Conscientia: Vini, Vidi, Vici

Desvendar os mistérios que a mente e o cérebro apresentam não é fácil. A FRONTAL comemora o Ano Europeu da Saúde Mental e do Cérebro e convidamos o leitor a embarcar na descoberta do labirinto da consciência.

Mente, corpo e unidade

“Mente sã, corpo são” é uma expressão que traduz uma perspetiva integradora do ser humano. A ideia de dissociação entre mente e corpo está cada vez mais afastada do atual conhecimento científico. Anteriormente a mente era tida como uma entidade não material, descrita em termos filosóficos e religiosos. Hoje surgem evidências sobre os fenómenos que explicam os componentes da mente humana, nomeadamente a consciência.

Como se estabelecem, então, as relações entre cérebro e mente? De onde surge, afinal, a consciência? Estas questões são precisamente abordadas nas obras O erro de Descartes, O Sentimento de Si e O Livro da Consciência, da autoria de um dos mais conceituados e prestigiados neurologistas da atualidade, António Damásio. Ao leitor é possibilitada a reflexão sobre a sua própria existência, a mente, a consciência, as emoções, os sentimentos, a memória e a atenção. O que inicialmente pode parecer minimamente intuitivo revela-se extremamente complexo.

Veja-se o cérebro como uma estrutura de relevo anatómico, que sofreu alterações no decurso da evolução e que integra parte do sistema nervoso central. Possui diferentes níveis neuronais, desde o plano micro- até ao macroscópico. Globalmente pode ser visto como um sistema de sistemas (ou rede). As suas funções, resultantes de operações que se estabelecem nessa rede, estão dependentes dos fatores que Damásio enumerou: as comunidades locais de neurónios, a interação entre elas e, também, a localização das referidas comunidades de neurónios.

Mais complexo é aquilo que se entende como sendo a mente do ponto de vista científico. A mente pode existir, mesmo quando não existe consciência. Consciência pode traduzir-se pela perceção e pelo conhecimento do “Eu” e do que o rodeia exteriormente. No entanto, a definição de consciência abrange o conceito de vigília.

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Mecânica integradora

A neurologia da consciência, de forma geral, diz-se ser da responsabilidade de três estruturas principais: o tronco cerebral, o tálamo e o córtex cerebral.

O tronco, além de contribuir para a formação do “Eu” autobiográfico, participa no estado de vigília (juntamente com o hipotálamo), de forma que se pensa ser ele a sede da construção da mente, processando informação vital como a alimentação e a respiração. É de realçar que só acima do nível médio da ponte é que a recolha da informação sobre o nosso corpo se torna completa: “Em níveis inferiores do tronco cerebral ou da medula espinhal, o sistema nervoso apenas consegue obter informações parciais acerca do corpo (…) Só acima deste nível – o de entrada do trigémio no tronco cerebral – é que o cérebro fica na posse de toda a informação que precisa para criar mapas sobre o corpo inteiro” – in Livro da Consciência.

O tálamo assemelha-se a uma estação de serviço que permite a passagem de informação entre o tronco cerebral e o córtex, coordenando as atividades corticais.

Já o córtex, além da sua contribuição para a manutenção do estado de vigília, adquire relevância na concentração, imaginação, raciocínio, linguagem, construção de conceitos e da identidade pessoal. No entanto, seria incapaz de o efetuar sem os dois setores anteriores.

As alterações da consciência podem ter origem em alterações de qualquer um destes componentes. Em especial num território específico que, ao abranger as estruturas já descritas, adquire uma grande importância nas bases anátomo-fisiológicas da consciência: a substância reticular ativadora ascendente (SRAA). Esta integra os núcleos cinzentos do tronco cerebral e o tálamo, recebendo aferências das vias sensoriais que permitem a ativação do SNC.

As lesões extensas dos hemisférios cerebrais, danos específicos do tronco (acima da ponte), do tálamo, ou mais especificamente da SRAA, originam depressão da consciência que podem levar ao coma. Outras causas comuns de coma são: AVC (a causa principal), insulto tóxico ou metabólico ao SNC, epilepsia, traumatismo craniano e infeção. O coma insere-se nas perturbações agudas da consciência, que abrangem também outras alterações atribuídas à diminuição da vigília, como a sonolência, o delirium e o estupor.

