Entrevista à Dra. Fátima Cardoso | IV Jornadas Médicas da NOVA

“Faltam-nos grupos cooperativos fortes que nos permitam desenvolver

e coordenar ensaios clínicos em Portugal”

Licenciada em Medicina pela Universidade do Porto e especialista em Oncologia Médica, a Dra. Fátima Cardoso destaca-se como atual diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa. Apostando desde cedo na aliança entre clínica e investigação, a sua carreira há muito que se internacionalizou: antes de aceitar o desafio da Fundação Champalimaud, em 2010, trabalhou durante dez anos no departamento de Oncologia Médica do Instituto Jules Bordet (Bruxelas) e um ano no Departamento de Oncologia Molecular e Celular MD Anderson Cancer Center (Texas).

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Créditos: Joaquim Leal.

Palestrante na 4ª edição das Jornadas Médicas da NOVA, esta médica e investigadora portuguesa conversou com a Frontal em primeira mão. Numa era em que o diagnóstico de cancro já não é uma sentença de morte, qual o papel do rastreio e deteção precoce? Como se posiciona Portugal no mapa dos ensaios clínicos em Oncologia? Conhecendo cada vez melhor o inimigo, quão perto estamos de o conseguir derrotar? Aqui fica o retrato do cancro da mama no mundo desenvolvido.

1. Licenciou-se em Medicina em 1992 e em 1995 iniciou o internato na especialidade de Oncologia Médica, dedicando-se depois ao estudo da biologia do cancro da mama, fatores de prognóstico e terapêutica.

     1.1 Porquê esta especialidade e o cancro da mama em particular?

FC: Quando fui para Medicina ia com a ideia de ser Pediatra, mas durante a faculdade descobri a biologia do cancro; por ela me apaixonei e comecei a pensar seriamente em dedicar-me a essa área. Mais tarde, na altura de escolher, as duas áreas da Medicina a que me via a dedicar a minha vida eram a Oncologia e as Doenças Infeciosas. E aí houve vários fatores que me ajudaram a optar pela Oncologia: nessa altura (anos 80) deu-se o boom do VIH/SIDA (as Doenças Infeciosas estavam quase limitadas a essa patologia); como eu também gostava muito de tudo o resto, pareceu-me um pouco limitativo escolher essa área. Por outro lado, a Oncologia Médica estava integrada na Medicina Interna e era preciso fazer primeiro Medicina Interna e, só depois, uma pós-graduação em Oncologia; porém, no ano anterior ao meu isso mudou e a Oncologia passou a ser uma especialidade independente, o que encurtou em dois anos a formação. E depois, por último, há sempre fatores pessoais na nossa vida que nos ajudam nessas escolhas:

uma das minhas melhores amigas teve cancro da mama e isso acabou por ser determinante na minha escolha de Oncologia e da subespecialização em cancro da mama.

2. Rumou a Bruxelas depois de concluir a especialidade, integrando o departamento de Oncologia Médica do Instituto Jules Bordet. Nele permaneceu durante dez anos, inicialmente como investigadora e depois como assistente.

     2.1. O que motivou essa partida de solo nacional e a associação a este instituto?

FC: A ideia de fazer pelo menos um período fora de Portugal sempre me acompanhou. Durante o internato de Oncologia Médica tínhamos uma componente de estágio em Investigação. Andávamos justamente a pensar onde e como o concretizar quando organizámos um curso no IPO do Porto (onde tirei a especialidade) e convidámos a Professora Martine Piccart do Instituto Jules Bordet, que era – e continua a ser – uma das pessoas que mais sabe na área do cancro da mama. Aconteceu que ela não pôde vir e enviou um colaborador; durante o coffee-break, o meu diretor de serviço perguntou-lhe se eu não poderia fazer lá um estágio de investigação. E assim foi: fui durante quatro meses do internato. Nesse período de que muito gostei tive várias oportunidades (produzi inclusive quatro artigos) e, no final, convidaram-me a retornar por um período mais prolongado: uma bolsa de dois anos, já paga por eles. Então voltei [a Portugal], fiz o meu exame de final de especialidade e depois regressei a Bruxelas. Como na altura não me foi permitido tirar uma licença sem vencimento para ir, acabei por ter de tomar uma decisão um pouco arriscada, mas que foi das melhores decisões da minha vida: sair, mesmo tendo de me desligar da função pública e do meu lugar no IPO.

