Quando o Outro Lado Somos Nós

Primeiro, o choque. O franzir do sobrolho. O inclinar a cabeça, proferindo as palavras “Como assim?”. O médico à nossa frente que, com promessas de ajuda e esforço, antes nos parecia nosso amigo – sorri-se afetadamente. Como que por complacência. Ele percebe a situação, e não gosta de ter de a transmitir. Mas é o que é, e esconder pode ser pior.

Imagem retirada da página do Centro Hospitalar de São João

É engraçada a maneira como, quando somos pequenos, vivemos tão alheios aos problemas do mundo. Como tomamos por garantida a nossa família pela ignorância do conceito de morte, ou de doença. Como olhamos para os nossos parentes e sentimos a estabilidade, o “está tudo bem” inquestionável. Dizem que a noção de morte surge por volta dos 6 anos. As crianças apercebem-se que os pais podem nem sempre estar lá, mas não percebem bem como. Ou porquê. Ou como seria se não estivessem. Mas sabem que é possível – e não gostam da ideia.

Os que, quando crescem, decidem enveredar pelo complexo caminho da Medicina, rapidamente se apercebem que terão de moldar a maneira como lidam com a dor e o sofrimento – é uma questão de treinar a mente para o “coping” necessário para sobreviver ao que se vê no dia-a-dia. Arranjar uma forma de não se ser afetado pela dor alheia não é uma opção – é uma necessidade.

Enquanto estudantes de Medicina temos uma visão diferente da maioria das pessoas. Estudamos o fisiológico. Estudamos o patológico. Aprendemos a diagnosticar e (tentamos) prever o que vai acontecer. Mas o doente comum não conhece nada disso. Daí que o medo, pela ignorância da sua situação, seja bem fundamentado. E ainda bem. “A ignorância é uma bênção”.

E quando o doente está “do nosso lado”? Quando é ele quem nos ia buscar à escola, quem preparava os almoços de família de domingo ou quem nos chegava a lata das bolachas, piscando o olho e dizendo “Não contes aos teus pais!”? Claudicamos. Aí sim, temos o verdadeiro teste à capacidade de discernimento entre a emoção e a razão. Sentimos o mesmo que os familiares de muitos doentes sentem. E com uma agravante – sabemos demais. Não conseguimos esquecer o que aprendemos e não conseguimos impedir de pensar sobre o caso. Já é quase mecânico. Nesse momento estamos do outro lado da mesa do consultório. Nesse momento, o outro lado somos nós.

Sentimos a montanha-russa de emoções típica de quando se recebe uma notícia destas. Daquelas que custam a engolir e digerir, que nos fazem redefinir prioridades. Que nos fazem tomar decisões. Quem deve saber agora? Conta-se aos mais pequenos já, ou mais tarde? Que precauções devo tomar? Até que ponto devo mudar as minhas rotinas? A longo prazo, e no pior dos cenários, como ficaremos eu e a minha família? O que pode mudar? E (talvez) a pergunta mais importante – o que posso eu fazer, para proporcionar a melhor qualidade de vida possível, a alguém que me é tão querido? É aqui que entra o tão determinante fator – o tempo. Parece estúpido, e até contraproducente, mas mesmo nas situações que se classificam como uma simples “questão de tempo” (a falta de saúde transforma-se num verdadeiro contrarrelógio) ele continua a ser o responsável por acalmar os ânimos, curar as mágoas e fazer respirar fundo ao início de cada dia, recuperando forças. Faz-nos crescer. É deixá-lo trabalhar, correndo.

Quanto ao percurso, estaria a mentir se dissesse que é fácil. Toda a gente sabe que é difícil. Mas quem não vive não compreende. O diagnóstico traz consigo uma espécie de “reset” no subconsciente do doente e dos familiares. A sensação de que todos estão a entrar num período temporal difícil de caracterizar, e ainda mais difícil de ultrapassar. A cada dia que passa, menos um dia para viver. A cada boa notícia dos que nos rodeiam, a alegria exagerada, pela dúvida de ser a última. A cada exame feito, mais um momento de expectativa, mais uma reavaliação do tratamento, mais um típico longo silêncio de introspeção depois da consulta. A cada ida à farmácia, mais um pouco de esperança perdida. Mais planos adiados, ou até esquecidos. Mais dificuldade em fingir o dia-a-dia, em manter compostura face ao que se enfrenta. Mais dor, mais situações inimagináveis, mais noites sem dormir. Mais pensamentos, mais ansiedade que aumenta. Mais necessidade de que tudo acabe. A aproximação do ponto em que preferimos que o sofrimento acabe mesmo implicando perdermos a pessoa é real e dolorosa. Ninguém gosta de ver o andar cambaleante de quem já fez demasiada quimioterapia. Ninguém gosta de ouvir a fala arrastada de quem tem selos de morfina colados no braço. Ninguém gosta das mudanças de discurso típicas de quem sabe que o fim da vida está próximo. Não é um não gostar de nojo, mas um não gostar de pena. Dói a quem vê, mas dói muito mais a quem sente. Quem vê sofre duas vezes: por saber o que vai perder e por compaixão pelo que vê; quem sente sofre três: pela dor física e psicológica causada pela doença, por ver a dor de quem o rodeia e pelo medo, pela incerteza, pela morte. Sofre por saber que está a acabar. Porque por muito que nos preparemos, nunca estamos preparados para enfrentar o desconhecido.

No entanto, antes de sermos médicos, somos humanos. Temos uma vida e, com ela, preocupações. Temos famílias e, com elas, momentos alegres e momentos mais duros. É importante que não nos esqueçamos destas alturas em que só tendo a cabeça ocupada com as obrigações do dia-a-dia conseguimos sair da cama e fazer o que temos a fazer. Que mais não seja, servem de base para tentarmos perceber, um dia, aquilo por que um doente e a sua família estão a passar. E talvez moldemos a nossa maneira de pensar à custa de tais experiências. “Os Deuses vendem quando dão/ Compra-se a glória com a desgraça”. Porque tudo o que é bom tem de acabar. É a vida.

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