Em ano de aniversário, foi o negócio que dominou a Saúde?

No ano em que se comemoraram os 35 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), num ambiente de festa e orgulho nacional transversal a todos os sectores, sinais vários de fragilidade e inconsistência dominaram o quotidiano da Saúde em Portugal. Na sombra da maturidade parecem surgir novos paradigmas para o destino do Sistema. Aqui fica a revisão do ano de 2014.

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Após 35 anos de SNS, esperança e optimismo seriam as palavras de ordem num sistema que se esperaria maduro e preparado para os desafios de um Portugal ainda debilitado. Ora, à margem das comemorações e de toda a propaganda política e corporativista típica de um sector enraizado na sociedade, o ano foi de reflexão. Mais do que uma reflexão a curto prazo, assente nos compromissos impostos por via externa, foi um ano de discussão de antigas ideias, novos paradigmas, novos actores, novas formas de gestão… Mais do que discutir a sustentabilidade, foi um ano em que se procurou responder à velha questão: O que querem os Portugueses para a Saúde?

Tempos de espera elevadíssimos para as primeiras consultas de especialidade nas áreas metropolitanas, milhares sem médico de família e dificuldades de acesso a exames complementares de diagnóstico foram problemas constantes em várias unidades do SNS que, perante a asfixia financeira, ainda que com mudanças eficientes na gestão, impossibilitaram fazer face aos desafios de uma população afectada pelas “doenças da crise”. Perante um Sector Público que se mostrou incapaz de responder de forma célere às necessidades dos Portugueses, milhares viraram-se para o Sector Privado como alternativa rápida e de qualidade.

As seguradoras, atentas aos ventos de mudança, apostaram fortemente em campanhas de publicidade, sendo “recompensadas” com um crescimento na ordem dos 6%, levando a que 23,2% dos Portugueses (maiores de 15 anos) já fossem detentores de um Seguro de Saúde (o maior valor de sempre).

Perante um Sector Público que se mostrou incapaz de responder de forma célere às necessidades dos Portugueses, milhares viraram-se para o Sector Privado como alternativa rápida e de qualidade.

Já nos anos 90, as polémicas declarações de Leonor Beleza (Ministra da Saúde nos governos de Cavaco Silva) de “quem quer Saúde paga-a”, remetiam-nos para a ideia da Saúde enquanto negócio altamente lucrativo.

Portugal sempre descartou esta hipótese, recorrendo aos valores do estado social como contra-argumento. No entanto, os anos da crise e os acontecimentos de 2014 mostram que o Sistema Nacional de Saúde deixou de estar apenas em “modo de gestão”, entrando numa metamorfose de eventos que estão a mudar a forma como olhamos para a Saúde.

23,2% dos Portugueses (maiores de 15 anos) já são detentores de um Seguro de Saúde (o maior valor de sempre)

Enquanto assistimos a um Sector Público que luta desesperadamente pela sustentabilidade, com recursos insuficientes, o Sector Privado renova-se, com impérios a cair e outros a nascer, procurando cada um obter um pouco da “terra prometida”. Uma nova directiva comunitária que permite o uso de cuidados de saúde a nível europeu alimenta aquilo que poderá ser uma nova forma de turismo, o de Saúde. Um sector farmacêutico que, perante as mudanças da política do medicamento e a diminuição das margens de lucro, recorre a esquemas em pirâmide para ainda obter algum fruto da árvore, cada vez mais seca, que é o estado social.

A Saúde parece estar a tornar-se cada vez mais um “Negócio da China”, atraindo cada vez mais investidores estrangeiros que procuram obter parte dos capitais humanos e físicos dos quais o Estado, por impossibilidade de os manter, se desfaz a pouco e pouco, alegando o argumento da Sustentabilidade.

A mudança e a possível reforma parecem ter chegado. Os Portugueses estão a mudar os seus hábitos. Esperemos que tal seja motivo de festa nacional!

O Remédio Santo

727271O ano iniciou-se com um conjunto de denúncias de fraude ao Serviço Nacional de Saúde. No âmbito do trabalho desenvolvido pela Unidade de Exploração de Informação (Criada em 2012), foi possível comunicar ao Ministério Público e à Polícia Judiciária centenas de casos suspeitos de fraude com receitas e medicamentos comparticipados pelo Estado.

