Entrevista ao Dr. Tiago Villanueva | IV Jornadas Médicas da NOVA

Tendo completado o curso de Medicina em 2005, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Tiago Villanueva tornou-se nesse mesmo ano a primeira individualidade estrangeira a assumir o cargo de editor-chefe na revista student BMJ. No ano seguinte, de regresso a Portugal, iniciou o Internato Médico e começou a trilhar a carreira de clínico em paralelo à de jornalista médico.

Além de médico de família no SNS, o Dr. Villanueva é, desde setembro de 2017, editor-chefe da Acta Médica Portuguesa, bem como editor associado das revistas The BMJ e BMJ openEste percurso, de natureza multifacetada e singular, levou-o a ser convidado a palestrar nas IV Jornadas Médicas da NOVA. A sessão intitulada “O Futuro pertence-nos: a versatilidade do MIM – publicação científica” alavancou a entrevista que se segue, conduzida pela Frontal.

IV

BIOGRAFIA PANORÂMICA

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1. Concluiu o Mestrado Integrado em Medicina em 2005, ano no qual foi nomeado editor-chefe da revista student BMJ. Como se estreou na área do jornalismo médico?

TV: Quando era estudante de medicina subscrevia a edição em papel da BMJ Student. No final de 2002 respondi a um anúncio de recrutamento de “student advisers” para a revista, que podiam vir de qualquer parte do mundo. Os “student advisers” desempenhavam muitas funções, desde rever a escrever artigos para a revista e assessorar a editora-chefe. Perdi a conta ao número de artigos que escrevi para a BMJ student, mas esse período foi a melhor “escola” possível de escrita de artigos que eu poderia ter e deu-me imensa experiência editorial. Foi também possível começar a ir a reuniões em Londres e entrar naquele “ambiente” internacional fervilhante. Depois veio o estágio durante dois meses (Clegg scholarship), em que pela primeira vez pude escrever artigos para a revista com a bandeira BMJ. Mais tarde fui encorajado a concorrer à posição de editor-chefe da BMJ student.

2. Na qualidade de recém-especialista, partiu em 2013 rumo ao Reino Unido para desempenhar funções como editorial registrar, na sede londrina do British Medical Journal (BMJ). Tendo, desde o ano transato, voltado a trabalhar em solo nacional, como médico de família, pergunto-lhe: continua a ser confrontado com as mesmas dificuldades laborais que outrora engatilharam a sua saída?

TV: Claro que sim, e a prova mais nítida disso é que estou a responder a esta entrevista na semana da greve nacional dos médicos! Trabalho com uma equipa excecional numa USF criada de raiz, mas as condições de trabalho no SNS continuam a ser desencorajadoras. Não há dia em que não haja algum problema que perturbe fortemente a nossa atividade. Por exemplo, num dia não há toner ou papel para a impressora e estamos vários dias ou semanas a trabalhar “manualmente”. Noutro dia são os programas informáticos que estão “em baixo” (por vezes, dias a fio) e temos de fazer tudo “manualmente”. A carga de tarefas burocráticas é interminável e com frequência geradora de conflitos entre o médico e o paciente (veja-se o exemplo dos atestados para as cartas de condução). As enormes listas de utentes geram problemas de acessibilidade.

Os pacientes queixam-se de que não lhes damos atenção suficiente, mas também temos de passar metade ou mais do tempo de consulta a passar resultados de exames para o computador em vez de olhar para as pessoas. Por outro lado, as exigências por parte das chefias são cada vez maiores  mas não me parece viável subir a bitola sem também saber-se motivar os profissionais e melhorar as condições de trabalho.

3. Num artigo de opinião (BMJ, 24/09/2013) escreveu o seguinte: «If an elite athlete stops training and competing for a while, he/she will not forget how to perform, but his or her performance will be much worse by the time he or she resumes training and competitive sport again. The same goes for doctors». Como superou esta aparente adversidade?

TV: No fim do meu fellowship (editorial registrar) fui convidado a ficar como Assistant Editor na equipa que lida com os artigos originais. Mas ao fim de um ano já sentia falta do contacto com os pacientes e foi possível conseguir um contrato de 4 dias por semana que prevê um dia para realização de atividade clínica. Como era mais fácil fazê-lo em Portugal, por vários motivos, passei a ir e vir a Lisboa todas as semanas para fazer consulta à 2ª feira.

Há muita flexibilidade contratual na BMJ para os editores que são clínicos manterem contacto com a atividade clínica  quase todos os editores que são médicos realizam pelo menos um dia de atividade clínica por semana. Naturalmente que isto implica que a profissão médica no Reino Unido tenha muito mais flexibilidade contratual que em Portugal, e portanto é mais fácil conciliar a atividade clínica com outras atividades.

