Cas9 teve uma elevada eficiência de delecções dos genes pretendidos em qualquer um dos tipos de células, não alterou o potencial de diferenciação das HSPC’s nas suas diferentes linhagens quer in vitro quer in vivo após xenotransplantação e apresentou uma taxa de mutações off-target muito baixa.

 

E agora?

0008-desventurasSegundo muitos investigadores, o sangue será o primeiro tecido a beneficiar de tratamentos baseados em edição de genoma, pela facilidade de manuseamento: tudo o que é preciso é colher células de medula óssea, editá-las e reintroduzi-las no doente, procedimento que não será tão linear em tecidos ou órgãos sólidos. Protecção contra a infecção pelo HIV e transplantes de células imunitárias/medula óssea para curar toda uma diversidade de doenças genéticas e leucemias são algumas das possibilidades que saltam à vista assim que lemos o artigo da Cell Stem Cell, sendo que o próximo passo da equipa é experimentar o procedimento não em células in vitro mas sim em animais, em colaboração com o Ragon Institute do Massachussetts General Hospital.

Contudo, as aplicações deste método podem estender-se para lá da terapia genética e das células estaminais: um artigo publicado em Janeiro de 2014 de uma equipa do Korea Advanced Institute of Science and Technology anunciou que tinha aplicado esta técnica em bactérias in vitro, conseguindo matar uma e apenas uma espécie de bactérias dentre várias, restando ainda alguns obstáculos no processo que deixam esta potencial aplicação, para já, em banho-maria, a cozinhar expectativas de um dia ser servida (também) como prato principal no tratamento de infecções bacterianas.

 

O autor agradece a cortesia do Dr. Leonardo Ferreira, investigador no Departamento de Células Estaminais e Biologia Regenerativa e no Departamento de Biologia Molecular e Celular da Universidade de Harvard, por tão gentilmente ter disponibilizado o artigo “Efficient Ablation of Genes in Human Hematopoietic Stem and Effector Cells using CRISPR/Cas9”, do qual é co-autor e que serviu de mote ao presente texto.

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As origens do Pedro Vazão Vasques remontam ao longínquo dia de 5 de Junho de 1993, dia em que infligiu os seus primeiros estragos nos tímpanos de um qualquer pobre coitado a estagiar no Hospital D. Estefânia em Pediatria (ele parte do princípio que os profissionais de saúde já não os teriam sequer e portanto não se incomodassem minimamente com os gritos de sofrimento - infligido, e com prazer - soltados pela amostra de ser humano que tinham perante si, mas refere não se lembrar muito bem). Lembra-se, no entanto, que desde pequeno que tem a mania de escrever textos cheios de parênteses, vírgulas e hífens que ficam muitíssimo - também costuma usar palavras acabadas em "íssimo", adjectivos principalmente (também palavras acabadas em "mente"), embora não neste caso - confusos e que precisam de ser lidos 3498498 vezes para se decifrar o que lá está realmente escrito - e ainda seria mais complicado se estivessem a tentar lê-lo não com a letra de computador mas sim com a sua caligrafia singular, que mesmo o próprio, por vezes, interpreta como uma sucessão bizarra de complexos QRS pleiomórficos. Metade de si é desastrada e esquecida, a outra foi entretanto derrubada ou perdida num qualquer canto da cidade de Lisboa, não se lembra bem qual. É garantido, no entanto, que a sua cabeça, neste preciso momento, andará a deambular algures pela Via Láctea, vindo algumas vezes à Terra para estabelecer contactos com a gente que por aqui anda, pôr conversas em dia e consumir as suas drogas preferidas, música e cinema.

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