“Pára-me de Repente o Pensamento”

Sem nome

“Já sentiste o teu pensamento fugir de ti?”. Uma pergunta que pode não ter significado para a maioria da população, mas que para um doente com esquizofrenia faz todo o sentido. “Sim, é mesmo assim” talvez responda. A Frontal apresenta-te o documentário que se propõe enfrentar o estigma e preconceito da doença mental e convida-te a mergulhar no “mundo interior da esquizofrenia”, guiado pela mão do ator Miguel Borges que, ao procurar a sua personagem no seio de um hospital psiquiátrico, encontrou também uma nova realidade.

“Cafezinho, cigarrinho. Moedinha, outro cafezinho. Utentes vagueiam pelos corredores. Circulam sós. Esperam. Mais uma passa, um cigarro que morre em beata. Terapias que apelam aos sentidos. Rotinas que os puxam para a realidade. É a vida que se repete nos espaços de um hospital psiquiátrico. A lucidez e a loucura vivem juntas. Do mundo exterior chega um ator que procura o seu personagem para uma peça de teatro, submergindo no mundo interior dos esquizofrénicos. Os utentes são parte do processo de construção do personagem. No meio da névoa o ator depara-se com um poema de Ângelo de Lima, alienado de condição. O personagem de teatro nasce. O cinema documenta.” – Sinopse

“Pára-me de Repente o Pensamento”, um documentário de Jorge Pelicano, estreou no DocLisboa em 2014 e já foi exibido diversas vezes por todo o país e no estrangeiro. Foi galardoado com dois prémios do Festival International Signes de Nuit 2014 (Secção de cinema transgressivo e Prémio Signes) e três do Festival Caminhos do Cinema Português 2014 (Grande Prémio, Prémio do Público e Melhor Realizador).

O filme faz parte de um projeto de transmédia que teve início em outubro de 2013 (o conceito transmedia storytelling consiste em contar uma história através de diversos meios) , constituído por 4 vertentes, 4 obras artísticas autónomas sobre o mesmo tema (a saúde mental) e no mesmo espaço físico, o Centro Hospitalar Conde Ferreira. Deste projeto resultou a publicação do livro “Lugar de um Deus que me Livre”, de Manuel Andrade, e uma exposição fotográfica de Miguel Rolo, que teve por base um documentário fotográfico de mais de 5 mil fotografias do hospital e que lhe concedeu o título de Mestre Fotógrafo Europeu pela Federação Europeia de Fotógrafos.

“Pára-me de Repente o Pensamento” segue então algumas semanas da vida dos utentes deste centro hospitalar, acompanhando o ator Miguel Borges na sua pesquisa para a construção de uma personagem para a peça do grupo de teatro do hospital, preparada para os 131 anos desta instituição. Esta personagem é Ângelo de Lima,  que apesar de não estar efetivamente presente na obra, deixa a sua marca. O poeta português pertenceu à geração d’Orpheu e esteve internado no então Hospital de Alienados do Conde de Ferreira. Com alguns poemas dispersos por outras revistas e jornais, publicou no nº 2 da revista algumas das suas obras sob o título “Poemas Inéditos”.

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Ângelo Lima

«Tinham dito que eles, os poetas de Orpheu, eram doidos? Pois agora assumiam-no conscientemente» – António Quadros, «O Movimento do Orpheu que foi? Que pretendeu? Que significou?»


“Pára-me de repente o pensamento

Como que de repente refreado

Na doida correria em que levado

Ia em busca da paz, do esquecimento…”

 

Com esta quadra tem início o poema que deu nome a este documentário, da autoria de Ângelo de Lima e publicado na revista “Orpheu” em 1915. Em 1894, o poeta foi internado no Centro Hospitalar Conde de Ferreira com o diagnóstico de “delírio de perseguição”. Este hospital, fundado em 1883,  significou na altura uma enorme evolução na qualidade do tratamento da doença mental, sendo que, até essa data, a população do norte que padecia destas doenças era encaminhada para o “porão” do Hospital de Santo António, onde as condições de tratamento não eram as melhores.

Esta obra cinematográfica documenta assim o quotidiano entre as paredes de um dos mais antigos e consagrados hospitais psiquiátricos de Portugal, o Centro Hospitalar Conde Ferreira, pretendendo derrubar os estigmas que rodeiam a doença mental e permitindo ao público, através dos testemunhos na primeira pessoa destes utentes, ter contato com todas as vertentes que compõem a complexidade da mente humana. O documentário é filmado com um toque artístico muito pessoal mas, se nos atrevermos a olhar para além da beleza técnica e cinematográfica, temos uma vista privilegiada para dentro de um mundo que, muitas vezes, passa ao lado da maioria da população. É o retrato de uma faceta dos doentes que padecem de doença mental a que o público não está acostumado.