4. Pondera vir a radicar-se no Reino Unido?

TV: Já lá estive radicado, mas agora tenho a vida muito estabilizada em Lisboa (tanto do ponto de vista profissional como familiar). Não vou dizer que desta água não beberei, mas de momento não prevejo isso acontecer.

OLHAR PESSOAL

5. Citando as palavras de Dr. K. R. Sethuraman: «The physicians of tomorrow are taught by the teachers of today using the curriculum of the past». Quão válida se lhe afigura esta frase, atualmente, no panorama português?

TV: Bem, quando eu era estudante de Medicina, o conteúdo que era transmitido nas aulas e através dos livros era preponderante, pois a internet ainda estava nos seus primórdios. Por conseguinte, tínhamos acesso a um pool limitado de conhecimento e de aptidões. Mas o mundo mudou tanto desde então (passaram exatamente 20 anos desde que entrei na faculdade de Medicina) que este tipo de limitações hoje em dia são impensáveis, até porque o conhecimento está a evoluir a um ritmo exponencial.

Mesmo a publicação científica  que tem um papel importante na formação pré-graduada, pós-graduada e contínua dos médicos  está em grande mutação. Por exemplo, alguns dos artigos originais publicados na BMJ são hoje acompanhados por infografias que ajudam a simplificar a compreensão de um estudo que, à primeira vista, pode parecer demasiado denso e difícil de decifrar. Muitos artigos são também acompanhados de vídeo-abstracts e até existem podcasts em que os autores são entrevistados.

Por outro lado, os estudantes hoje em dia estão mais expostos a metodologias como a simulação, que facilitam a aquisição de competências práticas e técnicas. Hoje em dia há muito mais condições comparativamente há 20 anos para o ensino ser mais interativo, mais dinâmico, mais rigoroso – e até mais divertido.

6. É assumidamente um adepto da multidisciplinaridade: «regardless of the field of knowledge we end up making a living of, there are a lot of lessons to be learnt from the other areas which we can not only use to boost and improve our professional life, but also […] to harness our personal life». Poderia ilustrar esta asserção com alguns exemplos colhidos do seu percurso pessoal?

TV: Quando trabalhava a partir dos escritórios de Londres do BMJ, um dos aspetos mais interessantes era precisamente contactar com profissionais das mais diversas áreas com vista a atingir determinados objetivos. Hoje em dia, para trabalhar em publicação médica ao mais alto nível temos de trabalhar em equipa e colaborar com uma grande variedade de grupos profissionais, incluindo epidemiologistas, metodologistas e estatísticos, editores técnicos, jornalistas, advogados, bem como pessoas ligadas às relações públicas, marketing, gestão e business development, tecnologias de informação e multimédia, etc. Não só se aprende imenso pelo contacto com pessoas que têm um percurso de vida e experiências muito diferentes das nossas, mas a verdade é que uma revista de topo como a BMJ só é o que é devido à colaboração entre todos estes profissionais.

As revistas médicas generalistas encontram-se na interseção da medicina clínica, da academia e da política de saúde; portanto, a multidisciplinaridade acaba por ser uma inevitabilidade!

O PRESENTE NA AMP

7. No editorial do primeiro volume publicado em 2018 da revista Acta Médica Portuguesa, afirmou que este deveria ser «um ano de afirmação para uma publicação com aspirações a tornar-se a revista médica generalista mais influente em Portugal e no espaço Lusófono».

          7.1 Que práticas/atitudes importou da ambiência editorial britânica?

TV: Bem, há muitas “práticas” que podia referir mas que não são facilmente aplicáveis na nossa realidade nacional, ou porque não temos estrutura/recursos para as aplicar, ou porque não estamos ainda preparados para as implementar.

O fundamental é ter uma equipa dedicada e desenvolver um circuito de processos editoriais robustos e ágeis.

Grande parte dos autores fica muito agradecida quando sente que o seu trabalho foi avaliado e processado de forma justa e profissional, tendo-se chegado a uma versão do artigo que é muito melhor do que a versão submetida inicialmente. Destaco por outro lado a grande importância dada à transparência dos processos editoriais. Por exemplo, a publicação de artigos originais no BMJ agora estende-se à publicação também dos pareceres dos revisores, das várias versões do artigo desde a submissão, bem como da ata da reunião editorial (que é sempre enviada aos autores, juntamente com a carta de decisão). Não conheço nenhuma outra revista generalista que ofereça este nível de transparência.

          7.2 O que aproxima e afasta a AMP das grandes revistas médicas generalistas, como o BMJ?

TV: Existem mais diferenças do que semelhanças. Em termos de semelhanças, partilhamos o mesmo “DNA”, isto é, somos revistas que em geral pertencem a associações médicas e se dirigem a uma audiência muito vasta de clínicos, académicos, investigadores e decisores e têm objetivos mais ou menos semelhantes, que passam desde por ajudar os clínicos a tomar melhores decisões na sua prática clínica diária até influenciar a política de saúde. De resto,

as diferenças são abissais em termos de recursos, orçamento, staff, prestígio e reputação. Na redação da AMP em Lisboa temos 4 pessoas (a contar comigo), enquanto na redação do BMJ em Londres há quase 100 pessoas.

