#4 MUSICOTERAPIA: Mount Eerie – Real Death

Se és como a equipa de redação da FRONTAL e inúmeras vezes, ao ouvires determinada música, especulaste acerca da probabilidade da sua inspiração ter partido algures dos confins do mundo médico, então esta rubrica é para ti. É, portanto, com enorme satisfação que vos continuamos a trazer artigos no âmbito da Musicoterapia – a rubrica musical da FRONTAL onde pretendemos, de forma breve, explorar ou conjeturar acerca das possíveis correlações, das mais óbvias às mais rebuscadas, entre aquela música que não nos sai da cabeça e a Medicina.

Phil Elverum.

Mount Eerie é o projeto musical de Phil Elverum, o qual pediu o nome emprestado a Mount Erie, uma montanha pertencente a Anacortes, Washington, de onde Phil é originário.

Mount Erie, em Anacortes.

Após uma discografia já bem estabelecida, parte sob o nome The Microphones, janeiro de 2017 trouxe mais à tona o nome Mount Eerie – infelizmente, pelas piores razões – com o lançamento do singleReal Death”, que haveria de integrar o álbum “A Crow Looked at Me”, lançado a 24 de março desse ano.

A Crow Looked at Me” é um álbum conceptual com uma premissa devastadora: a morte da esposa de Phil, Geneviève Castrée, que sucumbiu aos 35 anos de idade após batalhar uma doença oncológica durante cerca de 1 ano e meio. Em 2015, 4 meses após o nascimento da sua filha, numa consulta de rotina pós-parto, perante ligeiras queixas de dor abdominal, Geneviève acabou sendo diagnosticada com cancro pancreático em estadio IV, que, mesmo tendo iniciado desde logo quimioterapia agressiva, haveria de determinar a sua morte a 9 de julho do ano subsequente. O álbum foi escrito num período de 6 meses e gravado de forma minimalista, maioritariamente enquanto a filha dormia, no quarto onde Geneviève veio a falecer e com o seu material.

Capa do álbum “A Crow Looked at Me”, de Mount Eerie.

O verso inicial de “Real Death”, no qual Phil constata “Death is real” (passagem que volta a surgir por mais 2 vezes ao longo do álbum), dita o tom e mote de todo este longa duração. Elverum materializou a vivência do sofrimento e morte de Geneviève no álbum “A Crow Looked at Me” de tal forma crua e nua, tão palpável, que ouvi-lo nunca deixa de ser incomodativo e desolador. Ele reproduziu esses meses, não procurando atribuir-lhes qualquer significado, mas simplesmente descrevendo a doença, a morte e o luto; descrevendo os momentos mais banais mas, também por isso, mais reais, como sejam receber encomendas ainda endereçadas à já falecida esposa. Nas palavras de Phil, o álbum nasceu da vontade de “multiply my voice saying that I love her”.

Crusted with tears, catatonic and raw, I go downstairs and outside and you still get mail

A week after you died a package with your name on it came and inside was a gift for our daughter you had ordered in secret

Mas enganam-se se pensam que “A Crow Looked at Me” é “somente mais um álbum sobre a morte”, musa de tantas passagens artísticas. Mais que isso, é um álbum sobre a vida – sobre como viver a morte e viver após a morte. É um álbum todo ele de luto.

Phil e Geneviève, com a filha.

 E o motor propulsor desta tragédia foi um cancro pancreático, praga essa que constitui o 7º cancro mais comum na União Europeia (o 8º nos homens e o 6º nas mulheres). Mas o seu verdadeiro trunfo é a dificuldade de diagnóstico, permanecendo muitas vezes silencioso e passando despercebido até a doença ter atingido um estadio avançado, muitas vezes um estadio IV (representando doença disseminada) – um derradeiro cavalo de Tróia -, altura em que a taxa de sobrevida aos 5 anos é de cerca de 3%.

A sua incidência e mortalidade têm vindo a aumentar significativamente ao longo da última metade de século, o que poderá ser, pelo menos parcialmente, explicado pelo desenvolvimento dos meios de diagnóstico, incluindo métodos de imagem modernos e caros e procedimentos complexos, como CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica), TC (tomografia computorizada), ecoendoscopia, CPRM (colangiopancreatografia por ressonância magnética), ou até punção aspirativa com agulha fina guiada por ecoendoscopia.

