De Leonardo a da Vinci

Leonardo da Vinci é, a priori, recordado como um dos pintores mais influentes do Renascimento. Obras intemporais como A Gioconda, A Última Ceia e o Homem de Vitrúvio assim o atestam. No entanto, reconhecido polímata, também deixou o seu legado nas mais diversas áreas, tais como a arquitetura, a engenharia e a física, tendo abordado um grande leque de assuntos, entre os quais a mecânica do voo, as propriedades hidrodinâmicas, sistemas de canais e algumas armas militares. A medicina não foi exceção.

Presumido Auto-retrato de Leonardo da Vinci. Florença, Galleria Degli Uffizi
Presumido Auto-retrato de Leonardo da Vinci. Florença, Galleria Degli Uffizi

Os primeiros indícios do seu interesse pela anatomia humana remontam a 1489, altura em que começou a elaborar o projeto intitulado Da Figura Humana. Este caderno, agora conhecido por Manuscrito Anatómico B, contém vários desenhos meticulosos do crânio humano, apresentando de forma extremamente precisa os vários cortes e conferindo-lhes uma noção de profundidade nunca antes documentada.

Embora tivesse tido acesso a um crânio humano, de modo a elaborar o estudo supracitado, a verdade é que o acesso a mais material humano era muito limitado para um artista. Assim, da Vinci fez uma pausa de 10 anos no seu estudo anatómico e dedicou-se a outras obras, entre as quais A Última Ceia. O seu interesse pela anatomia ressurgiu por volta de 1504, quando lhe foi encomendada a pintura de um mural representativo da Batalha de Anghiari no Palácio da Senhoria em Florença, o que requeria a reprodução de vários corpos em posições complexas e exigia um conhecimento rigoroso da forma humana. Esta vontade de conhecer a forma e o funcionamento do corpo humano foi crescendo progressivamente e passou a ocupar cada vez mais tempo na vida do pintor.

Já reconhecido como um artista prestigiado, foi-lhe, então, muito mais fácil obter cadáveres para dissecção. Por volta de 1507, da Vinci assistiu à morte pacífica de um homem com mais de 100 anos num hospital em Florença, o que o motivou a dissecá-lo de maneira a “observar a causa de uma morte tão doce”, conforme relata nas suas anotações. Acabou por descrever pela primeira vez a aterosclerose no estreitamento de artérias coronárias, assim como a cirrose hepática. Ao longo dos anos que se seguiram, da Vinci dissecou cerca de 30 cadáveres e os resultados dos seus estudos foram compilados em 18 folhas conhecidas como o Manuscrito Anatómico A.

Para além de constituírem uma representação minuciosa e inovadora da forma dos músculos, ossos e tendões, as mais de 240 figuras acompanhadas de anotações demonstram também uma preocupação em ligar a forma com a função. O traço de da Vinci conferiu movimento e tridimensionalidade a imagens estáticas e bidimensionais através de poses cuidadosamente escolhidas – por exemplo, com rotações subtis e posicionamento cuidadoso dos membros de maneira a realçar a função de determinados grupos musculares.

Esboços Anatómicos de Leonardo da Vinci (Vinci 1452-Amboise 1519)
Esboços Anatómicos de Leonardo da Vinci (Vinci 1452-Amboise 1519)

Talvez o exemplo mais representativo seja o método engenhoso com que estudou as válvulas cardíacas – através da construção de um modelo em vidro de um coração de boi, posteriormente preenchido com água e sementes em suspensão, que lhe permitiu observar as correntes e vórtices formadas na raíz da aorta. Assim, foi o primeiro a pôr a hipótese de que estes vórtices pudessem ser os responsáveis pelo encerramento da válvula aórtica, observação que veio a ser confirmada apenas no século XX com ajuda de técnicas avançadas de imagem. Observou também que o coração era constituído por quatro câmaras e que o fluxo nas válvulas era unidirecional, ao contrário do que se acreditava na altura.

