O Artista e a Doença – Oftalmologia

A mudança é uma constante da existência humana nas mais diversas vertentes e o domínio artístico não é excepção. Dois artistas franceses da passagem do século XIX para XX são exemplos vivos de espíritos inquietos que recolhem as “impressões” do entorno para dar forma à sua obra. Estes são Claude Monet e Edgar Degas; ambos tiveram diversas fases artísticas. Mas resultaram os traços característicos das últimas fases apenas de uma vontade de mudança ou será a manifestação de uma doença do sistema visual…?

CLAUDE MONET

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Self-Portrait-With-A-Beret
Autoretrato de Claude Monet (Monet, 1886)

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[tabs] [tab title=”Dados Biográficos”]

Nome completo: Oscar-Claude Monet

Nascimento: 14 Novembro 1840 Paris, França

Falecimento: 5 Dezembro 1926 (86 anos), em Giverny, França

Conhecido por: Pintura; corrente impressionista

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O pintor Claude Monet foi uma figura chave do Impressionismo, movimento artístico que transformou a arte francesa na segunda metade do século XIX. (1)

Parafraseando a definição dada pelo compositor e mestre Leonard Bernstein em 1961 no Carnegie Hall, em Nova Iorque, num dos seus famosos Young People’s Concertso impressionismo pode ser explicado com o indivíduo que aprecia uma paisagem e apresenta-a a um amigo que está longe que nunca visitou este lugar; o primeiro recorre às “impressões” captadas pelos seus sentidos transmitindo uma “impressão” do que é experimentado e não apenas factos ou figuras. (2)

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Segundo o contemporâneo escritor francês Émile Zola, as pinturas de Monet eram uma “janela aberta para a natureza” e o crítico de arte Philippe Burty afirmou que as pinturas impressionistas eram “(…) como pequenos fragmentos de espelho na vida universal, e as coisas rápidas e coloridas, subtis e encantadoras, reflectidas nestas merecem ser estudadas e celebradas”. (3 – p.6)

Por volta de 1860, no seu início de carreira, Monet desfrutou de sucesso limitado, até criar uma exposição independente com Edgar Degas, Édouard Manet, Camille Pissarro, Renoir, entre outros, na qual apresentou a obra Impression, soleil levant (1873) (Impressão, nascer do sol). (1) Esta obra, que inadvertidamente viria baptizar o movimento artístico, foi muito criticada na altura por apresentar “[highlight]formas indistintas, figuras inacabadas[/highlight]”, mas Monet encarou as críticas como uma homenagem ao seu génio artístico. (1)

Impression, soleil levant (Impressão, nascer do sol, Claude Monet, 1873)
Esta fantástica peça de arte viria baptizar o movimento Impressionista (5)

Curiosamente no período entre 1919 e 1922, as pinturas de Monet perderam as “grandes decorações” das fases iniciais, passando a um estilo mais generalista. As pinturas desta altura revelam uma predominância de tons vermelho-alaranjado e verde-azulado, muito diferentes das cores usadas no seu trabalho inicial como impressionista. (4)

Mas porquê este fenómeno? Terá o artista decidido mudar radicalmente o seu estilo artístico ou haverá alguma explicação médica por detrás?

Em 2006, o médico oftalmologista e membro do Departamento da Universidade de Stanford (Califórnia), Michael F. Marmor, publicou um artigo que descreve, com recurso a diários clínicos, cartas e outros textos históricos, as alterações visuais sofridas pelos artistas Claude Monet e Edgar Degas. O projecto foi tão ambicioso que tentou recriar no computador os defeitos visuais destes artistas de forma a tentar perceber como seria o Mundo visto pelos olhos destes (quase literalmente). Marmor conclui que Claude Monet teria desenvolvido uma esclerose nuclear. Este tipo de catarata progressiva ligada à idade manifesta-se como uma descoloração amarelada do cristalino que afecta a percepção das cores e a acuidade visual. Esta terá sido diagnosticada em 1912 e, apesar da opinião do Oftalmologista, Monet terá recusado a cirurgia. (4)

Como este sentia que não era capaz de distinguir as cores recorreu a rótulos que colocava nos tubos com pintura e à “força do hábito”, ou seja, a uma memória artística de mais de 50 anos de carreira para dar uma “aura” impressionista à sua obra. No entanto ele não conseguia misturar cores por observação ou fazer refinamentos subtis que eram tão característicos. Daí que nos últimos trabalhos tenderia a usar as [highlight]cores directamente dos tubos[/highlight]. Escrevia o artista neste período que “[highlight]as cores já não têm a mesma intensidade… os vermelhos parecem lamacentos… As minhas pinturas estão cada vez mais escurecidas[/highlight]”. (4)

Esquema da evolução da degradação da acuidade visual de Monet. Note-se o esbatimento e monotonia das cores e a falta de contornos, tão visível nos nenúfares que pintava, até 1923, altura em que foi submetido à cirurgia.