No seguimento deste trabalho, as Autoridades,  na apelidada Operação Remédio Santo, efectuaram, só este ano, cerca de 7 buscas a farmácias, empresas de distribuição e consultórios médicos, permitindo detectar centenas de casos de fraude, o que culminou em treze condenações (entre médicos, farmacêuticos e delegados de informação médica).

O Estado saiu lesado em cerca de 200 milhões de euros

A fraude passava pela obtenção, com a conivência de médicos, de receitas passadas em nome de utentes do SNS que beneficiavam da prescrição de medicamentos com elevadas comparticipações do Estado (entre os 69 e os 100 por cento). Com as receitas falsas, os arguidos compravam os medicamentos em diversas farmácias, onde apenas era paga, no acto da compra dos medicamentos, a parte do preço que cabia ao utente. Posteriormente, o SNS pagava à farmácia o valor relativo à comparticipação. Os medicamentos eram vendidos à posteriori no mercado internacional, o que conduziu à escassez de medicamentos para patologias específicas como a doença de Alzheimer e a Esclerose Múltipla.

O Estado saiu lesado em cerca de 200 milhões de euros. O novo sistema de informatização de receitas, aliado a um maior cruzamento de dados permitirão, em 2015, um maior controlo e prevenção de episódios semelhantes.

Novos actores

Seguindo o plano delineado pela tutela em 2011, iniciou-se este ano o processo de transferência de gestão de algumas unidades do SNS para as mãos das Misericórdias. Tratam-se de Unidades Hospitalares de Pequena e Média dimensão, que outrora pertenceram às Misericórdias, mas cuja gestão fora retirada no âmbito do plano de nacionalizações resultante do 25 de Abril.

Este ano foram devolvidos os Hospitais de Fafe, Anadia e Serpa, como parte de um plano que contempla a devolução, num horizonte a 10 anos, da gestão de mais de uma dezena de Hospitais que outrora pertenciam às Misericórdias. A contrapartida imposta pelo Estado passa por um compromisso na redução de custos de gestão na ordem dos 25%, valor que estas instituições garantem ser capazes de cumprir.

O caso mais sensível é o do Hospital de Santo António, no Porto, por se tratar de uma instituição de elevada diferenciação e de carácter universitário, o que gerou algumas dificuldades na negociação.

O plano, a longo prazo, passa por alocar a estas instituições o poder de gestão das Unidades Hospitalares regionais, deixando na tutela do Estado as unidades de maior dimensão (nomeadamente os Centros Hospitalares de Lisboa, do Porto e de Coimbra).

Apesar de não estar equacionado, os privados manifestaram o seu descontentamento pela não abertura de concurso público para a aquisição da gestão destas unidades. Poderemos estar a assistir a uma corrida ao Património do Estado?

O Tabu do Privado?

cropped-181342162014 ficou também marcado pela ascensão de vários grupos no negócio da Saúde Privada. A queda do Grupo Espírito Santo, e a consequente venda da Espírito Santo Saúde, tornaram Portugal num mercado de interesse por parte de grupos empresariais chineses (Fosun), americanos (United Health), bem como dos portugueses (José de Mello). Com o crescimento do negócio dos Seguros e do chamado Turismo de Saúde (graças à já referida directiva comunitária de cuidados de saúde transfronteiriços), o número de Portugueses a recorrer a estas Unidades aumentou significativamente, representando já cerca de 12% da quota dos serviços de Saúde em Portugal.

Com o surgir de novas e diferenciadas Unidades de Saúde, muitas delas manifestando interesse em constituir Centros Universitários, a ideia de passar a Gestão das Unidades Públicas a entidades privadas tem ganho cada vez mais adeptos.

No âmbito da recente inauguração do maior Hospital Privado do País (Senhor do Bonfim, em Vila do Conde), o actual Primeiro-Ministro mostrou que, para o futuro, há espaço para que os privados possam prestar serviço na área pública, conferindo aos Portugueses a liberdade de escolha.