Um estudo publicado no BMJ pode logo ter cobertura mediática global e ser mencionado nos principais jornais e cadeias televisivas do mundo. Além disso, a BMJ (bem como outras grandes revistas) é muito mais do que uma revista  é um grupo editorial com escritórios em várias partes do mundo e que publica dezenas de outras revistas especializadas, bem como muitos  outros produtos, como plataformas de apoio à decisão clínica (BMJ Best Practice) ou de educação contínua para clínicos (BMJ Learning).

          7.3 Que comentários tem a tecer acerca das conquistas já alcançadas e das metas vindouras?

TV: Bem, há muitas coisas que se podem/devem fazer e mudar na AMP, mas que não são ainda possíveis ou viáveis por uma série de razões. Até agora, grande parte das mudanças na AMP serão pouco percetíveis aos leitores.

Primeiro, apertámos os processos editoriais e os artigos estão a ser sujeitos a um escrutínio muito maior. Estamos também a conseguir diminuir drasticamente os tempos de decisão editorial.

Estamos também muito empenhados – e a publicar tanto quanto possível  conteúdos que reflitam a atualidade médica nacional e global, e isso tem-se notado na maior cobertura mediática de alguns dos artigos que publicamos.

Estamos a trabalhar estreitamente com a assessoria de imprensa da Ordem dos Médicos, para que determinados artigos com maior relevância junto da opinião pública e de decisores tenham o maior impacto possível.

Por outro lado, tenho feito várias palestras sobre temas relacionados com publicação médica em conferências, hospitais e centros académicos. Irmos “ao terreno” também nos ajuda a perceber que tipo de trabalhos estão a ser realizados e, eventualmente, encorajar alguns autores a submetê-los à revista.

Gostava de começar a ter reuniões editoriais em que os artigos são avaliados por várias pessoas, o que faz com que tomemos decisões ponderadas. Embora tenhamos elementos da equipa em várias partes do país, é muito fácil hoje em dia fazer reuniões com a tecnologia existente.

No BMJ tenho todas as semanas uma reunião por teleconferência com a equipa global que gere os artigos originais, e que inclui elementos nos Estados Unidos, Europa e China. Parece que estamos todos na mesma sala.

A curto prazo, gostava de remodelar as normas de publicação e dinamizar mais as redes sociais. A longo prazo, o mais importante será expandir a equipa, mas para já não temos orçamento para isso. Seria importante também remodelar o site.

8. Fundada em 2015, a AMP-Student pretende assumir-se nacionalmente como a mais importante plataforma de publicação científica vocacionada (sobretudo) para a comunidade médica estudantil.

          8.1 O que motivou a criação de um ‘student corner’ no corpo editorial da AMP?

TV: Bem, não fui eu que estive na génese da AMP-student, mas ter secções ou revistas médicas específicas para estudantes é importante para que os estudantes comecem desde cedo e mais facilmente a desenvolver hábitos de leitura e escrita científica, bem como de revisão de artigos. Mais tarde, a transição para as revistas “séniores” é feita naturalmente.

          8.2 Que progressos destaca, seja no âmbito formativo seja na vertente da publicação científica?

TV: A AMP-student acaba por funcionar como uma “incubadora” de futuras gerações de massa crítica na área de edição médica. Por outro lado, a equipa está numa posição privilegiada para liderar o debate em torno de temas emergentes para os quais as novas gerações estão mais sensibilizadas, como a global health ou o impacto das alterações climáticas na saúde, por exemplo.

           8.3 Que mensagem de incentivo gostaria de deixar, particularmente aos que ambicionam investir no ramo da edição/jornalismo médico?

TV: É importante procurar oportunidades de experiência formativa/profissional com as grandes revistas médicas no Reino Unido ou na América do Norte, pois são as que estão na vanguarda das práticas editoriais e as que dispõem de programas de formação em edição médica (para estudantes de medicina ou médicos), o que é algo que ainda não existe em Portugal. É também importante ser persistente e determinado e, diria, até um pouco aventureiro, pois é um mundo algo fechado para quem está em Portugal. E estar atento às tendências editoriais, pois caminhamos a passos largos para um mundo em que a publicação científica tal e qual como a conhecemos poderá passar a ter um papel menos preponderante na disseminação do conhecimento do que aquele que tem hoje.

Se calhar já estava na altura de se criarem programas próprios em Portugal (alguns académicos já comentaram comigo que seria interessante desenvolver isso), até porque recentemente foram publicadas as “core competencies for scientific editors of biomedical journals”.

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