Resistência aos antibióticos: um pequenino susto…

As bactérias contra-atacam

Foi em 1928 que Alexander Flemming tropeçou numa descoberta que veio a ser uma das grandes revoluções da medicina – a penicilina. Desde aí que vários outros antibióticos têm sido criados e as infecções, um dos maiores flagelos da história, foram finalmente domesticadas, embora nem todas elas nem definitivamente. Quem o afirmou foi a OMS há alguns meses atrás, preocupação agora confirmada mais recentemente e traduzida em números pelas consultoras KPMG e RAND na sua recente publicação, solicitada pelo primeiro ministro britânico David Cameron. Os números são de encher o olho, embora não pelas melhores razões: se nada for feito quanto às resistências aos tratamentos, em 2050 morrerão 10 milhões de pessoas a cada ano, vítimas de infecções outrora (isto é, hoje em dia) curáveis – mais do que o cancro actualmente (8,2 milhões).

…E agora um susto um bocadinho maior

Estima-se que actualmente 50000 pessoas faleçam só na Europa e nos EUA a cada ano devido a infecções por micro-organismos multi-resistentes (MMR’s). De acordo com o “European Centre for Disease Prevention and Control Antimicrobial Resistance Interactive Database” (EARS – NET),  as bacteriémias por Staphylococcus aureus resistentes à meticilina (MRSA) são mais de 10% em 15 países europeus, chegando alguns países quase aos 50%. Segundo o “Global Tuberculosis report 2014” da OMS, houve 480000 novos casos de tuberculose (TB) em 2013, a maioria dos quais não foi tratado. Para além disto, embora não tenha sido uma observação uniforme em todos os países, há que referir ainda que o consumo mundial de antibióticos aumentou em cerca de 40% desde 2000 a 2010, sendo que os países do grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e a África do Sul contribuíram para 75% do aumento verificado. Mas a procissão ainda vai no adro. Se juntarmos a estes ingredientes já de si amargos o facto de a indústria farmacêutica se ter desviado cada vez mais do fabrico de novos antibióticos ao longo da última década, quer por restrições rigorosas quer por lucros baixos (embora tal cenário se vá invertendo lentamente), e de – agora saindo da área de jurisdição dos antibióticos para assuntos não menos graves – estarem bem documentados casos de malária resistente ao tratamento e de HIV resistente à terapia anti-retroviral, ficamos com a cereja em cima do bolo. Deixamos a fermentar por uns aninhos e voilá: 300 milhões de mortos até 2050, 100 milhões dos quais até 2030, de acordo com os relatórios elaborados pelos grupos acima referidos. Fora os 10 milhões que morrerão por ano a partir de 2050. Isto se nada for feito.

AMR in 2050

Deve-se realçar que as estimativas um tanto ou quanto pessimistas são conservadoras. Pelas razões que se seguem:

– nesta análise apenas se entrou com alguns dos agentes em que a resistência já se começa a tornar preocupante (E. coli, Klebsiella pneumoniae e Staphylococcus aureus, três bactérias das sete que a OMS assinalou como os casos mais graves) e doenças específicas que representam problemas de saúde pública à escala mundial em que a resistência ao tratamento se poderá vir a tornar igualmente problemática, duas delas já referidas  – tuberculose, malária e SIDA (os Três Grandes);

– não se valorizaram procedimentos médicos que necessitam de antibioterapia profiláctica (cirurgias, por exemplo) nem as implicações que o aumento de infecções por MMR’s terá nas taxas de mortalidade materna e infantil;

– devido à escassez de informação relativa a este assunto a metodologia escolhida por cada um dos grupos possui um viés de selecção que naturalmente subestimará a incidência de infecções por MMR’s:

  • o grupo KPMG considerou apenas a incidência actual de infecções adquiridas na comunidade e em meio hospitalar na Europa e aplicou-a ao mundo inteiro, ignorando os restantes continentes (alguns dos quais será razoável admitir que têm uma incidência de infecções superior à europeia);
  • o grupo RAND considerou apenas a probabilidade de se adquirir infecções em meio hospitalar e multiplicou esse valor pelo número de internamentos em vários países para estimar o número de infecções hospitalares em cada um desses países, ignorando as infecções adquiridas na comunidade.