Só trabalhei como especialista em Portugal durante três meses: fiz o exame em julho e em outubro já estava em Bruxelas. No início pensava ficar por um período de dois anos, com uma bolsa de investigação translacional, mas depois acabei por ficar dez anos: depois desses dois anos de investigação translacional, passei um ano de investigação básica nos EUA e regressei para ser membro do staff do Departamento de Oncologia Médica do Instituto Jules Bordet, onde fiquei até 2010.

     2.2. Que fatores contribuíram para despertarem si o interesse pela investigação? Qual o primeiro projeto em que participou?

FC: Eu comecei a participar em alguns pequenos projetos de investigação ainda no meu internato geral, tanto na área de Cuidados de Saúde Primários como em Medicina Interna, com os meus orientadores nas respetivas rotações. Depois, a minha primeira publicação – como primeira autora – ocorreu quando era interna da especialidade. Na verdade, tinha dois artigos que podiam ter sido ‘o meu primeiro’ e quase que a primeira publicação ocorria na Acta Médica Portuguesa (um caso clínico muito interessante na área da Medicina Interna), mas eles atrasaram-se muito e acabei por publicar no The Breast (uma revisão sobre um subtipo de cancro da mama raro, o espinocelular). Posteriormente, trabalhei no estágio de investigação em Bruxelas, onde vim a publicar mais quatro artigos.

3. Numa entrevista recente para a revista Visão referiu-se ao cancro como “a nova epidemia não contagiosa”. Se, em 1900, 1 em cada 20 pessoas sofria de cancro, em cem anos o número disparou para 1 em cada 3 pessoas, prevendo-se que, daqui a dez anos, venha a atingir 1 em cada 2 pessoas em algum momento da sua vida.

     3.1. Que fatores crê mais contribuírem para esse aumento de incidência?

FC: Ninguém sabe exatamente, mas todos os estudos indicam que tem muito a ver com o nosso ambiente e estilo de vida.

Quanto mais pobre for o país, mais as doenças infeciosas são a principal causa de morte; mas, a partir do momento em que há uma melhoria das condições gerais de vida (água potável, acesso a antibióticos, etc.), essas doenças começam a ficar controladas e quando se atinge um nível socioeconómico mais elevado começam a aparecer as doenças ligadas ao estilo de vida: a hipertensão, as doenças cardiovasculares, a diabetes e o cancro.

Por isso, tem certamente a ver com o tipo de alimentação que fazemos, com a poluição e com uma série de hábitos, nomeadamente os tabágicos. Tem também a ver com o aumento da esperança de vida: quanto mais tempo uma pessoa viver, maior a probabilidade de vir a desenvolver algum cancro.

Mas isso não justifica tudo! Esta é uma epidemia que não tinha tido, até há bem pouco tempo, as ações devidas por parte dos decisores políticos na área da Saúde: a OMS estava – e continua a estar – extremamente focada nas doenças cardiovasculares, quando o cancro já as está a ultrapassar em grande parte do mundo. Nos últimos anos tem-se verificado já uma melhoria nesse sentido: no ano passado as Nações Unidas votaram uma nova resolução contra o cancro (cancer resolution), a primeira vez que se falou no cancro para além da prevenção. Desde que as Nações Unidas e a OMS resolveram colocar no mesmo pacote todas as doenças que não são infeciosas (não infeciosas/não comunicáveis, onde se inclui o cancro), temos tentado de forma veemente tirar o cancro desse grupo, já que na maioria dessas doenças (obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, algumas doenças neurológicas) pode-se concentrar os esforços na prevenção, mas no cancro não.

No global, e sendo otimista, 40% dos cancros são preveníveis, o que deixa mais de metade que não o são. Assim, se não se apostar também no tratamento e em criar as infraestruturas necessárias para tal, nunca o vamos conseguir vencer. E, até ao ano passado, a OMS praticamente só falava em prevenção…!