Monet foi finalmente operado em 1923, e, após esta altura, destruiu muitas das suas pinturas anteriores. Afortunadamente, muitos destes “abortos” de Monet foram salvos por familiares e amigos. Muitas das quais não foram sequer datadas. Provavelmente as obras Le pont japonais  (1919) (Ponte JaponesaMaison et jardin (1922) (Casa e Jardim) foram feitas no “vale” da sua capacidade visual. (4)

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Le pont japonais (A ponte japonesa, Claude Monet, 1919)
Esta obra pode ter sido pentada durante o período de maior declíneo visual do artista. É de realçar a presença de formas pouco definifas e o tom predominante vermelho-acastanhado.

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Monet - Waterlily Pond - 1899
L’étang de nénuphars (Lago com nenúfares, Claude Monet, 1899)
Imagem pintada quando Monet ainda preservava uma boa função visual e que representa o “espírito” do impressionismo. (10)

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Em 1924, continuou a trabalhar nos quadros Les Nymphéas (As nenúfares) presentes no Musée de l’Orangerie, Paris, França. (4) Viria falecer em 1926 com 86 anos na sua querida e inspiradora Giverny.

EDGAS DEGAS

 

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Self-Portrait--Degas-Lifting-His-Hat
Auto-retrato de Degas (Degas, 1863)

[/column] [column size=”one-half” last=”true”] [tabs] [tab title=”Dado Biográficos”]

Nome completo: Hilaire-Germain-Edgar De Gas – Edgar Degas

Nascimento: 19 Julho 1834 Paris, França

Falecimento: 27 Setembro 1917 (83 anos) Paris, França

Conhecido por: Pintura, escultura, desenho. Corrente impressionista[/tab][/tabs]

Apesar de ser um dos fundadores e um dos membros centrais do movimento “Impressionista”, Edgar Degas nunca aceitou plenamente o título, optando por auto-denominar-se “realista” ou “independente”. (6) A obra de Degas é o resultado de diversas influências, antigas e moderna, europeias e orientais (7 p.3) Teve uma formação neoclássica (7 p.4), e criou vários quadros académicos de carácter histórico até 1865, quando a sua obra Scène de guerre au Moyen Âge (Cena de guerra na idade média), erroneamente chamada Les malheurs de la ville d’Orléans (Os infortúnios da cidade de Orléans) (8), foi aceite num Salon (galeria). [/column]

Cena de guerra medieval - Degas
Scène de guerre au Moyen Âge (Cena de guerra na idade média, Degas, 1865)
Uma das primeiras obras de Degas. É de realçar o ambiente histórico e o estilo tradicional.(8)
The-Absinthe-Drinker
L’Absinthe  (Degas, 1876)
Estilo “realista” de Degas. O artista tinha um grande gosto por cenas urbanas com situações corriqueiras e iluminação artificial.

Degas não retornou aos temas académicos – a partir dessa altura passou a captar os momentos da vida moderna nos espaços iluminados arterialmente como os cafés e teatros e urbanos iluminados artificialmente. Representava também actividades urbanas como corridas de cavalos, concertos de cafés e dançarinas. (6) As perspectivas inusuais e a assimetria das suas pintura são uma constante. As dançarinas eram um tema tão importante para ele que figuraram em perto de 1500 obras da sua autoria. Não há retratos tradicionais, apenas estudos que abordam o movimento do corpo humano. (6)

Nos final de 1880, a visão de Degas começou a falhar. Após este período focou-se cada vez mais em dançarinas e nus, produzindo cada vez mais esculturas. Na sua fase final quase toda a sua obra se resumia a mulheres tomando banho sem auto-consciência ou posição enfática. (6)

No final de vida, Degas tornou-se isolado, melancólico e vulnerável a surtos de depressão, provavelmente como consequência da sua cegueira. As suas obras Paysage (1890-92) (Paisagem), pouco usuais para o período, representam uma paisagem ao ar-livre sem figuras, que apresenta um uso imaginativo e expressivo da cor e da liberdade das linhas. (6) Estas podem ter surgido, em parte, como mecanismo de adaptação à sua deterioração visual. (6)

No mesmo artigo de Marmor (4) são também recriadas as obras de Degas. Segundo o autor, Degas provavelmente teria uma lesão central (macular) da retina, cuja primeira manifestação terá sido uma visão turva (baixa acuidade visual). Como o pintor manteve a capacidade para caminhar confortavelmente, mesmo numa fase tardia, é possível que a periferia retiniana tivesse sido poupada. Não existe qualquer registo que faça referência a cataratas, e, se estas existissem, teriam sido facilmente reconhecidas e até operadas na altura. (4)

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Femme s’essuyant les chevaux (Mulher a secar o cabelo, Degas, 1900) (10)

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Femme s’essuyant les chevaux (Mulher a secar o cabelo, Degas, 1900)
Segundo Marmor este seria o aspecto do mesmo quadro visto pelos “olhos doentes” de Degas. É de realçar como os traços bruscos são substituídos por um contraste de cores mais agradável (10)

