Subir a escadaria da perfeição

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Entrar em medicina é talvez, para muitos de nós, a maior conquista até à data. Um sonho de criança ou um mero objectivo académico, não importa. Pelo menos, o primeiro passo de uma longa caminhada. Medicina. Um curso estereotipado pela média elevada que o define. Alunos estereotipados por quererem conseguir corresponder a essa média. Um sonho ou um mero objectivo académico alcançado com sucesso, isso sim importa: o sucesso. Quisemos e conseguimos, aqui estamos nós. Habituamo-nos a ser os melhores da turma, da escola talvez. Habituamo-nos a ter as melhores notas, muitas vezes sem grande esforço. Por vezes somos os queridos dos professores e, sem excepção, o grande orgulho dos pais.

Crescemos numa sociedade que nos incute o “ser mais”. Ser mais inteligente, mais rápido, mais perspicaz, mais interessante, sempre mais. Sempre melhor. Tudo à nossa volta nos diz que se não formos os melhores, os outros nos passam por cima, como se de uma luta pela sobrevivência se tratasse (não será, no fundo, exactamente isso?). É gritante a urgência para alcançarmos a perfeição. O estudante de Medicina, futuro médico, deve ser o espelho da perfeição. Sem falhas, sem erros, sem indecisões. Decisões rápidas. Tic, toc. Decisões certeiras, porque a vida é um jogo onde não se pode recomeçar. Tic, toc. Quem definiu tal desumanidade?

Dar mais? Sim, dar mais de nós aos outros. Salvar mais, abraçar mais, sorrir mais, ajudar mais, ser mais. Ser mais? Sim, ser “mais pessoa”. Descer do pedestal onde nos colocaram sem repararmos e onde não queremos estar. Colocarmo-nos de igual para igual com a pessoa que temos à nossa frente e que deposita a sua esperança em nós. E os medos e as dúvidas. Ser mais humanos. Sem falhas, sem erros, sem indecisões. Não será contraditório?

Grandes conquistas atraem muitas responsabilidades. Ter uma vida nas mãos atrai muitas mais. Ninguém duvida da importância de uma vida. De cada vida que se cruza com a nossa. Como ninguém duvida que cada um de nós fará tudo por cada uma dessas vidas. Isso implica nunca errar, certo? Num mundo utópico e maravilhoso podia ser. Mas no desregulado e caótico planeta azul, ser humano significa errar. Miseravelmente. Tantas vezes quantas as possíveis de se contar e mais ainda. Nós, estudantes de Medicina, futuros médicos, sabemos que não temos a mesma tolerância da maioria das outras profissões. Estudamos anos e anos para tentar saber tudo aquilo que conseguirmos, as causas, os sintomas, os tratamentos, as novas descobertas. Na esperança que, quanto mais e melhor soubermos, menos margem teremos para errar. Observamos os que têm mais experiência, ainda com incerteza se algum dia teremos tanta certeza. Fazemos de tudo para nos prepararmos para o futuro que nos aguarda lá ao fundo do túnel.

Digam o que disserem, temos medo de errar. Um medo que assusta qualquer um. Pela vergonha, talvez. Pela culpa, quase de certeza. Pelo peso na consciência, pelo sentimento de fracasso, pela tristeza, pela frustração, pela incerteza das capacidades, por tantas razões que nem consigo enumerar. Sabendo que “perfeito” é uma qualidade inexistente nos dias que correm (faz com que se torne um defeito?), o que fazer perante um erro, que mais tarde ou mais cedo, será inevitável? Se houvesse um livro, um guia passo a passo para tudo o que acontecesse na nossa vida, era muito mais fácil mas, e desculpem o cliché, tudo perdia a essência. Uma das razões para ter escolhido Medicina foi não querer uma vida de rotina, confinada a uma secretária, a papéis e um computador (a época de exames está fora da balança). É isso que espero do e no futuro. Cada dia uma aventura, um desafio, uma superação. E se errar? Ah, quando errar, melhor dizendo, quero aprender, melhorar, ser mais humana. Que cada erro seja uma aprendizagem. Que cada indecisão se torne uma certeza. Que cada desvio do caminho signifique um retorno mais confiante. Um degrau acima, mais perto da perfeição, e no entanto, tão longe como no princípio. Escadaria interessante, esta.

Ser médico é ser perfeito na imperfeição, a âncora que nos prende à humanidade e que nos permite, apesar das falhas, sermos o melhor que algum dia poderemos ser. Termino citando a Joana Aguiar, porque nem todos temos o dom da palavra e de resumir tão grandes ideias em pequenas frases e porque a melhor forma de terminar é em grande.

“Que os seus gestos, precisos, também possam tremer – se tremer for o que ainda faz de nós homens. Homens que sejam tão bons como máquinas facilmente serão substituídos. Por máquinas.” 

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Tem 21 anos e é aluna do 3º ano da FCM-NOVA. Desde sempre teve um fascínio pelo corpo humano e tudo o que estivesse relacionado. Essa razão, aliada ao facto de adorar pessoas fez com que a Medicina fosse a única e possível escolha. A escrita surge como um hobbie e uma forma de partilhar os pensamentos que vão surgindo com pequenas coisas do dia-a-dia.

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