Debater o SNS – Uma entrevista com o Prof. Sobrinho Simões

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O Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões é o histórico Regente de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP) e Prémio Pessoa em 2002. Um grande vulto da ciência e do ensino em Portugal, e a personalidade ideal para dar início a esta série de artigos que têm como objectivo compreender  o futuro do Serviço Nacional de Saúde.

No dia 27 e 28 de Setembro, o Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões esteve no I Congresso SNS: Património de Todos, colaborando neste através de uma dupla contribuição: um curto texto incluído no documento-debate e uma palestra sobre Investigação. Esta foi igualmente uma excelente oportunidade para a FRONTAL conversar com este notável investigador da cidade do Porto sobre investigação, oncologia e, obviamente, o futuro do SNS.

 

O antes e o depois do hospital em oncologia 

FRONTAL: Na sua contribuição para o documento-debate, defende que seria possível reduzir em cerca de 80 a 90% a ocorrência de cancro e a mortalidade a ele associada nas sociedades ocidentais através de medidas preventivas. Apesar de a prevenção estar já na ordem do dia, este é um número completamente estonteante. De que forma poderemos então inverter os incentivos de forma a que o investimento seja invertido de forma a privilegiar não tanto o desenvolvimento de novas terapêuticas mas o aprofundar de medidas de prevenção?

MANUEL SOBRINHO SIMÕES (MSS): Antes de mais penso que não se deve embandeirar em arco com esses números. A redução de 80 a 90% de neoplasias que seria possível conseguir com a optimização e a universalidade de medidas de prevenção primária diz respeito ao panorama actual. Nada nos garante que, uma vez atenuado o problema das neoplasias com elevada letalidade que hoje ocorrem em adultos de 40,50,60 anos, como consequência do tabagismo, obesidade, infecções viricas, bacterianas e parasitárias, ingestão excessiva de álcool, exposição solar, etc. etc., não venhamos a ter um pico ainda maior de ocorrência de neoplasias em pessoas de 70,80, 90 anos.

Não há dúvida que vale a pena apostar, a sério, na prevenção assim como no diagnóstico precoce, porque só deste modo aumentaremos a percentagem de doentes em quem se consegue a cura ou pelo menos o controlo da doença oncológica.

De qualquer modo não há dúvida que vale a pena apostar, a sério, na prevenção assim como no diagnóstico precoce porque só deste modo aumentaremos a percentagem de doentes em quem se consegue a cura ou pelo menos o controlo da doença oncológica (com aumento da quantidade e da qualidade de vida). O sucesso dessa aposta passa sobretudo pelo aumento da literacia e numeracia das pessoas que se têm de tornar agentes da sua própria saúde. A mudança de atitudes e comportamentos é dificílima de conseguir e passa por acções tão básicas como o exemplo dos pais e dos avós e a educação para a saúde nas escolas.

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IPATIMUP, o centro de investigação do Professor Sobrinho Simões

FRONTAL: Relativamente ao documento-debate, diz que, no campo da oncologia, o trabalho já está feito no que toca ao tratamento hospitalar; o que falta fazer, contudo, é o que existe antes e depois. Neste sentido, acha que o tratamento hospitalar em Portugal já atingiu a excelência? E o que falta, pois, fazer no antes e no depois do hospital

MSS: Ainda podemos melhorar muito na vertente hospitalar da oncologia se conseguirmos criar centros de referência especializados em que se concentrem o diagnóstico anatomo-patológico preciso das neoplasias (com recurso sistemático a segunda opinião), o estadiamento das doenças oncológicas, a planificação dos tratamentos e a definição da instituição assistencial onde esses tratamentos podem ser feito e como deverão ser monitorizados.

Antes desta “fase”, há o problema da Prevenção primária e secundária, domínios onde temos muito para andar. Depois, no outro lado do espectro, debatemo-nos com a fragilidade em termos quantitativos e qualitativos das Redes de Cuidados Continuados e de Cuidados Paliativos.

FRONTAL: Outra ideia que propõe no documento-debate é a criação de uma Rede de Referenciação Hospitalar para o Diagnóstico, Estadiamento, Tratamento e Acompanhamento dos Doentes com Cancro. Num momento em que se levantam muitos protestos relativos ao encerramento de serviços e unidades hospitalares, não poderia uma medida deste tipo, embora indirectamente, receber severas críticas por parte das populações afectadas?