Ambos os grupos utilizaram informação disponibilizada pela OMS. O Grupo RAND partiu da anterior premissa e aplicou-a a um cenário hipotético em que, dentro de 15 anos, a resistência ter-se-á elevado até aos 100% (qualquer tratamento seria obsoleto), mantendo-se a incidência constante. A excepção foi a malária, cuja mortalidade foi prevista seguindo as previsões de 1950 (anteriores ao advento dos primeiros antimaláricos). O grupo KPMG, por seu lado, assumiu que a taxa de MMR’s ficar-se-ia pelos 40% (os tratamentos de primeira linha falhariam) mas a incidência duplicaria. A malária foi mais um vez a excepção, tendo sido dividida em sete áreas geográficas diferentes consoante a incidência, prevendo que os países com incidências mais baixas acabariam por igualar a média da respectiva região.

Os efeitos da resistência da malária revelaram-se mais difíceis de prever dado que, contrariamente aos restantes patogénios, regiões com resistência já elevada ao tratamento não são tão susceptíveis como as regiões de baixa resistência, ao passo que nos restantes micro-organismos mencionados as regiões de resistência elevada piorarão progressivamente.

A estimativa global pode ser melhor visualizada na imagem abaixo.

Deaths attributable to AMR every year by 2050

A malária, a tuberculose e o HIV são os maiores responsáveis pelas diferenças encontradas entre os diferentes continentes e países dada a sua distribuição mundial mais heterogénea comparativamente às três bactérias destacadas pela OMS. A Rússia é um país particularmente ameaçado pela tuberculose, sendo a Nigéria, a Índia e a Indonésia países de risco elevado para a malária. De referir ainda que a China e o Brasil correm o risco de verem os esforços que empregaram nas últimas décadas no sentido de controlar esta doença caírem por terra. Apesar disto, o continente mais afectado é África, principalmente devido aos Três Grandes.

Globalmente, a malária, a tuberculose e a E. coli representam os grandes responsáveis pelos resultados obtidos pelos estudos, sendo a malária a mais letal; segundo os dados do grupo RAND, a E. coli seria ainda a que afectaria mais intensamente a economia, sendo responsável por cerca de metade do impacto económico verificado ao nível do PIB global.

Pânico

A luta continua!

Apesar de as notícias não serem famosas, não há razão para se entrar em pânico (pelo menos para já). A comunidade científica já começou a empregar esforços no sentido de se criarem soluções para minorar ou mesmo, quem sabe, resolver o problema e deixar estes malditos micro-organimos mortos e enterrados de vez. Para dar alguns exemplo concretos:

O calcanhar de Aquiles

Investigadores na University of East Anglia demonstraram, há alguns meses, o mecanismo através do qual as bactérias Gram-negativas transportam o lipopolissacárido (LPS), componente essencial das suas membranas e que lhes confere protecção contra agressões exteriores, da membrana interna para a membrana externa. As proteínas responsáveis pelo transporte eram já conhecidas. Contudo o mecanismo subjacente ainda não era. O artigo publicado na revista Nature afirma que duas proteínas em particular, a LptD e a LptE, têm um papel preponderante no transporte do LPS para a membrana externa das bactérias Gram-negativas e que conseguiram inibir essa via de transporte. Não se tratando da descoberta de um fármaco novo e havendo ainda muito trabalho a ser feito para que este achado venha a dar frutos, não deixa de ser uma informação importante na medida em que este mecanismo será transversal a uma imensidão de bactérias diferentes (uma das quais a E. coli, apontada neste artigo) e portanto um alvo terapêutico apetecível, para não mencionar que a inibição desta via não requer que o fármaco penetre na bactéria, escapando a muitas formas de resistência.

