Um AUTêntico estereótipo 

Hoje em dia, os processos que moldam o entendimento geral das perturbações do espectro do autismo foram distribuídos por uma enorme variedade de pessoas e instituições, desde a literatura e o cinema à educação e aos media. Uma melhor compreensão desta condição obriga a uma análise pormenorizada da relação intrínseca entre a visão “especialista” ou “clínica” do autismo e a sua percepção geral, que se manifesta no modo como as pessoas com perturbações no espectro são representadas em séries como The Big Bang Theory, ou em filmes como Rain Man. O facto de existir algo como uma percepção geral do autismo, melhor ilustrada como um conjunto de estereótipos, é graficamente exposto por aquilo que os filmes precisam ou não de mostrar para explicar o autismo.

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A jovem e incompleta história desta condição terá, por si, algum papel na necessidade de formar estereótipos que preencham as lacunas. A palavra “autismo”, do alemão Austismus, foi cunhada em 1910 pelo psiquiatra suíço Paul Bleuler (1857-1939), resultando da combinação da forma grega autos – referente ao próprio – e o sufixo ismus, de acção ou estado, pretendendo passar a noção de “auto-contemplação mórbida”, através da referência à “alienação do paciente nas suas próprias fantasias e na qual as influências externas se tornam uma perturbação intolerável”.

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Dr. Itard e Victor

Alguns exemplos da perturbação foram descritos muito antes deste baptismo. Leo Kanner, um dos pioneiros na sua caracterização, cita Lutero num dos seus trabalhos: no no seu livro Tischreden, o padre alemão relata o caso de uma criança com comportamento incomum, recomendando que esta fosse afogada por estar claramente possuída pelo demónio e carecer de alma. Também o caso de Hugh Blair cruza as fronteiras deste tema: em 1747, Hugh compareceu em tribunal para uma decisão relativa à sua capacidade de contrair matrimónio. De modo a herdar na totalidade a herança de Blair, o seu irmão mais novo terá conseguido a anulação do casamento deste, com base no depoimento de 29 testemunhas, segundo as quais os défices nos seus relacionamentos sociais incluíam “falta de tacto” e olhar anormalmente fixo, em conjunto com ecolalia e comportamentos repetitivos, entre outros. Na altura, Hugh foi diagnosticado com “falta de senso comum” e com uma “loucura silenciosa”. Em contraste com estes relatos está o caso de Victor, o famoso enfant sauvage, encontrado nu e coberto de cicatrizes nos bosques de Aveyron, em 1798, com 11 anos. Foi Jean Itard, um jovem médico francês, quem se dedicou a educar e humanizar o jovem. As descrições de Itard (Lane, 1977) referentes ao comportamento do rapaz sugerem uma forte componente autista.

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Dr. Leo Kanner

Nas proximidades da segunda guerra mundial foram feitas duas contribuições fulcrais para o estudo da psicopatologia infantil, cujos autores colocaram sob a etiqueta do autismo. A primeira foi de Leo Kanner, com trabalhos como Autistic Disturbance of Affective Contact (1943) e Early Infantile Autism (1956), onde descreveu, a partir da análise de 11 casos observados em crianças, um quadro clínico caracterizado pela precocidade do seu aparecimento – primeiro ano de vida – , uma sintomatologia marcada pela “imobilidade” do comportamento (sameness, addicted to routine), a preferência pela solidão e um atraso ou ausência na aquisição da linguagem verbal. No entanto, Kanner também contribuiu para a propagação de um dos estigmas mais danosos relacionados com o autismo. Ainda que tivesse sugerido, correctamente, a implicação de factores genéticos nas causas do autismo, afirmou erroneamente que a condição era fruto das chamadas “Refrigerator Moms”, ou seja, que a condição era causada pela frieza e rigidez dos pais, que cuidariam do filho como se de uma máquina se tratasse. Infelizmente, estas ideias foram facilmente absorvidas pela comunidade psiquiátrica e contribuíram para o descrédito da hipótese de uma patologia cerebral de origem biológica. O impacto destas ideias foi devastador – pais avassalados pela culpa, famílias divididas na tentativa de apontar culpados e, sobretudo, crianças sem o tipo de educação e apoio de que necessitavam.

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Dr. Hans Asperger

A segunda contribuição contemporânea foi a de Hans Asperger (1906 -1980), que publicou Die Autistiche Psychopathen in Kindersalter (Viena, 1944), ainda que a ocupação nazi da Áustria tenha levado a que este apenas se tornasse conhecido muito mais tarde. Apesar de também ter empregado o termo “autismo”, o quadro clínico descrito por Asperger era diferente do “autismo infantil precoce” de Kanner: os pacientes eram de idade superior e sem atrasos significativos no desenvolvimento cognitivo ou na aquisição da linguagem. Por ter descrito esta síndrome aquando do regime nazi, cujos defensores da “higiene racial” defendiam a eutanásia activa daqueles afectados por condições julgadas hereditárias ou incuráveis (como a esquizofrenia ou o vulgo “atraso mental”), Asperger tomou uma atitude “protectora” em relação a estes indivíduos, alegando que o facto de alguns apresentarem dotes incomuns nalguns terrenos intelectuais mostrava que não se tratavam de “atrasos mentais” per se.