MSS: A criação de uma Rede de Referência Oncológica Nacional é indispensável para a melhoria da qualidade do tratamento e acompanhamento dos doentes com cancro. Embora não seja fácil explicar este facto às populações (e os políticos temam perder votos se se envolverem nesta empreitada) é fundamental convencer as pessoas de que antes de qualquer outra consideração de natureza pessoal ou logística (por exemplo, a comodidade) é preciso garantir uma qualidade máxima no diagnóstico da doença oncológica e na avaliação do doente.

O que não pode continuar a existir – por causa do respeito que os doentes nos merecem – é a realidade minifundiária actual.

Em muitos casos, o tratamento dos doentes poderá ser feito, pelo menos  em parte, em hospitais de menor dimensão ou até em centros de saúde fisicamente próximos das pessoas desde que haja uma boa comunicação entre o Centro de Referência e a Instituição Parceira periférica. O que não pode continuar a existir – por causa do respeito que os doentes nos merecem – é a realidade minifundiária actual. Se enveredarmos pela Rede de Referência e introduzirmos mecanismos de avaliação externa e independente, tenho a certeza que os doentes serão muito melhor tratados e os custos serão menores. Competirá a nós, profissionais “da” Saúde, aos políticos, aos professores, e a todos os “opinion makers”, convencer as populações de que ficarão muito melhor servidas assim do que se insistirem em ser operadas e/ou tratadas por radioterapia numa instituição ao pé da porta.

 

O que fica da investigação em Portugal?

FRONTAL: António Sampaio Nóvoa definiu como a ambição ideal para Portugal o desejo de ser um país normal. No campo da Investigação, Portugal é já um país “normal?”

MSSNo campo da investigação científica Portugal aproximou-se progressivamente da média europeia nos últimos 15/20 anos. Esta “normalização” foi posta em causa de há dois ou três anos a esta parte devido à incompetência dos dirigentes. Quando há cerca de um ano se lançou a “Fundação para a Saúde –  SNS”, O Prof. Sampaio da Nóvoa referiu, como hoje, o desejo de que Portugal fosse um país normal. Nessa mesma sessão [do I Congresso SNS – Património de Todos] co-formulei o desejo de que Portugal fosse um país competente. Infelizmente está-o cada vez menos e não só na Ciência.

FRONTAL: Durante a sua palestra referiu como um passo fundamental para melhorar a qualidade da investigação feita em Portugal a criação de um Medical Research Council, à séria. Qual seria a importância da criação de um organismo deste tipo e que outros rumos devem ser tomados para alcançar a Excelência nesta área?

MSS: Andamos, eu tal como muitos outros médicos com envolvimento na academia e na investigação científica, a ver se conseguimos que o Ministério da Saúde crie uma estrutura que sirva de interlocutor para programas e projectos na interface da Saúde com ID&I. A criação de um Medical Research Council – semelhante ao existente em praticamente todos os países do mundo ocidental – inserir-se-ia nesta mesma estratégia: reforçar os aspectos científicos da Medicina e da Biomedicina e separar o mundo da investigação em ciências da saúde, com as suas especificidades temáticas (e de financiamento), dos outros mundos que se albergam na FCT. Seja como for só conseguiremos progredir no sentido da melhoria da qualidade – tenho pudor em falar em excelência – se conseguirmos manter um sistema de avaliação externa e independente e introduzir mecanismos de recompensa ao mérito.

Seja como for só conseguiremos progredir no sentido da melhoria da qualidade  se conseguirmos manter um sistema de avaliação externa e independente e introduzir mecanismos de recompensa ao mérito.

FRONTAL: Apesar de reconhecida como sendo uma trave-mestra para o desenvolvimento dos sistemas de Saúde, a Investigação continua a ser tratada como um parente pobre nos currículos das Faculdades de Medicina em Portugal. Esta é uma realidade muito diferente, por exemplo, da Harvard Medical School ou outras escolas de renome internacional. Que consequências pode ter esta postura no futuro, não só da investigação nacional, mas igualmente do próprio Sistema Nacional de Saúde?

MSS: As consequências serão negativas. Aliás estamos já a sofrer bastante com essa falta de incorporação do valor da  investigação e da produção científica (é preciso publicar, fazê-lo em boas revistas e contabilizar as citações) nos curricula dos médicos hospitalares. Este divórcio entre a profissão de médico “fazedor” de consultas e operações e a profissão de médico-docente tem vindo a tornar residual o número de médicos-cientistas nas nossas instituições e a piorar a qualidade do ensino pré-graduado e da formação após-a-graduação.

