A Cultura do Medo – Parte I

O medo está em todo o lado. Pode surgir sob a forma de um inofensivo brinquedo de criança que chacina inocentemente pessoas na calada da noite. Pode surgir por detrás de uma máscara de palhaço sombria. Pode surgir na cabeça de um escritor que decide passar uns dias num hotel vazio com a família ou numa cassete VHS que ninguém deve ver. Pode simplesmente surgir.

E, apesar de assustar, o medo vende.

A cultura do medo representa uma generosa porção dos mass media. O Halloween tornou-se um evento de culto, os filmes de série B são uma boa opção para as tardes preguiçosas de domingo e multiplicam-se as séries relacionadas com o paranormal. Medo é, segundo o dicionário, o sentimento de inquietação que surge com a ideia de um perigo real ou aparente. É medo o que sentimos quando o telemóvel não está dentro da mala ou do bolso ou quando nos aproximamos da porta onde vamos fazer exame. E, contudo, por que nos sentimos então atraídos por locais assombrados ou por filmes e jogos com assassinos em série? Se o medo é uma reação tão desagradável, por que insistimos em procurá-lo?

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O lugar mais assustador – o cérebro

Uma investigação realizada por Thomas Straube, em 2010, concluiu que, ao visualizar um filme de terror, existe um aumento da atividade no córtex cingulado anterior, porção anterior da ínsula, tálamo e áreas do córtex visual. Este aumento de atividade estará, assim, associado à experiência subjetiva do medo. Adicionalmente, em momentos de ansiedade durante a mesma visualização, existe um aumento da atividade do córtex pré-frontal dorso-medial, área previamente associada à avaliação da significância emocional perante estímulos e situações e que, segundo este estudo, poderá também ser crucial para o “susto” que sentimos durante os filmes de terror. O curioso nesta investigação é que, durante a visualização do filme, não foi detetada atividade na amígdala, o que questiona se esta não terá somente atividade perante ameaças inesperadas e não durante a ansiedade sustida.

Ativação cerebral aumentada perante ameaça vs. clipes neutros de filmes. Ativação demonstrada (A) no córtex cingulado anterior, (B) na ínsula, (C) no tálamo e (D) no córtex visual (Straube, T., et al. Neural Representation of Anxiety and Personality
During Exposure to Anxiety-Provoking and
Neutral Scenes from Scary Movies. Hum Brain Mapp 31:36–47, 2010.)

Em vários trabalhos anteriores, tem sido evidente que a amígdala desempenha um papel importante nas reações do medo – como ao nível do seu reconhecimento e indução de comportamentos relacionados (fugir, gritar, fechar os olhos…). O papel da amígdala é também demonstrável pelo deficit da sensação de medo em pacientes com lesão neste órgão. Assim, paralelamente a esta investigação, Justin Feinstein, no mesmo ano, apresentou, na revista Nature, um caso de uma paciente com lesões focais bilaterais amigdalares que não indiciava sentir medo. A paciente foi exposta a animais que temia anteriormente ao surgimento das lesões (cobras e aranhas), levada a locais que suscitariam medo (Waverly Hills Sanatorium Haunted House) e visualizou diversos clipes de filmes escolhidos para o efeito. Em nenhum dos casos a paciente mostrou ter medo, embora todas as restantes emoções estivessem preservadas. Curioso também é o facto de a paciente ter mostrado grande curiosidade e interesse por todos os estímulos que lhe despoletariam medo, tendo perdido também a capacidade de avaliar o grau de perigo inerente aos mesmos. Cita-se, neste caso, a ocasião em que esta paciente se aproximou demasiadamente de uma tarântula, correndo o risco de ser mordida pela mesma.

