Lisboa – Sete Colinas, Sete Roteiros I

Não é um guia turístico, não é um livro de história, não é uma agenda cultural e muito menos um livro culinário. Esta série de artigos, que tenta ser tudo para não ser nada, apenas pretende abrir a curiosidade do leitor, tanto o aluno que chega pela primeira vez a Lisboa, como aquele que vive cá há mais tempo mas não conhece todos os recantos.

 

“Occupa agora pois esta Cidade em comprimento de Belém até Saõ Bento de Enxobregas, que saõ quasi duas legoas, continuando-se sempre casas e quintas, ficando o meo della, e o a que propriamente chamamos cidade, situada sobre sete montes muy altos, e de muyta distancia entre huns, e outros, e os ocupa a todos, naõ só nos altos deles, mas em todas suas fraldas, e raízes, e valles, como se deixa claramente ver de quem vem do mar, que de terra não há lugar donde se possa ver mais, que quando muyto a terceira parte della.”

Frei Nicolau de Oliveira, Livro das Grandezas de Lisboa, 1620

Em 1620, era publicada a primeira edição d”O livro das grandezas de Lisboa” da autoria do Frei Nicolau de Oliveira, natural desta cidade e membro da ordem da Santíssima Trindade. Esta obra se destaca por ser a primeira a fazer referência às “7 colinas de Lisboa” da seguinte forma “as sete colinas sobre as quais estava assente lisboa: castelo, são vicente, são roque, santo andré, santa catarina, chagas e sant’ana”. A ideia das sete colinas deriva muito provavelmente do paralelismo geográficos que os conquistadores romanos encontraram em 138aC ente Olisipo (nome dado pelos fenícios) e Roma, a capital imperial, a qual era rodeada por sete colinas aquando da sua função: campidoglio, quirinale, viminale, esquilino, celivo, aventino e palatino.
No entanto nos últimos séculos diversos factores tanto arquitectónicos como demográficos têm mudado a face da cidade apagando os limites existentes entre algumas das colinas e tornando menos relevante a grande distância entre as colinas referida pelo Frei Nicolau no século XVI.
Convido o leitor para que nos acompanhe nesta peculiar visita semi-guiada pelas ruas, edifícios, histórias, lendas, memórias e histórias das 7 colinas de Lisboa. Assim sendo, as colinas a abordar serão as seguintes:

  1. Colina do Castelo, ou Colina do Castelo de S. Jorge, corresponde aos Bairros do Castelo e da Mouraria e ao sudeste do Bairro de Alfama;
  2. Colina de Santo André, corresponde às calçadas da Graça e Santo André e ao Largo da Graça;
  3. Colina de Santa Catarina, corresponde ao Largo Camões e à Calçada do Combro;
  4. Colina de Chagas, esta colina muito singular data de 1597 após um aluimento de terras que a separou de Santa Catarina. Esta corresponde à Rua das Chagas e ao largo do Carmo;
  5. Colina de São Roque, corresponde ao Bairro Alto;
  6. Colina de São Vicente, corresponde ao Bairro de Alfama e ao convento São Vicente de Fora;
  7. Colina de Sant’Ana, ou melhor conhecida por nós como “Colina da Saúde”.

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Explorando a Colina do Castelo

Começo a minha viagem na colina do Castelo de São Jorge, a qual se estende desde as margens do Tejo até ao Forte de São Jorge, outrora “Castelo dos Mouros”.

Esta antiquíssima colina tem a sua história traçada nas suas ruas e prédios tendo sido o núcleo da cidade romana, de uma Medina islâmica e de uma cidade medieval após a reconquista.

Actualmente corresponde a aos Bairros do Castelo e da Mouraria e ao sudeste do Bairro de Alfama

Partindo da baixa pombalina, inicio a minha viagem no Largo da Madalena. Sei que estou em Lisboa porque observo o vaivém dos eléctricos com os inseparáveis “penduras”, as ruas traçadas à régua da baixa e as imponentes colinas com os seus múltiplos miradouros cada um com uma perspectiva muito singular da cidade e do seu inseparável Tejo.