Saúde Europeia

A 1 de Setembro entrou em vigor uma nova directiva comunitária que permite que os Portugueses possam recorrer a cuidados des saúde noutros estados membros da União Europeia, quando estes não possam ser providenciados pelo Serviço Nacional de Saúde Português, procedendo ao reembolso dos cuidados prestados lá fora.

Esta medida, há muito pedida, poderia permitir diminuir, em parte, as listas de espera para determinadas cirurgias e/ou outros tratamentos, aos quais, por incapacidade do sistema, não é dada resposta em tempo útil em Portugal. Contudo, o facto das despesas de alojamento e viagem não serem contempladas para reembolso, e dos preços dos tratamentos de referência para o reembolso terem por base o preço em Portugal, condena logo à partida os doentes com menores rendimentos.

Vários especialistas alegam que a medida apenas irá beneficiar as Unidades Privadas de Saúde, por terem capacidade de comportar este tipo de mercado, tornando o chamado Turismo de Saúde uma oportunidade de negócio e crescimento sustentado.

“Sardinhas em lata”

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  • 338 dias de espera para consulta de Cardiologia (Centro Hospitalar de Tâmega e Sousa)
  • 1 ano de Espera para uma Colonoscopia (Hospital Fernando da Fonseca – Amadora Sintra)
  • 4 meses de espera para Consulta de Medicina Geral e Familiar (ACES – SINTRA, ACES-OEIRAS)
  • 22 horas de Espera em Serviço de Urgência (Hospital Fernando da Fonseca – Amadora Sintra)
  • 1 milhão de Portugueses sem Médico de Família

Estes são só alguns dos números mais polémicos que fizeram parte do quotidiano de quem recorreu a várias Unidades de Saúde do SNS.

Perante a asfixia financeira e as limitações impostas pelo Ministério das Finanças, a capacidade de gestão das Unidades Hospitalares  – particularmente no que toca à contratação de pessoal  – debilitou-se grandemente ao longo dos últimos 12 meses. As críticas, aliás transversais, tiveram o seu ponto mais alto na ameaça de demissão em bloco dos Directores Clínicos do Hospital de São João no Porto, o qual acabou por não se verificar.

A juntar a isto, uma fraca resposta e articulação com as Unidades de Cuidados Primários, aliada à falta de informação dos doentes relativamente aos serviços de saúde, culminaram em Serviços de Urgência sobrelotados em várias ocasiões, nomeadamente nas áreas metropolitanas.

De facto, uma maior independência na gestão e penalizações para os gestores que não cumpram com os tempos de espera impostos por lei são reivindicações há já muito proclamadas.

Porém, nem tudo são más notícias:

  • Tempo de espera para cirurgia é o mais baixo de sempre (2,5 meses no geral)
  • Diminuição dos tempos de espera para consulta de Oncologia
  • Aumento do número de consultas nos Centros de Saúde (24,3 milhões de consultas, crescimento de 2,9%)
  • Aumento do número de consultas de especialidade (10 milhões de consultas)

A corrida aos rankings

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Hospital de Santo António (Porto) foi considerado o melhor na categoria de Hospitais Universitários/Centrais

À semelhança de anos anteriores, os Hospitais do Serviço Nacional de Saúde foram, mais uma vez, sujeitos a uma avaliação que permitiu definir os Melhores Hospitais do País.

A criação destes rankings tem por objectivo dar um retrato da qualidade dos Serviços de Saúde a nível nacional, procurando informar os utentes e os prestadores, de modo a introduzir melhorias nos serviços, promovendo um espírito de competitividade entre unidade em prol do doente.

Os 41 hospitais do SNS (incluindo as parcerias público-privadas) foram divididos em grupos, definidos pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), de acordo com critérios como dimensão, variedade e complexidade de casuística:

– Pequenos Hospitais

– Hospitais de Pequena/Média Dimensão

– Hospitais de Média/Grande Dimensão

– Hospitais Universitários/Centrais

– Unidades Locais de Saúde

Cada hospital foi avaliado no âmbito do comparador, ou média, do seu grupo face aos resultados obtidos individualmente, sendo-lhe atribuída uma classificação.
Foram considerados vários critérios como a mortalidade, as complicações no internamento, os re-internamentos, a adaptação às novas tecnologias e a produtividade do pessoal médico e de enfermagem.
Os resultados revelam que os Hospitais Centrais são muito homogéneos entre si, contrariamente aos de Menor Dimensão, que apresentam assimetrias muito significativas no que toca a índices de produtividade.