One down (….thousands to go)

A empresa holandesa Micreos, inspirando-se na forma como os vírus bacteriófagos matam os seus hospedeiros, desenvolveu uma endolisina que actua apenas na parede celular de Staphylococcus aureus (com o nome Staphefekt), independentemente de estes apresentarem resistência a algum antibiótico e deixando as restantes bactérias intactas. Para já, encontra-se disponível na forma de creme ou gel para tratar infecções cutâneas, mas a empresa pretende desenvolver uma versão em comprimido ou solução injectável para alargar o número de opções terapêuticas noutras infecções. As grandes vantagens deste tratamento, segundo os investigadores que o desenvolveram, são a baixa probabilidade de emergência de estirpes resistentes (visto que o seu modo de actuação não interfere de forma nenhuma com o metabolismo da bactéria) e o facto de não afectar as bactérias circundantes ao poupá-las ao efeito “carpet-bombing” dos antibióticos convencionais, algo que não só elimina bactérias não-patogénicas como também pode contribuir para o aparecimento de resistência nessas bactérias que sofrem os danos colaterais.

“Antigamente é que era bom”

Um novo composto, baptizado com o nome de teixobactina, foi extraído de uma bactéria do solo, por sua vez baptizada com o nome de Elephtheria terrae, e mostrou actividade bactericida contra o MRSA e o Mycobacterium tuberculosis sem evidência de aparecimento de bactérias resistentes em ensaios pré-clínicos com ratinhos.

O mecanismo de acção do potencial fármaco é invulgar, na medida em que inibe a síntese da parede celular bacteriana ao ligar-se a lípidos precursores de compostos importantes da mesma, mais particularmente o lípido II (precursor do peptidoglicano) e o lípido III (precursor do ácido teicóico). Os investigadores acreditam ser esta forma de acção pouco experimentada a causa de não terem surgido estirpes resistentes.

Os resultados encorajadores foram conseguidos por uma equipa de investigadores da Universidade de Bona, Universidade Northwestern e da empresa Novobiotic Pharmaceuticals, tendo feito esta descoberta através de um método inovador: isolar bactérias (cerca de 10000 estirpes) que até então não tinham sido cultivadas em laboratório usando factores de crescimento específicos ou, em alternativa, desenvolvendo métodos de cultura no solo (o seu habitat natural). De entre este número grande, a bactéria referida acima produzia o referido composto com a referida capacidade, tendo sido alvo de atenção imediata.

A abordagem representa um “regresso às origens”, na medida em que a maioria dos antibióticos foi isolado de bactérias do solo, tendo a fonte de bactérias cultiváveis esgotado nos anos 60. A partir daí, seguiu-se para a produção sintética de antibióticos, tendo a mesma revelado não estar à altura do método anterior. Para não mencionar que as bactérias ainda não cultivadas representam cerca de 99% das espécies existentes no ambiente, havendo assim um mundo inteiro por explorar no campo dos antimicrobianos.

Last, but not least…

Uma nova plataforma virtual de diagnóstico de doenças infecciosas, IRIDICA, foi aprovada há cerca de uma semana para ser usada na Europa e está a ser avaliada pela FDA nos EUA. O diagnóstico funcionará em poucos passos relativamente simples:

  1. recolha de uma amostra de sangue, urina ou saliva;
  2. realização de um PCR para amplificar sequências de DNA bacteriano, viral ou fúngico pré-determinadas, procedimento indispensável para o sucesso do próximo passo assim como para evitar contaminação por DNA do hospedeiro;
  3. análise da amostra através de um espectrómetro de massa, identificando as sequências de DNA de interesse;
  4. estabelecimento (através de software) de correlação entre as sequências analisadas e sequências que constam da plataforma virtual.

Este método permite detectar mais de 780 espécies de bactérias, mais de 200 de fungos e mais de 130 vírus diferentes em menos de 8 horas além de, no caso das bactérias, ser capaz de detectar resistências a quatro antibióticos diferentes. Um diagnóstico dos agentes etiológicos de infecções num intervalo de tempo tão reduzido (em comparação com os dias que pode levar até que as culturas dêem resultados) pode não só ser vital em casos críticos como ter implicações positivas no abrandamento das resistências aos antibióticos, diminuindo ou mesmo eliminando a necessidade de antibioterapia empírica (estabelecida enquanto se esperam pelos resultados das culturas).

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