Claustro do IPATIMUP
Claustro do IPATIMUP

FONTAL : Como em qualquer outro ramo, actualmente, é incontornável fazer uma referência à malfadada crise. Duas questões, pois: estará a crise a afectar a qualidade da investigação feita em Portugal e a facilitar a “fuga de cérebros”? Que medidas podem ser tomadas para mitigar os malefícios das restrições orçamentais em tempo de vacas magras?

MSS: Pior do que a crise é o aproveitamento que alguns governantes têm feito dela para dar cabo do Ensino e da Ciência. É sobretudo assustador perceber a (in)consciência com que  gente imatura e impreparada está a destruir as instituições. A única medida que fará sentido tomar no sentido de procurar inverter o plano inclinado em que nos encontramos é ter coragem para  proceder a avaliações institucionais independentes e sérias e, em face dos resultados, reforçar as instituições que forem boas e reorientar ou extinguir as que forem más.

 

Crise e SNS

FRONTAL: Competência foi a razão que apontou para a defesa da exclusividade no SNS – esta é uma questão fracturante no seio da classe médica. Neste sentido, de que forma poderia a exclusividade levar a uma melhor prática?

MSS: Penso que deveremos caminhar progressivamente no sentido de separar as águas entre “público” e “privado” no que diz respeito à Saúde. (E, já agora, a outras áreas como a Justiça e a Educação). Só será possível sermos competentes se nos especializarmos e criarmos, pelo menos no SNS, centros de referência com profissionais inteiramente dedicados à sua profissão e devidamente recompensados em termos de salário e de condições de trabalho.

Penso que deveremos caminhar progressivamente no sentido de separar as águas entre “público” e “privado” no que diz respeito à Saúde

FRONTAL: Mais uma vez a crise: é da opinião que as restrições orçamentais actualmente impostas na despesa com Saúde poderão ter como consequência a perda dos metros ganhos na luta pelo aperfeiçoamento do tratamento hospitalar? Por outras palavras, confirma a ideia de que existem já doentes em Portugal a quem está a ser impedido o acesso aos melhores cuidados de saúde disponíveis?

MSS: Quero acreditar que o bom senso, o reconhecimento da sua importância social e a imperiosa necessidade de proteger os mais frágeis – neste caso, os doentes – permitirão proteger a Saúde dos cortes cegos induzidos pela crise e por bastante enviesamento ideológico. O Ministro da Saúde tem revelado, em minha opinião, sensatez e estou convencido que governará no sentido de impedir a degradação da qualidade do SNS. Tal não significa, no entanto, que devamos procurar escapar à racionalização inteligente de recursos humanos, logísticos e materiais. Essa racionalização inteligente pressupõe o primado da hierarquia técnico-profissional (os gestores que me perdoem mas deveriam ter mais consciência das suas limitações) e é a única forma de conseguirmos evitar os assomos do racionamento. Parece-me também importantíssimo procurar convencer os nossos parceiros na U.E. a implementar modelos de mutualização, a nível europeu, dos custos do acesso a medicamentos inovadores.

[A] racionalização inteligente pressupõe o primado da hierarquia técnico-profissional (os gestores que me perdoem mas deveriam ter mais consciência das suas limitações) e é a única forma de conseguirmos evitar os assomos do racionamento

FRONTAL: Encerrando o capítulo da crise e também a entrevista; que medidas criativas podem ser tomadas, considerando restrições orçamentais impossíveis de contornar, no sentido de melhorar os cuidados de saúde na área da oncologia?

A solução passará por tornar as pessoas cada vez mais responsáveis pela protecção e promoção da  “sua” saúde, pelo reforço das medidas de prevenção  e de diagnóstico precoce, e pela implementação (finalmente) da rede de referenciação oncológica. É sobretudo preciso que todos nos convençamos que uma boa medicina, no domínio da oncologia como no de qualquer outro, é a melhor forma de simultaneamente assegurar o bem-estar e a saúde das pessoas e poupar dinheiro (Não há nada pior para a saúde e para a economia do que a falta de competência).

PS. A desonestidade e a corrupção também são péssimas para ambas.

 

 

 

 

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O Luís Afonso nasceu em Coimbra, mas sempre sonhou ser de Mortágua. É estudante do 6º ano de Medicina, mas gostava era de ter um bar de praia em Copacabana e um canudo de Línguas Orientais na algibeira. Se o virem num concerto de Coldplay com ar aluado, provavelmente enganou-se no caminho ao sair de casa para comprar bolachas com chocolate, situação que, aliás, lhe acontece frequentemente. Quase ganhou o torneio de Trivial Pursuit da Queima das Fitas, só que errou a pergunta «Quantos dias sobrevivem os Glóbulos Vermelhos?». A partir daí a sua vida foi sempre a descer.

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