Álcool, Amigo do Coração?

É já sobejamente conhecido o facto de que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas está, sem sombra de dúvida, associado a um risco aumentado de desenvolvimento de patologia cardiovascular (e não só). No entanto, como em todas as áreas, também na Medicina não há regra sem exceção. E foi isso mesmo que um estudo recente desenvolvido por médicos dos Estados Unidos e do Japão veio mostrar: que o álcool até poderá ser solidário com o coração, particularmente no caso deste sofrer de fibrilhação auricular.

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Fibrilhação Auricular: alteração da condução elétrica do coração e respetiva representação eletrocardiográfica, por comparação a um coração saudável. 

A Doença

A fibrilhação auricular é o tipo mais comum de arritmia cardíaca (situação em que existe uma alteração da frequência ou do ritmo cardíacos) e cursa com batimentos rápidos e irregulares. Esta irregularidade deve-se ao facto de as aurículas estremecerem ou “fibrilharem” em vez de se contraírem normalmente.

Durante um batimento cardíaco normal é a partir do nódulo sinusalestrutura do coração que funciona como um pacemaker fisiológico – que se originam os impulsos elétricos responsáveis pela contração das aurículas. Na fibrilhação auricular estes impulsos provêm de focos ectópicos dispersos por toda a aurícula, desencadeando 300 a 500 contrações auriculares por minuto.

A contração ineficaz das aurículas leva a uma acumulação de sangue nas câmaras cardíacas, aumentando o risco de formação de coágulos. Estes podem causar fenómenos embólicos se forem transportados pela corrente sanguínea para órgãos como o cérebro ou o pulmão, desencadeando, respetivamente, um acidente vascular cerebral (AVC) ou um tromboembolismo pulmonar.

A prevalência da fibrilhação auricular aumenta com a idade, sendo rara em jovens adultos e atingindo cerca de uma em cada 12 pessoas acima dos 80 anos.

A educação para a Fibrilhação Auricular, segundo a American Heart Association e a American Stroke Association. 

A Descoberta

A equipa de eletrofisiologia cardíaca do Houston Methodist DeBakey Heart & Vascular Center, composta por médicos dos Estados Unidos e do Japão e liderada pelo Dr. Miguel Valderrábano, conduziu um estudo que levou à descoberta de uma nova forma de tratamento da fibrilhação auricular. O que esta equipa fez foi adicionar uma pequena quantidade de álcool à técnica minimamente invasiva utilizada atualmente para tratar a fibrilhação auricular, a qual tem como alvo um conjunto de nervos desencadeadores de arritmias, visando atrasar ou interromper a transmissão de impulsos elétricos que conduzem àquela doença.

A veia de Marshall – pormenor anatómico e visualização em angiografia cardíaca. Imagem retirada de: http://4.bp.blogspot.com/-ftppuEmQm4E/UZvfWtnUUkI/AAAAAAAAAJk/LkpGohiWngM/s1600/VeinMarshall.gif

Mais especificamente falando, esta equipa de médicos descobriu que a adição de 4 ou menos injeções de 1mL de etanol a 98% à ablação por radiofrequências com auxílio de cateter – a tal técnica cirúrgica standard -, próximo da veia de Marshall, era suficiente para danificar ou destruir esses nervos e, consequentemente, impedir a sobrestimulação elétrica do coração. O motivo pelo qual este estudo incidiu sobre esta veia, também designada de veia oblíqua da aurícula esquerda, foi o facto da mesma estar frequentemente associada à génese da fibrilhação auricular.

A eficácia do uso do etanol ficou comprovada pelo facto de, após o procedimento, os médicos não terem conseguido desencadear uma fibrilhação auricular artificial induzida por estimulação elétrica, técnica utilizada na terapêutica cirúrgica standard para determinar o sucesso das ablações. A ablação química com etanol será, deste modo, uma técnica com menor risco associado à abordagem cirúrgica e com menor risco de lesão de estruturas adjacentes, comparativamente ao uso de radiofrequências. Aparentemente não existem complicações relacionadas com a infusão de álcool – isto porque a concentração de álcool encontrada no sangue dos doentes foi de zero – ou mesmo com o acesso ao cluster de nervos da veia de Marshall.

Ablação cirúrgica por radiofrequências com auxílio de cateter, a atual técnica de tratamento da Fibrilhação Auricular.

É de notar que, apesar da ablação por radiofrequências ser ainda, de longe, a técnica mais utilizada no tratamento da fibrilhação auricular, o que se verifica é que, em muitos casos, a doença recorre alguns meses ou anos após a intervenção, o que leva a que muitos doentes optem por uma segunda ablação. Este estudo é, portanto, bastante pertinente neste aspeto, uma vez que surge no contexto da tentativa de melhoria das técnicas existentes, de modo a que uma única intervenção seja curativa.

No entanto, como não podia deixar de ser, os resultados promissores alcançados não evitam que se levantem algumas questões acerca de aspetos como: a durabilidade da técnica, a possibilidade de intervenção em doentes sem veia de Marshall (variação anatómica) e a possível indução de instabilidade na rede nervosa cardíaca com consequente aumento do risco de arritmias.

As fontes online do estudo mencionado são múltiplas, podendo o mesmo ser encontrado, por exemplo, no sítio da American College Cardiology Foundation, no da revista Science Daily, no da TCTMD (The Source for Interventional Cardiovascular News and Education) e no do Pubmed.

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