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Degas referia uma alteração da visão por primeira vez nos 1880s, no entanto, era capaz de ler o jornal. Nos 1890s, este fez referências frequentes nas suas cartas sobre as dificuldades visuais para ler e escrever e a sua caligrafia passou a ser maior e mais irregular. Na viragem de século as limitações visuais afectavam já seriamente o seu dia-a-dia. No entanto, continuou a trabalhar nos seus pastéis até se mudar para o seu estudo familiar em 1912. Entre 1880 e 1890, desenhava as mesmas personagens, mas as sombras das linhas e os detalhes da face, cabelo e roupas passaram a ser cada vez menos refinados. (4)

Um estudo de Lanthony publicado em 1991 (Lanthony P. Degas et la fréquence spatiale. Bull Soc Ophtalmol Fr. 1991;91:605-611) revelou que o espaçamento entre as suas linhas de sombra aumentava proporcionalmente à sua perda de capacidade visual durante 3 décadas. Após 1900, os efeitos eram extremos e muitas pinturas pareciam meras sombras do seu estilo habitual. Os corpos eram traçados irregularmente, as imagens fundidas por manchas de cores pouco naturais e não havia quase detalhes nas faces ou roupas. (4)

Um crítico de arte afirmou “estes esboços são a testemunha trágica da batalha de um artista contra a sua doença”

 

Scène de la course d'obstacles : Le jockey tombé ("Cena de uma corrida de obstáculos: a queda do jóquei", Degas, 1866) (11)
Scène de la course d’obstacles : Le jockey tombé (“Cena de uma corrida de obstáculos: a queda do jóquei”, Degas, 1866) (11)

No artigo An Eye Chart for Edgar Degas, de 2013, Marmor afirma que o quadro Scène de la course d’obstacles : Le jockey tombé (Cena de uma corrida de obstáculos: a queda do jóquei) é uma gravação perfeita da dificuldade do artista em retratar paisagens e cenas de movimento, com perda de contornos nítidos e de detalhes, uso de cores mais escuras e predomínio de sombras.

Na maculopatia a perda da discriminação da cor é ligeira e não consistente. As cores não estavam alteradas, mas sim os traços vistos por olho turvo. De facto se virmos a obras de Degas “através dos seus olhos” têm um melhor aspecto do que quando vista por olhos saudáveis. (4) Provavelmente para Degas os últimos trabalhos pareciam tão bem como os primeiros, e podia perceber a impressão e juízos resultantes do público com olhos normais. (4)

O artista trabalhou até 1912, quando se viu forçado a abandonar o estudo de Montmartre. Faleceu em 1917, com 83 anos de idade. (6)

É de realçar que a arte é muito subjectiva e uma simples mudança de estilo pode ter diversos motivos subjacentes e não deve implicar necessariamente uma doença, defeito ou anomalia.


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Serão as alterações nas técnicas artísticas destes autores o sinal de uma doença ou apenas decisões espontâneas dos próprios? De facto a resposta continua incerta, dada a subjectividade que a arte encerra. Por isso, uma simples mudança de estilo pode ter diversos motivos subjacentes e não deve implicar necessariamente uma doença, defeito ou anomalia.

O único facto que se pode apurar com uma certeza absoluta: a arte é subjectiva e depende dos olhos do observador.

 

[toggle title=”Para saberes mais, consulta a bibligrafia”]

1- http://www.metmuseum.org/toah/hd/cmon/hd_cmon.htm

2- http://www.leonardbernstein.com/ypc_script_what_is_impressionism.htm

3 – http://www.jstor.org/discover/10.2307/3258395?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21103955409427 (pdf gratuito no link da ref. 1)

4-  Marmor, M. F Ophthalmology and art: Simulation of Monet’s cataracts and Degas’ retinal disease Archives of Ophtalmology. 2006; 124 (12): 1764-1769 PubMedID 17159037 – http://archopht.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=418859

5- http://www.claudemonetgallery.org/ (Base de dados com obras de Claude Monet)

6- http://www.metmuseum.org/toah/hd/dgsp/hd_dgsp.htm

7 – http://www.jstor.org/discover/10.2307/3258697?uid=3738880&uid=2134&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21103955712937 (pdf gratuito no link da ref.6)

8- http://degasexperts.com/degas/degas-timeline/ -Pintura Degas

9- http://www.edgar-degas.org/ – Base de dados com obras de Degas

10- http://news.stanford.edu/news/2007/april11/med-optart-041107.html (imagens do estudo de Marmor)

11- http://archopht.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=1748291 (outro estudo de Marmor)

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Santiago Rodrigues Manica ingressou em 2009 na FCM- NOVA onde estuda o 5º ano de Medicina. É luso-descendente natural da Venezuela e fez grande parte da sua formação no Funchal, Madeira. Este habitante do Mundo, apesar de ter escolhido a carreira médica desde muito cedo tem um interesse amador por múltiplas áreas do conhecimento como; filosofia, história universal, línguas e ciências. Os seus grandes hobbies são a leitura e a música sem esquecer os habituais passeios à margem do Tejo.

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