Mudar para dieta sólida

Entre jornais, políticos, médicos, são muitos os que dizem que “estamos a viver tempos decisivos e comprometedores para a Medicina em Portugal”. E ouvimos, recorrentemente, que será inevitável a emigração dos jovens médicos nos próximos anos. Haverá desemprego, emigração, médicos não especialistas, etc. No entanto, será perspetiva a Medicina deixar de existir no nosso país? 
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[Opinião]

Claro que não. O SNS, como hoje o conhecemos, até ele deverá continuar vivo nas próximas décadas. Ou um irmão, ou um primo parecido com o que agora existe, em piores cenários, proporcionar-se-á certamente em alternativa, caso “os conquistadores do 25 de abril” percam a guerra contra os “predadores neoliberais do século XXI”. E, sim, seguramente continuarão a existir médicos a exercer a sua profissão nos nossos hospitais. Esta será, sem dúvida, a análise mais segura de adivinhação que podemos fazer em relação ao futuro da Medicina em Portugal, do qual esperamos em breve poder fazer parte. Verdade é que a história se repete e, perante uma História que se repete, ganhamos facilmente um confortável ceticismo de que, aconteça o que acontecer, em nada se irá alterar esse ciclo sem fim.

E então pergunto-me, continuando tudo mais igual do que diferente, porque devo eu inquietar-me com o futuro dos estudantes de Medicina, quando não tenho qualquer poder para alterar este destino que nos está traçado?

Sem dúvida que o melhor será preocupar-me com o que surge na minha individualidade, pois essa é a única que estou ao alcance de controlar. Sei que, por muito mal que corra, alguns irão atingir o que sempre foi normal conseguir depois de se terminar o curso de Medicina. Portanto, há que ser muito bom e muito aplicado, e só assim serei reconhecido pelo meu bom e merecido mérito e farei parte desse grupo de “médicos especialistas”. Verdade seja dita que, lá no fundo, façam o que fizerem, não faz sentido preocupar-me senão com o que possa acontecer na minha própria vida. Tudo o resto, isso é lá com outros!

Quando circulamos entre as enfermarias existem muitas camas, muitos doentes. Talvez, no dia seguinte, alguns já se tenham ido embora e outros tenham chegado pela primeira vez. É um ciclo interminável e, por mais doentes que morram ou que sobrevivam, doentes continuarão a chegar e a partir, quer se queira, quer não.

Na verdade, talvez até a minha preocupação com os doentes seja desnecessária. Não é por salvá-los que me vão salvar a mim, ou eu vou viver mais anos por maior dedicação que lhes ofereça. Trabalhe eu as horas que trabalhar, estude o que estudar, haverá sempre uns que morrem sem eu poder fazer nada, e outros a quem o paracetamol resolve o problema. Continuarão sempre a vir e a partir. Tratar 100, morrerem 30, ou tratar 100 morrerem 40, não deve fazer grande diferença na progressão da minha carreira. Afinal são só mais 10… Eles que não tivessem levado a vida que levaram, que agora não tenho de estragar a minha própria vida por causa desses inconscientes.

Trabalhe eu as horas que trabalhar, estude o que estudar, haverá sempre uns que morrem sem eu poder fazer nada, e outros a quem o paracetamol resolve o problema. Continuarão sempre a vir e a partir.

Nestes termos, dizer isto até parece estranho. Mas pronto, pensemos assim: Tratar de Doentes = Aprender e Sucesso na Carreira = Tirar Boas Notas. Olho em redor e vejo que todos nós nos debruçamos sempre mais atentamente sobre as mais recentes informações das comissões de curso relativamente à percentagem da nota prática na final e se o exame considera só as aulas teóricas ou também as práticas. Aprender? Se tiver boa nota, até pode ser…

Sejamos práticos: o que importa agora é ter bons resultados e só assim estarei no campeonato dos que poderão discutir as vagas para a especialidade. Os outros que não conseguirem? Ah, que tivessem estudado, logicamente. Se eu me safar no Harrison (ou no seu futuro descendente), que me importa os que não se safaram? Haverá sempre aqueles a quem não corre bem e eu não posso fazer nada. Não é culpa minha. A verdade é que nem todos vamos poder escolher a especialidade. São as circunstâncias do nosso país. É a crise. Estamos em contenção e também nós temos de sofrer essas consequências… O facto de já este ano haver colegas que não entrarão na especialidade e aos quais será dada autonomia no final do ano comum – um bilhete direto para a exploração e escravatura da nossa profissão – deverá preocupar-me?

Sim, claro que me devo preocupar. E de todo que os argumentos dados até aqui refletem a minha opinião. No entanto, infelizmente, é estranho pensar que não são tão improváveis ouvir estas opiniões entre os meus colegas de faculdade, sobretudo quando penso que são estudantes que escolheram um caminho para a sua vida de lidar diariamente com o sofrimento humano e a constante súplica para libertar pessoas da dor que as consome e que aos médicos recorrem.

De longe dizer que todos pensamos assim: é importante referir que alguma coisa se tem feito. E um exemplo disso é a própria Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) que, reconhecidamente, se tem dedicado e trabalhado para o futuro dos estudantes de Medicina. Mas quantos de nós estamos a par do que tem sido feito? Muito bem, se calhar tu até tens lido os comunicados e as notícias! Mas e então? E agora?

Chegamos a um ponto em que não devemos dar-nos por satisfeitos por sair na capa do jornal e ser recebidos na Assembleia da República. É verdade que conseguimos mais vagas. As suficientes para este ano? E depois? E o que vai acontecer nos próximos anos?

Está na altura de mudarmos para dieta sólida. E com isso não quero de forma alguma dizer que é preciso pegar em batatas para lançar das escadas de S. Bento. Não, de modo algum. Contudo, se não nos mostrarmos coesos, unidos e mobilizados na defesa dos direitos dos estudantes de Medicina (que não, não é fado traçado!), as mais altas instituições agirão em função do que mais lhes convém, na altura que for mais apropriada. É assim que funciona a política. E, desagregados, não temos força alguma para defender o que achamos melhor.

Está na altura de mudarmos para dieta sólida.  Se não nos mostrarmos coesos, unidos e mobilizados na defesa dos direitos dos estudantes de Medicina, as mais altas instituições agirão em função do que mais lhes convém.

Mais do que nunca, na nossa geração enquanto estudantes, é necessário estarmos juntos e não deixarmos que façam de nós “estudantes paliativos”. Caso contrário, verás os teus colegas de ano a deixarem o país ou a fazerem 40 horas de urgência e a receber o salário mínimo. Ou então, também a ti essa situação pode chegar.

Muita coisa pode ser feita – uma delas é comparecer na próxima Reunião Geral dos Alunos, no dia 18 de dezembro, quinta-feira, às 18 horas e debater este assunto. Se não és da Faculdade de Ciências Médicas, procura que a tua Associação de Estudantes se envolva também.

É hora de pensares um pouco menos na nota do teu teste e preocupares-te com o futuro dos teus colegas e amigos. Este é o momento de mudarmos a dieta e qualquer um de nós é o suficiente para fazer a diferença!

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