O cancro pancreático tem, então, sido associado a numerosos fatores de risco, envolvidos em diversas vias distintas – trata-se de uma doença multifatorial. Os fatores de risco hereditários e genéticos são importantes por poderem potencialmente identificar grupos de alto risco nos quais se poderiam implementar protocolos de rastreio, mas globalmente são os culpados em menos de 10% de todos os casos; ainda assim, mesmo na ausência de uma mutação conhecida, uma história familiar positiva associa-se a um risco aproximadamente 2 vezes superior de desenvolver cancro pancreático. Têm também sido estudados (e confirmados) muitos fatores de risco demográficos, antropométricos, ambientais, ocupacionais, médicos e relacionados com o estilo de vida, a maioria dos quais se associa a um aumento modesto do risco de progressão para a doença, e muitos apresentam baixa prevalência na população em geral. O fator de risco relacionado com o estilo de vida estabelecido com maior importância é, sem dúvidas, o tabaco. O consumo de álcool, apesar de causa comum de pancreatite, associa-se a um aumento “somente” moderado do risco de neoplasia no mesmo órgão. Vários cofatores da síndrome metabólica, incluindo excesso de peso e obesidade, e diabetes mellitus ou outras alterações da tolerância à glicose ou da glicose em jejum, também aumentam o risco. Outras condições médicas que aumentam o risco de desenvolvimento de cancro pancreático incluem história de pancreatite crónica ou colelitíase, infeção por Helicobacter pylori, hepatite B e hepatite C. E, apesar de a evidência neste ponto ser mais limitada, parece verificar-se um aumento moderado do risco associado ao consumo de carnes vermelhas e processadas, e uma redução do risco associada ao consumo de frutas e vegetais e de ácido fólico.

O aumento das taxas de cancro pancreático dever-se-á, então, à combinação de um aumento dos fatores de risco, sobretudo por alterações relacionadas com o estilo de vida, e do desenvolvimento dos meios de diagnóstico. Apesar disso, o envelhecimento da população permanece o fator mais importante que contribuiu para o aumento substancial do número de casos de cancro pancreático nas últimas décadas.

Não obstante a sua preferência por idades mais avançadas, não deixam de existir casos de cancro pancreático de início precoce, em idades jovens (particularmente antes dos 50 anos). Os fatores de risco são semelhantes aos do cancro pancreático de início mais tardio, mas com maior preponderância dos hereditários e genéticos. Tragicamente, é nesses doentes mais jovens que o cancro pancreático amplifica todas as suas características mais alarmantes, não só tendo muitas vezes um comportamento mais agressivo, mas sendo mais frequentemente mal diagnosticado ou diagnosticado ainda mais tardiamente. Mas, independentemente do desenvolvimento da doença numa idade mais precoce ou mais avançada, a sobrevida aos 5 anos é notoriamente pobre, sendo o seu diagnóstico, na esmagadora maioria dos casos, uma notícia de fatalidade iminente.

Ilustração do livro “A Bubble”, da autoria de Geneviève Castrée.

Nos seus últimos meses de vida, Geneviève Castrée, rodeada pela natureza de Anacortes, ilustrou um último presente para a sua filha: o livro de ilustrações “A Bubble” (publicado postumamente). Recorrendo a simples desenhos das duas numa bolha que as protege do mundo à sua volta, a ilustradora retrata as suas rotinas diárias e adaptações à doença através de pequenos momentos que partilha com a sua filha, como sejam tomar o pequeno almoço, dormir a sesta ou desenhar. Contudo, “viver numa bolha” não dura indefinidamente, mais cedo (como foi o caso) ou mais tarde a bolha rompe; ainda assim, neste caso, mesmo tendo rompido no final, estas memórias permanecem como uma recordação para aqueles em luto.

Bibliografia

Maisonneuve P. Epidemiology and burden of pancreatic cancer. Presse Med. (2019), https://doi.org/10.1016/j.lpm.2019.02.030


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