Sigo pela rua da Madalena no sentido oposto ao Tejo. Viro à minha direita e atravesso a rua das Pedras Negras, à esquerda examino os arcos das portas do rés-do-chão dessa rua, que, apesar de banais, quando combinados com a banal calçada da estrada, me levam a pensar, com alguma imaginação, nos templos romanos e nas ruas de pedra típicas que ocuparam estas ruas que serviram do centro de ocupação da antiga cidade do Império Romano.

 No cruzamento desta rua com a Calçada do Correio Velho, cruzo à esquerda subindo a calçada. Encontro à minha esquerda está um edifício amarelo que serviu ao “Correyo Geral do Reino”, predecessor dos CCT, à minha direita uma grande parede com cerâmicas na qual é possível ler: “Para nascer Portugal para morrer o mundo”, em homenagem aos 400 anos de nascimento do Padre António Vieira autor do tão conhecido “Sermão de Santo António aos peixes”.

Monumento em celebração dos 400 anos do nascimento de P. António Vieira
Monumento em celebração dos 400 anos do nascimento de P. António Vieira

Ao subir pelas Escadinhas de São Crispim testemunho a metamorfose constante desta cidade que se esforça por renovar a sua “face” sem perder a sua autenticidade.

À esquerda, entre as bocas e os martelos entre os assobios e o cimento ergue-se um edifício novo; encostado a este, está um grande edifício branco, mais antigo, que esconde nas suas paredes algumas das suas antigas funções. Quem vê pelo lado de fora fica a saber em português, gaélico irlandês e inglês que este já serviu entre 1611 e 1834 como “colégio de dos irlandeses de São Patrício”. Quem espreita entre a grade que separa este edifício do novo pode ver os discretos azulejos que este também serviu de “Ministério da Justiça e dos Cultos” durante a 1º república.
Este pálido e solitário colosso, que outrora recebeu alunos, padres, professores e ministros, contrasta com o outro lado da rua com diversas casas antigas umas melhor conservadas do que outras, na sua maioria habitadas. Nestas ouve-se a rádio, cheira-se o alecrim e vêem-se as roupas penduradas.

Escadinhas de São Crispim
Escadinhas de São Crispim

Na Rua do Milagre de Santo António dirijo-me à mão esquerda onde se encontra a famosa companhia Chapitô. Não é apenas um teatro, não é apenas um café com vista sobre a baixa, não é apenas uma loja, não é apenas uma casa de caridade; estas discretas paredes brancas que coincidem com o local de nascimento do artista Artur Ramos são um centro de reintegração social pelas artes.

Chapitô
Chapitô

Chegando ao cruzamento entre esta rua e a Rua Bartolomeu de Gusmão reparo numa casa que preserva o seu estilo único com azulejos que narram partes da vida de Santo António de Lisboa há centenas de anos mas cujas grades nas janelas do rés-do-chão revelam um receio pela criminalidade. Também à direita, observo uma rua com um nome muito lusitano, Saudade, a qual apesar de continuar numa curva acaba à vista com um muro amarelo sobre o qual é visível o ubíquo Tejo. Esta albergava há séculos um teatro romano dedicado a Nero que serviria como pedreira para a construção da Sé de Lisboa.