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Os médicos saem à rua

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https://revistafrontal.com/politicamedica/porque-protestam-os-medicos/

A 8 e 9 de Julho os médicos saíram à rua, naquilo a que chamaram uma medida de excepção em defesa da qualidade e da integridade do Serviço Nacional de Saúde.

Apoiados pela Ordem dos Médicos, os motivos do protesto passaram pela negação do código de conduta, apelidado pelos médicos de “Lei da Rolha”, a reforma hospitalar, o encerramento e desmantelamento de serviços, a falta de profissionais e de materiais e a atribuição, aos profissionais médicos, de competências para as quais os mesmos não estão habilitados.

Na clássica guerrilha dos números, a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) declarou uma adesão na ordem dos 90%. Sejam ou não verdadeiros, as salas de espera vazias foram o espelho da união nacional que se instalou na classe profissional.

Com o apoio de outras associações (pensionistas e utentes), a “marcha das batas brancas” voltou mais uma vez às portas do Ministério da Saúde, naquela que mostrou ser, segundo as centrais sindicais, um sinal claro da necessidade de mudança.

Do outro lado da barricada, o Ministério mostrou-se surpreso com a greve, uma vez que estava a decorrer um período de negociações com as centrais sindicais, considerando assim o protesto como o resultado de uma mera motivação partidária.

Após a greve, a bonança voltou aos corredores da negociação. Resta saber por quanto tempo…

35 anos de conquistas

A 15 de Setembro celebraram-se os 35 anos do Serviço Nacional de Saúde. 35 anos de conquistas.
Num ambiente de comemoração, várias iniciativas decorreram de Norte a Sul. A Ordem dos Médicos realizou, durante uma semana, um conjunto de debates, exposições, actividades culturais e de lazer, no sentido de dar a conhecer à sociedade civil as conquistas do SNS e os profissionais que lhe deram rosto ao longo dos anos. As comemorações culminaram ainda na criação de um pequeno documentário de contextualização histórica do SNS.

A ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) não ficou atrás, tendo criado e publicitado um video onde congratula as conquistas do SNS e apela à melhoria das condições formativas dos futuros médicos, como pilar essencial da sustentabilidade do SNS a longo prazo.

A 15 de Setembro decorreu, na Reitoria da Universidade NOVA de Lisboa, a conferência comemorativa da data, sob a organização do Ministério da Saúde.
Num espaço onde as conquistas do passado contrastavam com as dificuldades do presente imediato, os vários intervenientes foram unânimes relativamente à importância do SNS enquanto instrumento de coesão social e ao desafio que os Portugueses têm em mãos: o de o fazer perdurar. Nas palavras do Ministro de Saúde ficou o compromisso:

Reafirmo que a saúde dos cidadãos depende do Ministério da Saúde, como depende de todos os outros ministérios. Depende do Governo, como depende de todos os profissionais deste e doutros sectores. Depende de organizações de profissionais e de doentes. Depende essencialmente de pessoas. Depende de todos vós. De nós.

Há que continuar por um melhor SNS, mas com um compromisso explícito da sociedade portuguesa sobre a sua manutenção e evolução.

Este é o nosso desafio e estou certo que também é o vosso.

É o desafio que os Portugueses nos exigem. Dizemos presente pelo nosso futuro.

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Bruno Gonçalves de Sousa é aluno do 5º Ano da NMS|FCM. De origem Lisboeta, numa família maioritariamente de Nortenhos, fez o seu percurso na famosa linha de Sintra, tendo ingressado no ensino superior em Setembro de 2010 na NOVA Medical School |Faculdade de Ciências Médicas. Actualmente é Director de Internacional e Local Officer on Research Exchange (LORE) da AEFCML. Tem a seu cargo a secção de Política Médica e Formação da FRONTAL, procurando mostrar que a relação que une a Medicina e a actividade política não é afinal tão ténue como possa parecer. Com interesses a deambular entre a Política, as artes e a Consciência dos Homens, talvez a Medicina seja o meio termo ideal, ou não estivessem eles todos ligados

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