Esboços de Leonardo da Vinci a descrever detalhadamente a estrutura cardíaca, os grandes vasos e as valvas cardíacas
Esboços de Leonardo da Vinci a descrever detalhadamente a estrutura cardíaca, os grandes vasos e as valvas cardíacas

O objetivo foi sempre a publicação dos rascunhos, que da Vinci acreditava conseguir terminar no inverno de 1510; no entanto, a instabilidade política na região e a impossibilidade de reconciliar as suas observações com o que acreditava ser verdade levaram a um impasse. Até à sua morte, em 1519, dedicou o restante tempo à embriologia e à descrição cada vez mais detalhada das válvulas cardíacas, nunca chegando a acabar o Manuscrito. As folhas dispersaram-se e não foram publicadas até ao ano de 1900. Caso tivesse conseguido publicar os seus rascunhos, da Vinci teria mudado o paradigma do conhecimento anatómico e seria provavelmente reconhecido como um dos maiores cientistas do Renascimento.

Reconstrução do Proto-robô Cavaleiro Mecânico (2002)
Reconstrução do Proto-robô Cavaleiro   Mecânico (2002)

Leonardo da Vinci conciliou o seu interesse pela engenharia, anatomia e fisiologia humanas ao construir, em 1495, um “cavaleiro mecânico”, que terá sido apresentado numa celebração do Duque de Milão. Este proto-robô, um autómato humanóide, teria as proporções descritas no Homem de Vitrúvio e era articulado, operando com base num sistema sofisticado de cabos, alavancas e roldanas, inspirado pelas suas observações do funcionamento dos músculos e articulações.  Em 2002, este proto-robô foi reconstruído, mostrando-se completamente funcional e capaz de se sentar, levantar, erguer a sua viseira e mexer os membros superiores de forma independente.

Embora o objetivo dos robôs fosse sobretudo o entretenimento dos seus patronos e da corte, da Vinci foi de facto um pioneiro da robótica, tendo o seu estudo da anatomia e fisiologia do movimento constituído não só a base teórica mas também a inspiração para os avanços na área do movimento automatizado. Efetivamente, alguns dos seus desenhos e mecanismos contribuíram para o desenvolvimento de robôs na atualidade: é o caso do Anthrobot da NASA (Agência Espacial Norte-Americana), um robô anatomicamente correto utilizado utilizado na exploração de Marte.

Como homenagem aos seus contributos quer para a robótica, quer para a medicina, a empresa americana Intuitive Surgical Inc, chamou ao robô cirúrgico por ela desenvolvido, em 1995, Sistema Cirúrgico da Vinci. Este é, na atualidade, o mais complexo e eficiente sistema de cirurgia robótica em utilização.

Sistema Robótico da Vinci

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O ‘Sistema da Vinci’ tem vindo a evoluir no sentido de se tornar numa extensão natural dos olhos e das mãos do cirurgião, tornando o processo cirúrgico o mais natural e preciso possível. Atualmente, encontra-se em uso o modelo ‘da Vinci Xi’, a 4ª geração desta tecnologia, aprovado pela FDA em Abril de 2014.

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Sistema da Vinci Xi em utilização

Este sistema cirúrgico é constituído por dois componentes: o robô em si, cujos braços operam o paciente, e a consola de controlo, onde o cirurgião controla o robô, usando uma tecnologia idêntica à utilizada pela NASA no controlo dos robôs das suas missões espaciais. O robô tem quatro braços cirúrgicos: um transporta o endoscópio e os restantes podem ser acoplados a vários instrumentos cirúrgicos, como bisturis, eletrocautérios, tesouras, pinças, etc.

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Uma grande vantagem deste sistema são os instrumentos Endowrist que, contrariamente aos utilizados em laparoscopia, permitem ao cirurgião movimentos mais naturais e com maior liberdade. Esta tecnologia utiliza um conjunto de articulações, controladas por cabos “tendão”, para permitir um grau de mobilidade do instrumento superior ao do punho humano.

Instrumentos Endowrist
Instrumentos Endowrist

Na consola de controlo, o cirurgião tem acesso a uma visão em alta definição do campo cirúrgico em três dimensões, que lhe permite uma percepção em profundidade muito maior do que na laparoscopia tradicional. Esta visão é conseguida pela reprodução do vídeo em dois canais ópticos distintos, um para cada olho.

O cirurgião tem ainda a possibilidade de ampliar o campo visual, e o sistema de processamento dos movimentos de controlo permite ajustar os movimentos manuais à escala da ampliação, convertendo movimentos de normal amplitude em movimentos muito mais precisos e delicados, e minimiza ainda o tremor manual. Outra da vantagem do uso de uma consola de controlo, é a manutenção dos instrumentos na mesma linha de visão do campo cirúrgico, o que possibilita um manuseamento muito mais intuitivo dos instrumentos.