Foi apenas nos anos 70 que o autismo passou a ser compreendido como uma perturbação biológica do neurodesenvolvimento cerebral. Em 1980, o DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, publicado pela American Psychiatric Association) distinguiu finalmente o autismo da esquizofrenia infantil (confusão terminológica que havia surgido após os primeiros trabalhos de Kanner) e, sete anos depois, o DSM-IIIR divulgou uma checklist de critérios para o diagnóstico do autismo. De 1994 a 2000, o DSM-IV e o DSM-IV-TR expandiram a definição de autismo, de modo a incluir a síndrome descrita por Hans Asperger (Síndrome de Asperger) e, em 2013, o DSM-V junta várias subcategorias num diagnóstico “holístico”, a Perturbação do Espectro do Autismo, definida por dois critérios: comunicação/interacção social debilitada e comportamento repetitivo e/ou restrito.

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DSM-IV vs DSM-V – critérios de diagnóstico

Em comum, estas produções apresentam no seu enredo uma personagem com uma perturbação no espectro do autismo (PEA), oferecendo-nos uma imagem do que, por vezes, poderá ser uma concepção errada, ou pelo menos incompleta, da vida real de uma pessoa no espectro. Apesar da consciência de que nenhuma história ficcional pode englobar toda a complexidade de uma experiência vivida, é notória uma tipificação das personagens em causa, com certos temas e características mais destacados e aos quais é dada, claramente, maior importância.

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Linda em “Snow Cake”

Até há pouco tempo, a maioria dos filmes protagonizados por personagens autistas incluía uma situação em que um perito, geralmente um psiquiatra, expunha a realidade clínica do autismo – porém, actualmente, tal raramente se verifica.

No filme “Snow Cake”, o autismo da protagonista, Linda, é “desvendado” numa única fala de um diálogo entre vizinho e protagonista masculino – “Autistic, but very verbal.”. Não são necessárias mais explicações, porque tanto o protagonista como a audiência compreendem perfeitamente a situação: compreendem a razão pela qual Linda alinha cuidadosamente os sapatos no hall de entrada, porque recordam que a desarrumação deixa um autista pouco à vontade; compreendem porque, em resposta a uma condolência (I’m so sorry you lost your daughter), Linda responde “She’s not lost, she’s dead”, porque uma pessoa no espectro é terrivelmente literal. E não é necessário um profissional de saúde para o explicar – o facto de a cena da “Bata Branca” ter sido gradualmente posta de parte ilustra a proliferação de alguma “cultura geral” no que concerna o autismo, ainda que grande parte desta possa constituir um “overlap” de estereótipos com pouco fundamento verídico.

Nas personagens em causa, observa-se quase invariavelmente uma  incrível inteligência, ou habilidade intelectual; qualquer que seja o seu campo (na maior parte das vezes científico), destacam-se tanto academicamente como laboralmente. A percepção de “special skills”( “islets of ability,” “savant skills,” ou “splinter skills” ) nas PEA tem existido desde o reconhecimento da síndrome de Asperger, em 1943. No entanto, apesar dessas capacidades únicas existirem de facto em indivíduos com PEA, tal acontece em menos de 10% dos casos, levantando-se a hipótese de estarem associadas a um estilo cognitivo da perturbação (e.g interesses restritos, foco no detalhe).

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Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) e Dr. Virginia Dixon (Grey’s Anatomy) – personagens com Síndrome de Asperger

O estereótipo do “autista sábio” é, sem dúvida, uma das maiores discrepâncias entre a visão clínica e a visão “comum” do autismo. A questão que se levanta é a da inocuidade desta associação: embora possa contribuir para a empatia, aceitação até, do público em geral pelas pessoas com PEA, é discutido que o mesmo estereótipo é causa de desilusão e frustração para aqueles (a larga maioria) que não possuem tais traços. Numa análise às obras cinematográficas supracitadas, Stuart Murray (Professor of Contemporary Literatures and Film na Universidade de Leeds), com um filho autista, argumenta que é apenas o “special skill” que constitui o valor da personagem com autismo; sem essa característica não haveria um enredo, muito menos uma vida social fora dele. Anthony Baker (Professor de Inglês na Tennessee Technological University), também com um filho autista, salientou ainda que, quando aborda o diagnóstico do filho com outros, é comum questionarem-no acerca dos “dotes” da criança.

A 'obrigatoriedade' dos 'dotes'
Quando Baker responde que o seu filho não os possui [dotes] e é “apenas” autista, é como se este fosse duplamente afectado – como se, para um autista, existissem apenas duas opções: ou uma capacidade sobrehumana ou uma capacidade severamente diminuída, sem nenhuma opção intermédia.