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4. O cancro da mama é a neoplasia que mais mulheres atinge em todo o mundo, e Portugal não é exceção. Apesar do aumento da incidência, a mortalidade tem vindo a diminuir e, em 2013, registámos das mais baixas taxas de mortalidade na Europa, ao lado de países como a Espanha, Estónia, Suécia e Finlândia.

     4.1. Quanto deste sucesso de deve aos programas de rastreio e deteção precoce?

FC: De facto, a partir dos anos 90 as curvas de mortalidade do cancro da mama têm vindo a descer nos países desenvolvidos. Porquê? Os programas de rastreio começaram a ser implementados no final dos anos 70/princípio dos anos 80, daí que, dez anos depois (os resultados a nível populacional nunca são imediatos), se comece a ver o impacto na redução da mortalidade. Para além disso, foi também nos anos 70 que se desenvolveu e começou a utilizar a quimioterapia e a hormonoterapia adjuvantes, que também contribuem para esses resultados.

Existe uma controvérsia em torno do valor do rastreio. O que está comprovado é que esta diminuição substancial da mortalidade se deve em 50% ao rastreio/diagnóstico precoce e a outra metade aos novos tratamentos (nomeadamente quimioterapia, hormonoterapia, melhor radioterapia e melhor cirurgia). E eu englobo, na parte do rastreio, a educação. Até aos anos 70 não se usava a palavra “cancro”…

Betty Ford, primeira-dama dos EUA, foi extremamente relevante porque foi a primeira mulher socialmente importante a admitir em público “eu tive cancro da mama, fiz tratamento e estou bem”. Isso contribuiu para a diminuição do estigma e levou a que muitas mulheres começassem a procurar ajuda.

     4.2. A investigação e o progresso terapêutico terão também certamente a sua quota-parte de influência nestes resultados. Como enquadraria Portugal no contexto europeu/mundial no que respeita à diversidade/qualidade dos ensaios clínicos nesta área?

FC: Acho que Portugal está melhor agora do que há cinco anos, por exemplo, mas falta-nos organização. Em todos os ensaios clínicos na área de Oncologia faltam-nos grupos cooperativos fortes que nos permitam desenvolver e coordenar ensaios clínicos das nossas próprias ideias. A maior parte da investigação que se faz em Portugal é coordenada por grupos cooperativos de outros países ou (sobretudo) pela indústria farmacêutica, em estádios mais avançados (ensaios de fase II e fase III).

Não existe ainda em Portugal uma única unidade de fase I, que é algo que o IPO do Porto está de momento a tentar concretizar. Além disso, também colocamos poucos doentes em ensaios.

É tudo uma questão de organização: a Bélgica tem 10 milhões de habitantes (como nós), mas é sempre dos maiores países recrutadores de doentes para ensaios clínicos…

5. Como progresso tecnológico das últimas décadas temos assistido a uma aposta crescente na investigação em Oncologia em busca daquela que é a maior ambição do século e a esperança de tantas pessoas: a cura para o cancro.

     5.1. Conhecendo cada vez melhor o inimigo, quão perto estamos de o conseguir derrotar?

 FC: Um dos problemas que talvez dificulte muito o combate ao cancro é continuarmos a dizer “o cancro”, como se fosse uma só doença, o que não é verdade: “o cancro” inclui mais de 200 doenças! Vamos tomar como exemplo o cancro da mama, que é a minha área: mesmo dizendo “o cancro da mama”, já não estamos a falar de uma doença só. Na nova classificação molecular do cancro da mama haverá no mínimo quatro subtipos, que agora já estamos a dividir noutros subtipos, todos com comportamentos diferentes.

Um dos nossos objetivos é transformar o cancro numa doença crónica, que não leve à morte tão rapidamente. Nesta última década da minha carreira, tenho-me essencialmente dedicado aos cancros da mama avançados, com metástases, com uma sobrevida média de três anos (desde que se tenha acesso aos tratamentos). O objetivo é então transformá-los numa doença crónica, com a qual se possa viver mais tempo e com tratamentos que não impeçam uma vida relativamente normal.

