Dr Bennet Omalu, o médico que chocou de cabeça com a América

Quais são os efeitos de milhares de pancadas na cabeça? Se fôssemos um pica-pau, estaríamos protegidos pelo nosso osso hióide que rodeia o crânio e funciona como um fixador da cabeça e, portanto, saímos ilesos. Contudo, não somos pica-paus e o nosso osso hióide limita-se a fixar uns quantos músculos do pescoço. O design humano não é, de todo, o melhor na natureza para absorver o efeito de múltiplos impactos no crânio. Ainda assim, gostamos de ver indivíduos a suportar traumatismos cranianos.

Às vezes até lhe chamamos desporto.

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No Natal de 2015 estreou nos Estados Unidos da América o filme Concussion, no qual Will Smith assume o papel do anátomo-patologista Dr Bennet Omalu, o médico que descobriu e caracterizou os efeitos que o futebol americano tem no cérebro dos seus atletas. A FRONTAL dá-te a conhecer esta saga que levantou a incomodativa questão: Qual é o futuro do futebol americano?

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Poster do combate entre dois famosos pugilistas americanos do início do século XX

Primeiro, havia o Boxe. Durante a primeira metade do século XX, os pavilhões desportivos enchiam-se com milhares de pessoas para assistir ao confronto entre dois pugilistas. Este desporto foi perdendo gradualmente a popularidade, ao ser percecionado como algo bárbaro por um número crescente de sectores da sociedade americana. Nos loucos anos 20 já se sabia que o boxe podia levar os atletas à loucura, chamando-se Dementia pugilistica ao conjunto de sintomas que afetaram vários pugilistas profissionais: depressão, demência e agressividade.

Os anos passaram e o futebol americano tornou-se rei. Explicado de forma mais simples possível, o desporto consiste em 11 jogadores por equipa, que competem para avançar a bola ao longo do campo, somando assim pontos. Para impedir o avanço dos seus adversários, os jogadores bloqueiam, chocam, embatem, derrubam. Ocorrem portanto uma série de impactos a alta velocidade. Apesar de nem todos conhecermos as regras, uma coisa sabemos: se o chamado soccer (futebol) é “religião” na maior parte da Europa e América do Sul, o American football é o equivalente nos EUA, sendo componente essencial da cultura americana. Sabemos que o Super Bowl é um dos principais eventos do ano, que famílias e amigos se juntam para ver os jogos e conviver e que os atletas são olhados como heróis nacionais. Um desses heróis foi Mike Webster.

Mike Webster começou a jogar futebol na equipa do liceu. Mais tarde destacar-se-ia na equipa da faculdade, até chegar ao clube onde se tornaria lenda – os Pittsburgh Steelers. Mike ajudou a sua equipa a ganhar 4 Super Bowls, sendo que as suas proezas em campo lhe valeram a alcunha de Iron Mike. Casou e teve quatro filhos. A sua carreira profissional durou cerca de 20 anos, tendo terminado em 1990. Na cena de abertura de Concussion vemos o seu discurso de fim de carreira e na cena seguinte vemo-lo desorientado, sujo, a viver numa carrinha. A que se deveu este declínio? Veremos que o Dr. Omalu foi o único que realmente se preocupou em dar uma resposta completa a esta questão.

Depois da reforma, o Iron Mike começou a ter comportamentos agressivos para com a família, sofreu com uma insidiosa perda da memória e entrou em depressão. Acabou por se viciar em drogas e os seus sintomas progrediram atingindo um estado de demência avançado. Em 2002, aos 50 anos de idade, morreu na miséria.

Ao contrário da ideia que o filme Concussion passa, o Dr. Omalu via televisão: ligava-a todas as manhãs para ver as local news e assim ficar com uma noção de quem ia parar à sua mesa de autópsias. Quando chegou ao seu local de trabalho nessa manhã de setembro, deparou-se com um enorme aparato jornalístico.

“É o Mike Webster, Mike Webster faleceu!”, disseram-lhe.
“Quem é o Mike Webster?”, retorquiu.
Olharam para ele como se vivesse noutro planeta. Percebeu que devia ser o jogador de futebol americano de que tinha ouvido falar nas notícias desse dia.

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Dr. Bennet Omalu

Bennet Omalu nasceu na Nigéria. O seu apelido deriva da palavra Onyemalukwube, que trazida à letra significa “Aquele que sabe, fala”- algo que, de facto, cumpriu ao logo desta saga. É anátomo-patologista, mas possui formação avançada em áreas diversificadas, como saúde pública, epidemiologia e gestão. Tem um interesse particular por neuropatologia.

Quando Mike Webster apareceu na sua mesa de autópsias, o Dr. Omalu já se encontrava informado das circunstâncias da morte do atleta. O caso fê-lo recordar-se da Dementia pugilistica, e na sua mente já suspeitava que o cérebro de Webster teria sofrido danos provocados pelos impactos constantes característicos do futebol americano. Tinha o hábito de falar com a pessoa que pertenceu ao corpo que está a autopsiar (aspeto curioso e retratado em Concussion), pelo que pede a Mike ajuda para perceber o que realmente se passou com ele. Para o Dr. Omalu, o ataque cardíaco que matou Webster explica apenas uma pequena parte da história.

Macroscopicamente, o cérebro de Webster tinha uma aparência normal. Mas, insatisfeito, Dr. Omalu resolveu prepará-lo para análise microscópica. A observação revelou agregados, que depois se constatou consistirem em acumulações de proteína TAU. A proteína tinha-se acumulado entre os sulcos cerebrais, particularmente em zonas perivasculares – padrão que não tinha sido encontrado em nenhuma doença neuro-degenerativa anteriormente. Mais tarde, encontraria este padrão noutros jogadores que faleceram antes dos 50 anos.