Baker discute ainda o modelo de um cérebro “computacional, inumano” proposto pelos diversos filmes, que apresentam o pensamento autista como “mecanizado” ou “automatizado”. Esta visão robótica do autismo poderá reforçar o mito perigoso de que as pessoas com PEA não possuem quaisquer emoções ou sentimentos.

De salientar ainda que não são poupadas as representações de feitos extraordinários da autoria destas personagens, ao contrário da representação de comportamentos excepcionalmente desafiantes que à condição se encontram associados, excepto para efeitos de comédia. Por outras palavras, o desconforto de algumas reacções espontâneas a alguma perturbação minor (meltdowns, “birras”), ou outros comportamentos socialmente “embaraçosos”, raramente são observados ou descritos com uma contextualização correcta, o que representa uma falha importante na justiça devida às pessoas com PEA ali representadas.

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O espectro (simplificado). Os dois pólos encontram-se afastados por uma quase infinidade de condições.

No que toca a outro ponto igualmente importante, Gyasi Burks-Abbott, escritor e ele próprio autista, escreveu num capítulo do seu livro Autism and Representation (2005), ao qual chamou “Mark Haddon’s popularity and other curious incidentes in my life as an autistic” [referindo-se ao livro “O Estranho caso do cão morto”, em inglês “The curious incident (…)”] que, ao abordar o seu autismo pela primeira vez com outras pessoas, lhe é perguntando instantaneamente se já leu o livro de Haddon, como se este fosse o melhor exemplo de um livro sobre o autismo. Acrescenta ainda que, actualmente, são dezenas os livros acerca da condição autista escritos por autistas, embora o público pareça preferir ficção elaborada por um autor neurotípico, ilustrando o perigo de os estereótipos construídos por filmes, séries ou livros eclipsarem os relatos verídicos de psiquiatras, pediatras ou, mais importante, das próprias pessoas com doenças no espectro.

Apesar de, na sua maioria, inconscientes e propagados com a melhor das intenções, os estereótipos relacionados com as PEA são muitas vezes ilusórios no que ao comportamento de um indivíduo em particular concerne. Contrastando com a natureza espectral do diagnóstico de autismo, há quem seja forçado a tomar decisões dicotómicas frequentemente num ambiente profissional. “Deverá esta criança ter acesso a educação especial?”, ou “Deverei empregar esta pessoa?”, ou ainda “Deverei punir legalmente esta pessoa, que alega uma PEA?” – perguntas legítimas, respondidas invariavelmente com base não só em conhecimentos científicos transmitidos por um perito ou adquiridos pelo próprio, mas também, em última instância, no que o próprio pensa que sabe acerca da condição, baseado em percepções gerais acerca da mesma, que poderão ou não ter sido influenciadas por estereótipos comuns.

Ao ser-se exposto a informação dos vários media, é possível absorver perspectivas válidas, falsas ou exageradas acerca de diversas realidades. Assim sendo, uma escolha cuidada e um apurado espírito crítico são fulcrais. É essencial dar espaço àquela que deve ser a fonte dominante de informação relativa às PEA: a voz daqueles que com estas partilham o guião da sua vida.

Para saber mais

“If I could snap my fingers and be nonautistic, I would not. Autism is part of what I am.” Citação de Temple Gradin

Brief Report: Stereotypes in Autism Revisited, Jennifer Christina Kirchner • Florian Schmitz •
Isabel Dziobek

The history of autism, Sula Wolff

El autismo. Historia y Classificaciones, Jean Garrabé de Lara

Autism Spectrum Disorder in Popular Media: Storied Reflections of Societal Views, Christina Belcher; Kimberly Maich

Stereotypes of autism, Douwe Draaisma

The History of Ideas on Autism : Legends, Myths and Reality, Lorn Wing

Fontes das imagens

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/af/Leo-Kanner.jpeg

http://2.bp.blogspot.com/-wrlEMV1_YUQ/VOTNe2Nv-NI/AAAAAAAAFgg/7nydkILHX9g/s1600/A2.jpg

http://legacy.earlham.edu/~chickha/evolution%20of%20language/ItardVictor.jpg

http://m3.wyanokecdn.com/bc3002dddeb030762a7a53eb9ee8fe96.jpg

http://3.bp.blogspot.com/_WPhP5WnEDeA/S-sGWJ8ZVoI/AAAAAAAAATI/yfMRt6cmhDU/s1600/Copy+of+AutismSpectrum.jpg

http://www.imagozone.com/var/albums/filme/Snow%20Cake/Snowcake%20mi%209.jpg?m=1293067188

https://alexraphael.files.wordpress.com/2014/05/sheldon-cooper.jpg

http://static1.wikia.nocookie.net/__cb20130506001436/greysanatomy/images/6/65/510VirginiaDixon.png

 

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