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Todas estas tecnologias incorporadas no robô facilitam muito a acção do cirurgião, e possibilitam a aplicação da Cirurgia Minimamente Invasiva (CMI) em procedimentos onde anteriormente não seria indicada, como a Cirurgia Cardíaca. Nesta, através de toracoscopia, torna-se possível por exemplo suturar um vaso a um coração em batimento durante um bypass coronário, reparar valvas cardíacas e até corrigir defeitos no septo atrial, tudo isto sem necessidade da tradicional incisão mediana com esternotomia!

Outra grande área de aplicação da cirurgia robótica é a urologia, especificamente a cirurgia oncológica da próstata, sendo que nos EUA 90% das prostatectomias radicais já são feitas com recurso ao sistema da Vinci. Um estudo da UCLA revelou menor positividade das margens e um melhor outcome terapêutico, com menor necessidade de tratamentos oncológicos pós-cirúrgicos (como terapia hormonal ou radioterapia).  No entanto, não se têm encontrado diferenças significativas relativamente à incidência de incontinência urinaria e disfunção eréctil resultantes do procedimento.

Cirurgia Minimamente Invasiva e Robótica

O conceito de cirurgia minimamente invasiva chegou nos anos 80 para revolucionar o mundo cirúrgico, substituindo cada vez mais a cirurgia tradicional. Esta modalidade cirúrgica utiliza pequenas incisões para a introdução dos instrumentos cirúrgicos e de um videoendoscópio, trazendo várias vantagens: menos tempo de recuperação, menos dor, infeções e cicatrizes. O principal paradigma da CMI tem sido sempre a Laparoscopia, no entanto, esta não pode ser aplicada a procedimentos mais complexos.

O desenvolvimento contemporâneo da Laparoscopia e da Telerobótica, tem possibilitado o desenvolvimento progressivo de sistemas robóticos cirúrgicos, com a promessa de ultrapassar as limitações da laparoscopia. Começaram por surgir braços robóticos capazes de comandar e reorientar o endoscópio nas cirurgias Laparoscópicas, como o AESOP (Automated Endoscopic System for Optimal Positioning) ou o LARS (Laparoscopic Assistant Robotic System). Posteriormente, foram criados sistemas mais complexos, com vários braços robóticos, já capazes de manusear vários instrumentos, comandados a partir de uma consola, como os Sistemas PROBOT.

 

Sistema da Vinci em Portugal

O Hospital da Luz foi pioneiro na utilização do ‘Sistema da Vinci’, tendo começado a utilizar esta tecnologia em 2010, aplicada à cirurgia colo-rectal. Desde então, já estendeu a utilização do sistema à cirurgia robótica da próstata, cardíaca e torácica. No presente, este hospital já realizou mais de 700 cirurgias robóticas, 75% das quais oncológicas.

Actualmente, já existem mais dois destes sistemas no país, um no Hospital Cuf Infante Santo e outro na Fundação Champalimaud, que fundou em 2015 a Academia Europeia de Cirurgia Robótica Colo-rectal (EARCS).

Cirurgia Colo-rectal com o robot da Vinci no Hospital da Luz, Lisboa
Cirurgia Colo-rectal com o robot da Vinci no Hospital da Luz, Lisboa
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Embora a cirurgia robótica seja muito promissora, apresenta ainda uma grande desvantagem: o preço. Um sistema ‘da Vinci Xi’ custa entre 1 e 2 milhões de dólares, sendo ainda necessários contratos de manutenção do sistema, formação específica e, por último, instrumentos específicos não reutilizáveis. Todas estas despesas somadas conduzem a cirurgias muito mais caras para o doente face à opção por laparoscopia, que na maioria das situações apresenta resultados equivalentes em termos de recuperação, complicações e prognóstico. Esta desvantagem será possivelmente ultrapassada com o surgimento de outros sistemas, que conduzirão a uma descida de preço pela concorrência.

Num futuro próximo, prevê-se que o problema da perda de sensibilidade táctil será solucionado e que surgirá a possibilidade de cirurgia a grandes distâncias. Poderá até ser possível operar com uma pequena incisão única, através da qual passam todos os instrumentos cirúrgicos! Na verdade, à velocidade a que a tecnologia tem evoluído, o futuro da robótica cirúrgica é uma página em branco, com possibilidades intermináveis e aplicações cada vez mais abrangentes. Poderia ter Leonardo da Vinci sonhado que a tecnologia chegaria tão longe?

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