Absorver o Choque

Hoje, acredita-se que as zonas entre os sulcos e as zonas onde há uma transição entre substâncias de densidade distinta (como as zonas perivasculares) absorvem a maior parte da força envolvida em traumatismos cranianos. Por razões que ainda não estão completamente esclarecidas, este fenómeno conduz a um aumento da fosforilação da proteína TAU nas células cerebrais, o que resulta na acumulação de produtos tóxicos e, por fim, na morte dos neurónios. Surgem assim sintomas como agressividade, desorientação, perda de memória e depressão.

O Dr. Omalu ficou entusiasmado com a descoberta. Na altura, estava a tirar o curso de gestão e tinha tido aulas sobre como projetar uma marca, que o fizeram compreender a importância do nome que se dá a algo. Decidiu então chamar à patologia Chronic Traumatic Encephalopathy, por se conjugar num acrónimo fácil de memorizar (CTE) e por ser composto por termos generalistas que o salvaguardariam caso descobrisse que estava errado em relação a algum aspeto da doença. Em parceria com neurologistas e outros anátomo-patologistas, publicou os seus resultados em fevereiro de 2005.

Na sua ingenuidade, o Dr. Omalu considerou que a National Football League (NFL), o império que gere o futebol americano, o felicitaria pela sua descoberta porque poderia contribuir para manter a saúde dos seus jogadores. No entanto, a realidade foi muito diferente daquela que ele esperava.

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Mike Webster em campo pelos Pittsburgh Steelers

Quando o Dr. Omalu publicou os seus resultados, a NFL negou-os veementemente. Classificou-o como charlatão, acusando-o de praticar vodu e não medicina. Alegou que já desde 1994 que um comité analisava este tipo de questões, o Committee on Mild Traumatic Brain Injury (MTBI), e este tinha determinado que não havia consequências de lesões moderadas assintomáticas, nem de lesões mais graves realizadas em campo. Para o MTBI, um atleta que sofresse um contusão e apresentasse sintomas típicos como cefaleias, vertigens, perda de memória transitória, diplopia, entre outros, podia voltar a jogar no próprio dia. Resta esclarecer que o referido comité era liderado por um Reumatologista que tinha estudado medicina em Guadalajara, numa faculdade mal-afamada. Ele e todos os outros médicos do MTBI tinham compromissos com a NFL, trabalhando diretamente com a organização ou em grandes equipas de futebol americano. Os estudos por eles publicados ao longo de vários anos foram altamente criticados por falta de rigor, tendo sido publicados por influência do diretor de uma revista científica com ligações à NFL.

A caricata reunião secreta entre o Dr. Omalu, o Dr. Julian Bailes, antigo neurologista dos Pittsburg Steelers que o apoiava, e um médico do MTBI retratada em Concussion foi bastante reveladora. O Dr. Omalu explicou todos os factos ao que o médico do comité lhe responde:

Bennet, tem alguma ideia das implicações do que está a fazer? Se apenas 10% das mães decidirem que o futebol americano é demasiado perigoso, é o fim deste desporto!

Cansado, o Dr. Omalu decidiu afastar-se do problema e mudou-se de Pittsburgh para a Califórnia com a sua família em 2007. No entanto, não desistiu: em 2008 publicou o livro Play Hard, Die Young: Football Dementia, Depression, and Death e aprofundou os estudo da CTE, encontrando-a em atletas de outras modalidades, como por exemplo wrestling e veteranos de guerra. Em 2009, o seu trabalho começou a dar frutos, com a saída de um artigo na popular revista americana GQ sobre as suas descobertas e a posição da NFL.

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Play Hard, Die Young: Football Dementia, Depression, and Death

Com a chegada do assunto à opinião pública, não tardou muito para que membros do MTBI e outros executivos da NFL fossem chamados a depor em tribunal. Posteriormente, centenas de ex-jogadores de futebol americano processaram a NFL pelos danos que sofreram no cérebro sem saberem que existia esse risco.
Mas afinal, qual é o futuro do futebol americano?

Nos últimos tempos, a NFL tem procurado desenvolver medidas minimizadoras do impacto do traumatismo craniano, que vão desde alterações às regras do jogo até à conceção de novos capacetes. O Dr. Omalu chamou a atenção para uma verdade elementar: um capacete que absorva mais o impacto ajuda a menorizar grandes traumatismos, mas não o CTE, que resulta essencialmente do movimento livre do cérebro no líquido cefalorraquidiano, que ocorre mesmo com impactos moderados. Desde 2008 que a Universidade de Boston conta com uma equipa, liderada pelo Dr. Robert Stern e pela Dr. Anne MacKee, que se dedica ao estudo da CTE, procurando saber se existem fatores de risco comportamentais ou genéticos que aumentem a suscetibilidade de alguns indivíduos. Por outro lado, procuram desenvolver um método de diagnosticar esta patologia em vida e perceber como travá-la.

Só o tempo ditará o futuro do futebol americano. O que é certo é que, para manter vivo este desporto que marca profundamente a cultura norte-americana, terá de haver cooperação entre investigadores e organizações desportivas.

A FRONTAL recomenta que vejas o filme Concussion, para aprofundares o teu conhecimento sobre toda esta história. Como estudantes de medicina, é importante estarmos sensibilizados para esta ameaça silenciosa recém-descoberta e sobre a qual ainda há muito por esclarecer.

E, se fores jogador de algum desporto violento, cuidado com a cabeça.

Bibliografia
League of Denial: NFL’s Concussion Crisis, 2013, Michael Kirk, FRONTLINE.

Omalu, B. (2005). Chronic traumatic encephalopathy in a National Football League player. Neurosurgery. Wolters Kluwer.

Fontes das Imagens
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