Uma Faca de Dois Gumes

O conhecimento do que a nossa própria saúde nos reserva será, brevemente, uma realidade. Diagnósticos e comportamentos preventivos entrarão antecipadamente em acção, bem como o nosso lado mais (in)consciente. Portanto, a grande questão que se levanta é: “Será que queremos realmente saber o que está escrito nos nossos genes?”.

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A Fundação Champalimaud lançará, num futuro próximo, um programa de avaliação do risco global de cancro, tendo em conta não só a história familiar da pessoa, mas também o seu comportamento, podendo mesmo ser complementado com a realização de um estudo genético. Deste modo, poderão ser feitas previsões acerca do nosso estado de saúde a longo prazo, dando-nos margem de manobra para tomar as devidas precauções com alguma antecedência, de maneira a que o futuro não seja tão negro quanto isso. No entanto, aqui levantam-se duas questões: se, por um lado, o conhecimento do risco irá facilitar o diagnóstico e poderá ajudar na prevenção, por outro, poderá diminuir a qualidade de vida até ao aparecimento da doença, visto que a pessoa em questão terá sempre em mente que é susceptível ao desenvolvimento de um cancro.

São perceptíveis as razões de se querer realizar este tipo de avaliação – actualmente, metade dos homens e cerca de um terço das mulheres têm ou terão cancro ao longo da sua vida. Esta seria uma oportunidade de tentar descodificar o que a vida nos reserva em termos de saúde. Se as notícias forem boas, o alívio será imediato! Se, pelo contrário, o resultado for desfavorável, a avaliação permitirá uma possível prevenção da doença e um diagnóstico precoce, podendo ajudar tanto na evolução como no tratamento da enfermidade. Contudo, o peso a carregar a partir desse momento assemelhar-se-á, com toda a certeza, à preparação psicológica que antecede um campo de batalha. Todos nós já conhecemos alguém que travou ou trava uma luta contra o cancro e, por isso, sabemos (ou julgamos saber) que é todo um processo doloroso, não só pelas forças que nos escorregam lenta e naturalmente, mas também pela frustração, cansaço psicológico e tratamento, que desgastam até o mais forte dos mortais. Assim, será que a antecipação do que poderá (ou não) vir aí nos deixa mais “aliviados”?

O rosto não consegue esconder a tremenda ansiedade. A avaliação foi finalmente concluída. O resultado? Positivo: há um risco elevado para o aparecimento de um cancro. Mais uma preocupação que não nos deixa dormir descansados. Aparecem as perguntas difíceis. As especulações. O medo. O distanciar dos outros, do mundo e da vida.

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Posto tudo isto, valerá mesmo a pena saber se somos portadores de um gene que predispõe para uma possível neoplasia? Decerto que, se houver algum tipo de prevenção, valerá certamente a pena sabê-lo, e ninguém questionará a utilidade desta avaliação! Caso contrário, a resposta será apenas o caminho para uma estrada de preocupações. A vida será imediatamente conduzida de maneira diferente e talvez até fique como que hipotecada – planos por construir, com o medo sempre presente de que algo mais forte os vá derrubar. Como alternativa a esta conjuntura mais obscura, teremos sempre o carpe diem horaciano, até que algo mais nos impeça de aproveitar o momento; não deixará de ser um bom lema, apesar da natureza consciente do ser humano muitas vezes impedir de o viver, de o concretizar. Seria uma utopia unicamente possível se não houvesse este peso que nos ameaça retirar o bem precioso que é a saúde de um momento para o outro. Portanto, o carpe diem poderá não ser viável e o medo pelo futuro tomará eventualmente o lugar deste. Esta preocupação poderá tomar proporções inimagináveis, impedindo a pessoa de viver a vida tranquilamente, o que será altamente prejudicial, levando-a a sofrer por antecipação e podendo mesmo chegar ao ponto de a tornar hipocondríaca.

Assim, a Fundação Champalimaud tem, entre mãos, uma grande responsabilidade. Tão grande que poderá, de um momento para o outro, mudar a vida de muita gente, tanto para melhor como para pior. Todavia, na verdade, mais do que na Fundação, a responsabilidade reside em cada uma das pessoas sujeitas à avaliação – e, tal como foi dito, há que reflectir acerca dos dois possíveis desfechos desta decisão, porque, afinal, a saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de afecções ou enfermidades”.

Decisão difícil? Sem dúvida! Mas o que dá sentido à vida é o acaso. Afinal, tal como já cantava Doris Day, “que sera sera, whatever will be, will be”

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Isabel Correia Tavares é aluna do 3° ano na FCM-NOVA, onde ingressou em 2012. Proveniente de uma família tradicionalmente ligada à saúde, não degenerou nesse sentido; a originalidade foi escassa e conduziu-a a frequentar o curso de Medicina. As suas origens remontam ao Alentejo, sentindo-se uma privilegiada por ter crescido na bela cidade de Estremoz. Tem cultivado também o gosto pela natureza e pela fotografia, mantendo-se atenta ao que se passa à sua volta; por arte, onde inclui num lugar especial a arte equestre, e, como não poderia deixar de ser, pelas palavras do (e no) mundo e o poder que estas detêm.

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