Transplante renal: aclarar o mercado negro?

Eis um tema longe de ser consensual nos dias de hoje: deve o mercado de transação de rins humanos para transplante ser, ou não, legalizado? Deve esta obscura e, muitas vezes, atroz realidade ser tornada lícita e  regulada por organismos supervisionados pelo Estado, legitimados e empenhados no sucesso de todas as partes envolvidas no processo de transplante? A FRONTAL levanta, neste artigo, parte do véu que oculta esta realidade de alguns dos seus leitores.

transplant

Comparativamente com a maioria dos mercados de órgãos, aquele que se desenvolveu em Teerão, capital do Irão, onde estão localizados os principais hospitais de transplantação do país, não é o mais cruel. E não é também, certamente, o menos discutido. A doação de órgãos é ubíqua em todo o mundo; já a venda lícita destes, não. É exclusiva do Irão.
Neste país, são vários os anúncios de compra e venda de rins, visíveis nas páginas dos jornais ou mesmo em outros meios de comunicação social, menos convencionais, como simples paredes de edifícios ou muros. Existem, nas imediações dos hospitais, ruas que já estiveram mais longe de ser autênticos Kidney’s eBays.

Casos de iranianos endividados que decidem anunciar o seu interesse na venda de um dos seus rins, são hoje uma realidade. Ou de doentes com insuficiência renal em estádio terminal cujo transplante é o último e único fôlego de vida que lhes resta, que publicam um anúncio no jornal de procura de vendedor interessado. E diga-se que, no contexto iraniano, estas “aspirações” são correspondidas na maioria dos casos.

Eis outro cenário: a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, anualmente, existam cerca de 10.000 operações envolvendo a compra de órgãos no mercado negro. Há evidências de que os traficantes, ou seja, os intermediários deste mercado, estão a desafiar leis criadas para lhes amputar o campo de ação e a lucrar com o aumento galopante da necessidade de rins para transplante, devido, em grande parte,  ao crescente número de hipertensos e diabéticos.
Muitos dos doentes, abastados, a necessitar de cirurgia de substituição renal, vão para países como a China, Índia ou Paquistão para a realizarem, onde podem chegar a pagar valores da ordem dos 145 000 euros a diversos “gangues”. Estes recorrem, sobretudo, a órgãos colhidos a pessoas de camadas desfavorecidas e desprotegidas da sociedade. As redes de tráfico ilícito de órgãos proliferam e prosperam, tendo algumas delas já sido desmanteladas.
É neste pano de fundo que o caso, muito badalado nos media, de um jovem chinês de 25 anos que foi aliciado a trocar um dos seus rins por um iPad pronto a usar, se desenrolou.

Há evidências de que os traficantes, ou seja, os intermediários deste mercado, estão a desafiar leis criadas para lhes amputar o campo de ação e a lucrar com o aumento galopante da necessidade de rins para transplante (…).

O mercado ilegal de órgãos, em 2006-2007, perdia força e estava a recuar, segundo Luc Noel, médico e oficial da OMS que gere uma unidade de monitorização de doações e de transplante de órgãos humanos. Contudo, acrescenta que esta teia pode estar a inverter a tendência recessiva dos últimos anos, a fortalecer-se novamente e a aumentar as suas proporções.
Existe uma necessidade crescente de órgãos para transplante e uma janela de oportunidade para se fazer muito dinheiro. A parada é de uma dimensão tal, e a potencial margem de lucro é de tal forma grande, que a tentação de embarcar neste negócio é inquietante, refere ainda Noel.

Órgãos e lucro – dois elos, infelizmente, muito ligados.

Dados da OMS, referentes a 2010, indicam um total de 106 879 órgãos sólidos transplantados nos 95 estados membros (legal e ilegalmente), dos quais 73 179 (68,5%) eram rins. E isto cobriu apenas 10% dos órgãos globalmente necessários. Destes transplantes, não se sabe ao certo quantos foram feitos por caminhos tortuosos; não obstante, a OMS estima que 1 em cada 10 daqueles 106 879 órgãos tenha sido procurado no mercado negro, ou por outras palavras, que os traficantes de órgãos tenham lucrado 11 000 vezes no ano de 2010.

(…) a OMS estima que 1 em cada 10 daqueles 106 879 órgãos tenha sido procurado no mercado negro, ou por outras palavras, que os traficantes de órgãos tenham lucrado 11 000 vezes no ano de 2010.

Embora eticamente questionável, a opção tomada pelos dirigentes iranianos de abrir espaço na lei para a venda e compra de órgãos contribuiu para a extinção das listas de espera para transplante renal no Irão em 1999. Permitiu também o combate ao tráfico ilegal de órgãos. Este processo teve, como peças centrais, duas organizações não-governamentais, sem fins lucrativos, a Charity Association for the Support of Kidney Patients (CASKP) e a Charity Foundation for Special Diseases (CFSD), responsáveis por encontrar potenciais vendedores, apresentá-los aos recetores, assegurar a aferição da histocompatibilidade orgânica e garantir a justiça e razoabilidade da transação. O mercado de órgãos iraniano tornou-se regulado pelo governo e deixou de ser mediado por traficantes cujos meios para atingir os seus objetivos são, num significativo número de vezes, bem mais duvidosos e desumanos.

Por outro lado, a decisão de legalizar a mercantilização de órgãos humanos não pode, nem deve ser tomada de ânimo leve. É sempre suscetível de discussão e refutável permitir, por lei, que se considerem os órgãos e tecidos humanos como uma mera mercadoria, e que, consequentemente, se estenda o tapete à exploração do fosso entre quem tem e quem não tem dinheiro, entre quem pode e quem não pode pagar um órgão, e ao aproveitamento da fragilidade e delicadeza da situação económica dos mais desfavorecidos.
Muitos estarão dispostos a vender o seu rim para pagar a operação de um filho criticamente doente, e outros tantos já o fizeram.

Por outro lado, a decisão de legalizar a mercantilização de órgãos humanos não pode nem deve ser tomada de ânimo leve.

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