Opinião: Os Estudantes de Medicina não são Robôs

Olheiras, palidez, livros debaixo do braço, cara de quem já se esqueceu como se ri e nos dias de sorte, uma bata branca que retira qualquer dúvida que pudesse ainda existir. É um aluno de Medicina. Um estereótipo, um daqueles que faz tanto sentido como qualquer outro… nenhum.

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Os amigos chamam-nos “marrões” meio a brincar – eu sempre ouvi que há um fundo de verdade mesmo na mais pequena piada. Os pais dizem que estamos sempre atarefados, mas compreendem-no como um investimento para o futuro; ainda assim, não se cansam de dizer, vezes sem conta, que devíamos descansar mais e que a vida não pode ser só estudar. Os amigos dos pais, os conhecidos, outras pessoas que vamos encontrando no caminho e que nos perguntam o que estudamos, abrem a boca num misto de admiração e pena, comentando o quanto temos de saber e decorar, todos os ossinhos e células e moléculas, ao que respondemos, amiúde, um “tem de ser” conformado e orgulhoso.
Mas será que nós, estudantes de Medicina, perdemos realmente a capacidade de pensar quando entramos na faculdade? De raciocinar e ser criativos? Será que somos algo mais do que máquinas, cabeças mecânicas que debitam o que lêem? Ou estamos reduzidos a essa definição? Dado o mote, paremos um momento para deliberar, que as respostas nunca são tão directas quanto nos parecem.
Não é o corpo humano uma das mais belas obras de arte existentes, senão mesmo – e não querendo correr o risco de ser pretensiosa-, a mais bela de todas? Estudá-lo e compreendê-lo é um desafio, uma ode aos mais brilhantes pensadores, um acto corajoso que requer todos os recantos do cérebro e dos outros órgãos também, se assim o puder ser, porque o estudante de Medicina nunca está saciado. Requer memória, dedicação, raciocínio, paciência e tempo. É uma honra reservada apenas para os que assim escolheram passar a sua vida. Trocar tanto conhecimento e tamanha oportunidade por umas horas de estudo, o chamado “marranço”, como dizem os que pouco percebem do assunto, parece-me aceitável. E quem corre por gosto não cansa, já dizia a minha avó, exemplo de tantas outras avós (e eu que até tenho dias em que me canso, não me queixo, que não estamos a falar de mim).

Que me digam que o estudante de Medicina estuda muito. Que me digam que o estudante de Medicina tem de despender muitas horas da vida pelo curso. Que me digam que o estudante de Medicina faz sacrifícios, abdica de algumas coisas, não tem todo o tempo livre que gostaria de ter. Concordo e revejo-me. Mas que me digam que o estudante de Medicina é pouco criativo? Que não tem raciocínio? Que é linear nos pensamentos? Claro que, se avaliarmos estas questões pondo-lhe à frente uma derivada de uma função composta, misturando exponenciais e logarítmicas, vamos obter o chamado “burro a olhar para um palácio”. Mas isso não se chama falta de raciocínio, chama-se falta de prática e, acima de tudo, estupidez. Não confundamos as coisas. Raciocínio não significa necessariamente matemática, contas, números. O percurso dos alimentos pelo tracto gastrointestinal será um raciocínio básico para nós e impossível para um aluno de um curso Humanístico ou de Matemática. Não confundamos as coisas – cada macaco no seu galho.

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Um artista circunstancial

O estudante de Medicina vive embrenhado em mil teias, compromissos, trabalhos e prazos dos quais muitas vezes tenta escapar. E o ritmo acelerado que é imposto faz com que tenha de procurar alternativas, momentos de pausa para manter o equilíbrio que tantas vezes é posto à prova. Esse escape e esse equilíbrio chegam invariavelmente através das artes: desde filmes a séries, instrumentos musicais, leitura e a própria escrita. Algo que nos transporte para outro mundo e que nunca deixe esmorecer em nós o artista interior que indubitavelmente existe e que as forças circunstanciais (seja lá isso o que for) teimam em fazer desaparecer.
O que vivi até agora, só me permite concluir de uma forma: o estudante de Medicina é um criativo nato. Consegue pensar em mil formas de se distrair antes de estudar. Já para não falar da forma como consegue dar a volta às perguntas da oral quando não sabe a resposta. Ou a clareza com que imagina como será a especialidade que quer escolher, uma vez que provavelmente não terá contacto com a mesma a não ser que arranje os seus próprios contactos. Ou da perspicácia necessária para entender todos os mecanismos moleculares, redes neuronais, células e células, proteínas e funções, ligações sem fim e que, para surpresa e alegria, no final fazem sentido. Para não falar do exercício criativo que o estudo da Anatomia exige.

Se nós, estudantes de Medicina do Mundo, não temos raciocínio, engenho e arte, então tal conceito não pode existir.

 

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