Ao referir a sonolência como uma causa aguda de alteração da consciência, torna-se importante conhecer quais os efeitos que o sono ou a sua privação adquire no quotidiano. O ciclo do sono tem uma duração média de 90 minutos, e ocorre 4 a 5 vezes por noite. Um adulto normal necessita de aproximadamente 8 horas de sono. Menos de 5 a 6 horas provocam sonolência diurna excessiva, alteração do humor, disfunção cognitiva, disfunção cardiovascular, alteração na secreção hormonal, diminuição da imunidade celular, além do aumento do risco de vida devido a acidentes múltiplos por perda da capacidade de reação (facilmente se percebe que o objeto da consciência é a gestão e proteção da vida). Atualmente a insónia afeta 35% da população em geral, sendo que 10 a 15% classificam a sua insónia como moderada a severa.

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Ciência divina ante mortem

É impensável negar que cada um alguma vez se perguntou sobre o misterioso caminho da morte: as sensações que nos percorrem, as visões que emergem à superfície, as memórias recordadas. A perspetiva de não existir parece tão difícil de aceitar que várias culturas têm naufragado em diversas crenças espirituais e religiosas que imortalizam a consciência após a renúncia física do corpo humano.

As crenças sobre a perseverança da consciência têm sido reforçadas por diversas histórias invulgares de experiências de quase-morte, caracterizadas pela dominância da tranquilidade, visões de túneis ou luzes brilhantes ou perceção da separação do corpo físico. Muitos neurocientistas revelam-se céticos quanto a este tema enigmático. Contudo estas experiências, frequentemente relatadas após os eventos ameaçadores de morte, não podem ser desvalorizadas. O mais impressionante é que são consistentes entre sujeitos e respetivas culturas, revelando-se uma grande evidência de que estes fenómenos podem, de facto, acontecer.

O grande desafio da ciência será desvendar o mistério da forma como o cérebro é capaz de criar estas experiências, descartando a hipótese de que a consciência pode ser uma entidade independente.

Apesar das teorias metafísicas e religiosas, a essência destes acontecimentos também pode ser explicada pela ciência, através do desequilíbrio das funções fisiológicas cerebrais. O “túnel da luz” não será a passagem para o céu: acontece provavelmente devido à redução do fluxo sanguíneo na retina e córtex visual. A ativação anormal de diferentes regiões encefálicas pode ser responsável pela vivência de novo de memórias passadas (à semelhança dos sonhos). Mesmo os fenómenos mais bizarros – como a consciencialização do “Eu” morto ou a visão de pessoas falecidas – podem ser relacionados com delírios e alucinações muitas vezes presentes em outras condições clínicas.

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E depois do Adeus

Apesar de toda esta informação, pouco se sabe sobre o que realmente acontece no cérebro imediatamente após o coração parar, uma vez que não se tem investigado sistematicamente sobre este assunto. Presumia-se que o sistema nervoso central se mantinha inativo durante a paragem cardiorrespiratória.

Com o intuito de descobrir mais sobre estas experiências, uma equipa da Universidade de Michigan, liderada por Jimo Borjigin, induziu paragens cardiorrespiratórias em ratinhos anestesiados. Surpreendentemente, através de electroencefalografia, descobriu que a atividade cerebral se matinha mesmo após a paragem cardíaca. Alguns padrões encefálicos tornavam-se até mais proeminentes nos 30 segundos subsequentes. Estes resultados sugerem que o cérebro poderá ter um “hurra” elétrico final à medida que se desliga. Se o mesmo processo se verificar nos seres humanos, poderá explicar alguns dos aspetos das experiências de quase-morte, como o alerta excessivo.

A ciência, tal como nas suas diversas facetas, ainda tem um grande caminho a percorrer para conseguir desvendar os enigmas da consciência e da morte. Contudo, é nesse caminho que reside a sua beleza: questionar, procurar, errar, recomeçar…

A consciência é um dom tão único que nos deveríamos sentir afortunados pela dádiva. Tal como António Damásio afirmou, “a forma mais direta de explicar o motivo pelo qual a consciência prevaleceu na evolução é dizer que contribuiu de modo significativo para a sobrevivência das espécies com ela equipadas. A consciência chegou, viu e venceu.”

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Ana Craciun é aluna do 3º da FCM-NOVA. Nascida na capital da Moldávia, Chisinau, veio para Portugal com 13 anos, determinada em dar o seu melhor e enfrentar os novos desafios. Ingressa no ensino superior em 2011 no curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, na sua 1ª opção. Gosta muito de saber o porquê das coisas e daí o gosto pela Ciência e Investigação. Futuramente quer juntar o útil ao agradável e ser uma Médica Investigadora.

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