Rua Bartolomeu de Gusmão
Rua Bartolomeu de Gusmão

Em frente, no Largo dos Lóios, observo uma bela fusão entre natureza e cidade ao longo de uma rua de calçada atapetada pelas árvores aí dispostas lado-a-lado os edifícios revestidos em cerâmicas. À esquerda, também em obras, encontro a rua Bartolomeu de Gusmão, cujo nome é dedicado ao pai da passarola imortalizado no “Memorial do Convento” de Saramago. Sigo por esta rua cuja palavra de ordem é “Handicraft”, tudo é feito para ser ou parecer artesanal desde os bordados, às bebidas, incluindo também as figuras de madeira vendidas por alguns comerciantes de rua. Para a minha surpresa encontro uma casa loja turística com produtos Madeirenses. Em caso de dúvida podemos ver uma cerâmica com “vilões” e bordadeiras em frente a uma Casa de Santana; talvez fique fora de contexto mas vale pela surpresa. No fim desta rua encontra-se a porta mais externa do castelo por cima da qual estão vários turistas entretidos com a vista sobre a cidade. Nesta porta moura encontro um papel da freguesia a pedir aos moradores que não estacionem os seus carros nas ruas próximas ao castelo, talvez para facilitar as obras ou talvez com uma intrínseca mensagem saudosista que tenta recriar tempos há muito idos.
Seguindo através da porta chego à rua do Chão de Feira que antes de 1147 era uma cidadela moura na qual se encontrava o palácio do alcaide com as elites políticas, militares e administrativas.
Chegando à porta do castelo um segurança, que verifica as entradas dos visitantes, cumprimenta outro indivíduo dizendo “Olá patrão”, à imagem de um antigo guarda que cumprimentava um dos magistrados do rei.
Após tirar uma foto dos pátios do castelo com a uma estátua de D. Afonso Henriques a qual, exceptuando a posição da espada, é quase idêntica à sua irmã vimaranense, desço novamente até a Rua do chão da Feira. Após vários restaurantes, lojas e táxis deparo-me com um edifício muito peculiar de paredes brancas e portas vermelhas com uma estrutura heterogénea que representa as suas diferentes fases de ocupação desde os tempos de D. Manuel I, que serviu de cenário ao filme Lisbon Story do realizador alemão Wim Wenders. Trata-se do Palácio de Belmonte, cuja entrada principal também estava em obras. Passo ao lado da agradável esplanada e livraria e atravesso um amplo corredor encontro um espaço aberto. Tristemente, está degradado com ruínas recentes que dão um aspecto de zona de guerra. Mas, apesar disso, é possível ter uma interessante vista sobre o ubíquo rio com a cúpula do Panteão Nacional e as torres do convento de São Vicente de Fora.

Vista do Palácio Belmonte
Vista do Palácio Belmonte

Voltando à rua do Chão da Feira desço pela Travessa do funil. No início do Largo do contador mor encontro umas crianças entretidas a fotografar os peixes disponíveis na “Tasquinha” enquanto um gato aproveita os restos que se encontram no chão.

Passando pela Travessa de Santa Lúcia, com as suas paredes vermelhas e calçada de linhas brancas e pretas alternadas à imagem das teclas de um piano, encontro o Largo de Santa Luzia com a sua capela que exibe no exterior vários azulejos, sendo de destacar a imagem do Terreiro do Paço na parede que dá para o Jardim Júlio de Castilho, em homenagem ao famoso Olisipólogo. Neste jardim encontro outro miradouro. Nesta altura não é o fado do Castelo que me acompanha mas sim um reggae instrumental interpretado por dois músicos ambulantes.

 

Jardim Castilho
Jardim Castilho

Dirigindo-me até o Largo portas do sol, nome bem aplicado porque sinto o Verão em plena Primavera, num espaço vivo, povoado por eléctricos que param e seguem e rico em esplanadas, aproximo-me do miradouro. Desta vez acompanha-me a música do Roberto Carlos interpretada por um músico com a sua viola. Não sei porquê mas fico tentado por fotografar uma antiga torre industrial lado a lado uma palmeira e uma antena de televisão, recriando o símbolo da metamorfose urbana.

I - Foto g

Olho para o outro lado da rua e vejo um prédio vermelho que vai desde a já referida travessa do funil até o largo, trata-se do palácio da Azurara, onde está instalada a fundação Ricardo Espírito Santo Silva com a sua colecção artística coleccionada pelo banqueiro ao longo da sua vida. Neste edifício encontramos uma torre das torres mais orientais do castelo, uma das poucas que resistiu.

Encontro a história da “Cerca moura” numa placa ao lado da estátua de São Vicente, com um barco com dois corvos na sua mão esquerda. Estes símbolos narram a viagem do cadáver de S. Vicente até a costa vicentina com um corvo à proa e outro à popa imagem que viria a ser adoptada como brasão da cidade.
Passando o largo reparo num discreto sinal de trânsito que indica o meu ingresso em Alfama, entre as colinas de São Vicente e do Castelo.

Alfama
Alfama

(Esta crónica continua numa próxima publicação)

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Santiago Rodrigues Manica ingressou em 2009 na FCM- NOVA onde estuda o 5º ano de Medicina. É luso-descendente natural da Venezuela e fez grande parte da sua formação no Funchal, Madeira. Este habitante do Mundo, apesar de ter escolhido a carreira médica desde muito cedo tem um interesse amador por múltiplas áreas do conhecimento como; filosofia, história universal, línguas e ciências. Os seus grandes hobbies são a leitura e a música sem esquecer os habituais passeios à margem do Tejo.

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