EMDR: uma caminhada para esquecer

Há terapias que fogem às guidelines, e a estas habituámo-nos a chamar alternativas ou complementares. Em 1987 Francine Shapiro inaugurou uma técnica psicoterapêutica baseada nos movimentos rápidos dos olhos, à semelhança dos que ocorrem durante o sono REM, que se veio a chamar EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing). Um verdadeiro “shake the disease”?

René Magritte, O Espelho Falso, 1936

A História da Ciência é feita de acasos. Quando em 1987 a psicóloga norte-americana Francine Shapiro caminhava pelo parque da cidade de Los Gatos, na Califórnia, estaria decerto longe de imaginar que ali se daria a revelação seminal do que mais tarde veio a ser uma ferramenta importante em Saúde Mental – inicialmente para tratamento do stress pós-traumático, encontrando mais tarde aplicações também em perturbações da ansiedade, pânico e fobias, quadros depressivos, psicossomatologia, controlo da dor crónica, entre outros. Assim nascia o EMDR: EyeMovement Desensitization and Reprocessing ou Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento Ocular. Refrescante.

Aquilo de que Francine Shapiro se apercebeu nesse “passeio no parque” foi que, quando concentrada em pensamentos perturbadores, os seus olhos produziam movimentos do tipo sacádico (à semelhança do que sucede no processo de leitura, por exemplo, em que o movimento ocular não é contínuo, mas em sacada rápida e com pontos de fixação). O curioso é que a perturbação ou carga negativa associada a esses pensamentos, quando os voltava a evocar, se dissipava. Reproduziu a experiência em si própria, no seu círculo de conhecidos e por fim estendeu-a a um grupo de 70 pessoas (a quem pedia que seguissem o movimento dos seus dedos com os olhos, enquanto recordavam eventos perturbadores), tendo confirmado que a técnica os dessensibilizava a estes pensamentos. Estava lançado o mote: “a walk to remember”. Ou para esquecer.

Numa comunidade acostumada a equivaler o tratamento em Saúde Mental aos psicofármacos ou aos modelos psicoterapêuticos mais comuns (cognitivo-comportamental, psicodinâmico, psicoanalítico, etc.), um primeiro contacto com o conceito do EMDR pode parecer esotérico. Na verdade, e por se tratar de uma técnica relativamente recente, a sua dimensão e aplicabilidade foi-se alargando, sem que se tivesse estabelecido consenso científico sobre o seu [possível] mecanismo de acção, o que motiva a controvérsia sobre o EMDR ser ou não ser ou que parece. Mais favoráveis são os resultados dos estudos pós-EMDR realizados nos últimos anos, que aferem da sua eficácia e manutenção dos resultados alcançados aos 6 e aos 18 meses.

As propostas existem, mas são aproximativas – ou não fossem as ciências do comportamento áreas espinhosas. Um modelo mais psicológico sugere que a estimulação cerebral bilateral no EMDR (que inicialmente se propôs visual, mas que pode ser auditiva ou táctil) promove a comunicação inter-hemisférica e padrões síncronos de actividade neuronal, reproduzindo um ambiente neurofisiológico favorável ao normal processamento de memórias traumáticas. Um modelo mais neurobiológico defende que a normal integração de memórias é um mecanismo fisiológico multifacetado (podendo o sono, nomeadamente sono REM, ser um dos intervenientes), e que um bloqueio a um desses níveis justifica a fixação e manutenção do trauma. Assim sendo, as memórias declarativas serão inicialmente “armazenadas” no hipocampo e lobo límbico como “memórias episódicas”; no caso de eventos com carga emocional, a amígdala liga estas memórias episódicas a emoções, de tal modo que quando se volta a evocar o mesmo evento, reproduzem-se as emoções e sensações originais. Ao longo do tempo, é extraída a informação relevante acerca deste evento, e transferida para os circuitos de memória semântica localizados no neocórtex (o que nos permite “aprender com a experiência”). Uma vez concluída a integração, a memória hipocampal torna-se obsoleta, e tanto o traço mnésico como a afectação a ele associado podem ser “esquecidos”, libertando “espaço” para memórias episódicas futuras. Ocasionalmente este processo falha, e se estivermos a falar de uma memória traumática, poderemos ter aqui a génese do stress pós-traumático.

Por comparação com o sono REM, o EMDR tem a vantagem de permitir fixar a imagem relevante a trabalhar no início da estimulação bilateral, pelo que as associações que daí decorrerem ao longo da sessão, apesar de largamente automáticas e involuntárias, estarão muito provavelmente relacionadas com a imagem original. Além disso, com o acompanhamento cuidado do terapeuta, é possível manter níveis baixos de ansiedade e de medo, reduzindo a interferência no processo pelos níveis elevados de noradrenalina. O EMDR foi idealizado como terapia breve e focal, com vista a tornar assintomáticos indivíduos previamente seleccionados, podendo integrar um processo psicoterapêutico mais longo e abrangente e ser ou não acompanhado de medidas farmacológicas.

Não escolhemos o que lembrar ou o que esquecer como escolhemos a direcção em que caminhamos. Que é como dizer que as memórias não vêm à la carte. Há terapias que fogem às guidelines e a estas chamamos habitualmente de alternativas ou complementares.  Em todo o caso, tentar compreender um dos mecanismos mais complexos da mente humana não serve o ócio de cientistas desocupados. Mas arriscamos escrever que servirá decerto o modo como vivemos e nos comportamos. E até hoje o mote socrático ainda não nos deixou ficar mal: “conhece-te a ti mesmo”.

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Joana Aguiar ingressou no Mestrado Integrado em Medicina em 2008, na FCM-NOVA, onde frequenta agora o 2º ciclo de estudos. Actualmente é Directora da Revista Frontal, dinamizando a secção Sete Palmos de Testa - espaço que se quer (des)construtivo o bastante que não caiba em gavetas ou rotulações. Francamente interessada em Medicina Holística (particularmente Nutrição, Saúde Ambiental, Psicociências e Comportamento), Filosofia e Literatura, publicou pela primeira vez em 2008 um livro de Poesia, e foi agraciada em 2012 com o Prémio Literário José Luís Peixoto - Poesia.

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