As personagens principais deste filme são os próprios utentes do centro hospitalar. Alguns destes, por serem personagens carismáticas e interessantes, cativam o público desde o primeiro momento do filme; são eles o Alberto, que, com os seus olhos esbugalhados e gargalhada contagiante, frequenta o hospital de dia e consegue umas gargalhadas dos seus companheiros (e de quem assiste ao documentário), o Sr. Abreu, homem esguio, bem vestido,  de óculos intelectuais, conhecedor de todas as patologias psiquiátricas, que “gostava de ter sido médico da mente”, e Joaquim, que fala em alto e bom som e é um leitor ávido,  um homem solitário até conhecer Rosa, que se junta a ele agora nos seus passeios para lá dos muros do hospital. Quando é introduzido Miguel Borges, que é muito bem recebido no seio do hospital, podemos acompanhar a sua adaptação e interpretação desta nova realidade, assim como a resposta dos utentes a este estranho.

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O processo de filmagem durou cerca de 3 semanas. Jorge Pelicano revelou em entrevista que, antes disto e enquanto eram obtidas as autorizações de filmagem, ele e a equipa trabalharam durante duas semanas no hospital, sem câmaras, para conhecer melhor os pacientes e ganhar a sua confiança, bem como averiguar se estes seriam “personagens capazes de servir a narrativa”. O ator fez deste hospital o seu lar durante o processo de rodagem, dormindo mesmo neste espaço durante as duas semanas que lá passou, sem nunca sair, imerso no mundo da doença mental, o mundo interno da esquizofrenia. Em entrevista ao programa Janela Indiscreta (RTP2), Borges revela o que se sente ao passar por lá: “São corredores altíssimos, são pessoas abandonadas, corpos doentes em cabeças saudáveis…”. Os primeiros dias, afirma, foram complicados, “tanto estava a rir à gargalhada como (…) tinha de refugiar de vez em quando para chorar” mas, no fim da experiência, conclui que o que vivenciou dentro daquelas paredes foi “precioso”, ficando as amizades e os laços que criou com os utentes do hospital, que continua a visitar quando vai ao Porto.

Para que este projeto resultasse, houve necessidade de bastante diálogo com a equipa médica, que acompanhou todo o processo de montagem do filme e forneceu opinião clínica e crítica relevante para a  proteção da dignidade dos utentes ou personagens do filme. O resultado final teve ainda de ser aprovado pela administração e comunidade médica do hospital pelo que, quando foi terminado o corte final houve um visionamento pela comunidade hospitalar (direção, médicos e utentes), que concordou com o resultado final apenas à segunda tentativa.

O documentário termina mostrando o culminar do trabalho do ator Miguel Borges, ou seja, a sua interpretação da personagem Ângelo Lima na peça dos 131 anos do hospital.

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O documentário pára-nos o pensamento durante 98 minutos, durante os quais experienciamos a realidade de quem passa os seus dias num hospital psiquiátrico, caminhando nos passos destes utentes. No final, saímos da sala de cinema com o pensamento acelerado, a reviver os momentos que foram partilhados, que experienciámos quase como se estivéssemos a espreitar pelo buraco de uma fechadura… e a fazer replay da gargalhada de Alberto na nossa cabeça…

Para saber mais

“Crítica – Pára-me de Repente o Pensamento”. Maio 2015; Portal Cinema in http://www.portal-cinema.com/2015/05/critica-para-me-de-repente-o-pensamento.html , acedido em 29/04/2016

“Documentário “Pára-me de repente o pensamento” estreia-se na quinta-feira nos cinemas” in http://sicnoticias.sapo.pt/cultura/2015-05-03-Documentario-Para-me-de-repente-o-pensamento-estreia-se-na-quinta-feira-nos-cinemas

Janela Indiscreta com Mário Augusto, episódio de 6 de maio de 2015, RTP2, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9Ul18T0y9ZI

Janela Indiscreta com Mário Augusto, episódio de 6 de novembro de 2014, RTP2, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n40bd4SsSOE

Pára-me de Repente o Pensamento – Página Oficial do Facebook: https://www.facebook.com/paramederepenteopensamento/?fref=ts , acedido em 12/06/2016

“Pára-me de Repente o Pensamento”; Site oficial: http://www.paramederepenteopensamento.com/, acedido em 13/05/2016

Ângelo de Lima in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994

Transmedia Storytelling, http://www.tstoryteller.com/transmedia-storytelling , acedido em 29/04/2016

Entrevista a Jorge Pelicano, realizador de «Pára-me de Repente o Pensamento» in http://www.c7nema.net/entrevista/item/42643-entrevista-a-jorge-pelicano-o-grande-vencedor-do-festival-caminhos-do-cinema-portugues.html#sthash.kug4Gv89.dpuf, acedido em 22/06/2016

Fontes das Imagens
Ângelo de Lima in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994 Stills do documentário retirados de “Pára-me de Repente o Pensamento”; Site oficial: http://www.paramederepenteopensamento.com/

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