Sanatório de Waverly Hills, um dos locais mais assustadores dos Estados Unidos da América

Segundo Mormon e Dubois (2011), os neurónios presentes na amígdala respondem intensamente a estímulos provocados por animais e os neurónios amígdala direita são os que mais evidenciam esta resposta. Mais ainda, o período de latência perante o estímulo provocado pela visualização de animais é mais curto quando comparado com outros estímulos. Contudo, as imagens de animais utilizadas por estes autores continham tanto animais ameaçadores como pacíficos e ambas suscitaram aumento da atividade neuronal. Assim sendo, concluiu-se que a amígdala direita poderá ser responsável pelo processamento evolutivo da informação visual de animais e pela reação de medo seguinte perante os mesmos. Esta teoria parece plausível à luz do evolucionismo, onde o animal representou (e representa) um predador, que o Homem aprendeu a temer ao longo da sua evolução.

Cobra em posição de ataque

Outros estudos referem ainda que crianças e adultos descobrem mais facilmente cobras – sobretudo quando estas se encontram em posição de ataque – e aranhas numa imagem, estando os animais enquadrados no seu meio, do que outros elementos também pertencentes ao mesmo meio, e esta deteção é tanto mais rápida quanto maior for o medo prévio do observador destes animais (Emotion Drives Attention: Detecting the Snake in the Grass, 2001, e Human Young Children as well as Adults Demonstrate ‘Superior’ Rapid Snake Detection When Typical Striking Posture Is Displayed by the Snake, 2011). Esta aprendizagem evolutivamente adquirida faz-nos temer grandes felinos e aracnídeos, tubarões e crocodilos, com os quais raramente nos encontramos, mas faz-nos permanecer impávidos e serenos enquanto comemos uma generosa “francesinha” no Porto ou um naco de toucinho, apesar de estes últimos contribuírem muito mais facilmente para uma morte precoce.

Onde não há imaginação, não há horror.

Sir Arthur Conan Doyle

É assim que o medo de “lobisomens” é facilmente explicado. Trata-se de uma versão deturpada e melhorada de um predador natural do homem – o lobo. Com variantes regionais como o urso-homem na América do Norte, o leopardo-homem em África e o tigre-homem na Ásia, todas estas criaturas resultam de uma incorporação de um predador local facilmente credível em histórias de povoações, resultando numa figura de culto transmitida de geração em geração. (Monsters Evolve: A Biocultural Approach to Horror Stories, 2012)

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B-B-B-Brains

Hipster Zombie

Além de predadores vorazes, cadáveres andantes – ou zombies – são um tema recorrente tanto na literatura como no cinema. Desde há muito que o Homem parece temer ataques dos mortos, razão pela qual são encontrados túmulos fortificados e cadáveres amarrados, não só para impedir furtos de ladrões mais corajosos, como para impedir o erguer daqueles que exalaram o seu último suspiro…

Alguns investigadores do campo da biologia evolutiva e das neurociências propuseram que o nosso horror e repulsa perante cadáveres ou somente pela ideia de os mesmos poderem caminhar livremente entre nós se deve a uma necessidade evolutiva – a de evitar a todo o custo alimentos estragados e infeções. Em 2004, um estudo de Val Curtis, investigador na London School of Tropical Medicine and Hygiene, propôs que as sensações de repulsa, nojo e horror servem como mecanismo adaptativo que controverte o nosso comportamento de forma a evitar a contaminação por via oral e outras vias. Assim, segundo esta hipótese, a sensação de repulsa e horror deverá ser sentida com maior intensidade perante estímulos relacionados com doença do que perante estímulos menos nocivos, independente da cultura ou religião, e mais pronunciada nas mulheres, uma vez que elas protegem tanto o seu corpo como o dos filhos de potenciais infeções. O sentimento de nojo deve ainda diminuir proporcionalmente com o potencial reprodutivo de um individuo e ser mais fortemente sentida no contacto com pessoas estranhas do que com familiares próximos. Esta sensação de repulsa foi associada com um aumento da atividade cortical na porção anterior da ínsula.

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Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

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