Por outro lado, uma vantagem do “cancro” (e isso pode aplicar-se a praticamente todos) é que quanto mais cedo for diagnosticado, maior a probabilidade de cura.

Atualmente, regra geral, podemos dizer que se obtém a cura numa percentagem superior a 50% dos cancros no global; já se falarmos no cancro da mama, a taxa de cura atinge quase os 70% (restando ainda 30% que, mesmo com os melhores tratamentos, não são curados).

Por isso se diz “sim” à prevenção/diagnóstico precoce – mas não adianta diagnosticar cedo se não houver como tratar. Daí que um programa de rastreio não seja a primeira coisa a fazer num país em desenvolvimento: primeiro tem de se ter capacidade de tratar e educar para combater o mito, levando a que as pessoas procurem mais cedo o médico, permitindo o diagnóstico precoce e um tratamento muito mais eficaz.

6. Uma das situações mais delicadas, em relação ao cancro de mama, ocorre quando o diagnóstico é feito durante a gravidez. Apesar de raro (diagnosticado em 1:3000 grávidas), é das neoplasias malignas mais frequentes durante a gestação e a sua incidência parece estar a aumentar em associação à maternidade tardia.

     6.1. Como se dá uma notícia destas a uma mulher que viva o auge da felicidade com a perspetiva da maternidade?

FC: É uma situação muito complicada, em que a capacidade de comunicação é essencial. Aquilo que é mais importante é ter cuidado com o que se diz e não se dar informações falsas: a muitas das doentes que foram ter connosco tinha sido dito que tinham de abortar para poderem ser tratadas convenientemente e isso não é verdade. Há algumas situações em que sim, será necessária a interrupção da gravidez, mas na maior parte das situações pode tratar-se adequadamente a mãe e preservar a criança sem consequências nefastas.

      6.2. Cada vez mais se procura tratar o cancro e, ao mesmo tempo, proteger o feto em desenvolvimento. Em que situações tal é possível e quais os tratamentos considerados “seguros” durante a gestação?     

FC: Na grande maioria das situações pode-se tratar a mãe corretamente sem interromper a gravidez, sobretudo se for um cancro da mama precoce.

Pode fazer-se cirurgia e quimioterapia (os dois medicamentos mais importantes para o cancro da mama são seguros na gravidez). A radioterapia pode ser adiada para depois do parto, sem perder eficácia. Só a hormonoterapia e os tratamentos anti-HER2 (como o Trastuzumab), estão contra-indicados, porque são teratogénicos, e têm de ser administrados depois do parto.

Nas raras situações em que o uso imediato destes medicamentos é necessário, a interrupção da gravidez poderá ter de ser considerada. Por exemplo, esta semana observei uma senhora jovem, grávida do primeiro filho, com diagnóstico de cancro da mama, do subtipo HER2-positivo, infelizmente já com metástases hepáticas. Neste caso, a utilização imediata de terapêutica anti-HER2 tem um impacto muito grande na sobrevida mas é incompatível com a gestação. Evidentemente que depois a decisão é da mulher e do seu companheiro; nós apenas temos de informar quais as opções de tratamento e as implicações na sobrevida associadas a cada opção.

7. A Fundação Champalimaud assume curricularmente algum papel formativo no que diz respeito ao ensino em Saúde?

FC: Temos idoneidade para receber internos em rotação na Imagiologia Mamária, mas ainda não na Oncologia Médica. É preciso perceber que a Fundação ainda é relativamente recente e até há pouco tempo a vertente clínica era sobretudo em ambulatório (só o ano passado abriu o internamento), pelo que há ainda muito a desenvolver até termos capacidade de receber e formar no âmbito de internato de especialidade. Já na formação pós-graduada temos, inclusive na Unidade de Mama, capacidade para formar na área da Investigação. Recebemos muitos estagiários de vários países do mundo para investigação clínica, translacional e básica em Oncologia e Neurociências.

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