Um mundo contra o Ébola

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Nos últimos meses, o Ébola tem dominado os escaparates noticiosos e a mente da maioria dos responsáveis políticos da área da saúde. Num apelo inaudito, a Organização Mundial da Saúde instou os países de todo o globo a unirem-se na contenção da epidemia. Uma revisão sobre o que foi feito, o que deve ser feito e o que ficou por fazer para limitar os efeitos desta catástrofe epidemiológica.

Como começou a epidemia na África Ocidental?

O doente zero foi um menino de 2 anos da vila Meliandou (Guéckédou, Guiné), que no dia 26 de dezembro de 2013 começou com febre, vómitos e melenas, falecendo dois dias depois. A vila situa-se próximo da fronteira com a Libéria e a Serra Leoa e estes três países, devido às más condições de trabalho, têm um grande fluxo populacional. Inicialmente suspeitou-se de cólera, que é endémica na região e para a qual 7/9 amostras testadas foram positivas; só em março finalmente se testou para o Ébola, devido ao auxílio de um especialista em Genebra. A identificação tardia do agente deveu-se à extrema pobreza nestes três países, à danificação das suas infraestruturas de saúde durante os longos anos de guerras civis e ao facto de ter sido a primeira vez em que a doença se manifestou na região. Os morcegos-da-fruta poder-se-ão ter aproximado dos aglomerados populacionais devido à sobrexploração dos recursos naturais durante as guerras civis. A Guiné declarou então o surto de Ébola por Zaire ebolavirus a 23 de março.

O que aconteceu desde então?

Considera-se que um surto terminou num país quando se passaram 42 dias (o dobro do período de incubação) desde que o último doente em isolamento teve o segundo teste negativo.

Este ano foi o único surto?

Não, no dia 26 de agosto deste ano a República Democrática do Congo também notificou à OMS um surto de Zaire ebolavirus no país, na província de Equateur. Neste surto, o doente zero foi uma grávida da vila Ikanamongo, que preparou um animal selvagem para comer. Esta foi a sétima epidemia de Ébola no país e não estava relacionada com o surto da África Ocidental, na medida em que o vírus é 99% homólogo ao vírus envolvido num prévio surto em 1995. O fim da epidemia neste país foi notificado a 15 de Novembro.

Já houve outros surtos no passado. Porque é que este na África Ocidental é diferente?

A primeira epidemia de Ébola identificada foi em 1976 em Yambuku, no Zaire (atual República Democrática do Congo), por Zaire ebolavirus. O seu nome deve-se ao rio Ébola, que se pensava ser o rio mais próximo da aldeia. Desde então têm ocorrido alguns surtos limitados em alguns países da África Central e casos minor fora do continente africano resultantes de contaminação laboratorial. Este surto é diferente dos anteriores porque:

  • Os números (14 101 casos e 5160 mortes) ultrapassam largamente a soma de todos os os surtos anteriores (2 343 casos e 1545 mortes)
  • Nunca antes o Ébola tinha afetado tantos profissionais de saúde (450 dos quais 244 morreram, até 23 de outubro), o que também diminui significativamente a capacidade de resposta ao vírus
  • Envolve tanto áreas urbanas como rurais, ao contrário dos surtos anteriores, que afetavam vilas remotas na África Central. Nas cidades é mais complicado, se não impossível, encontrar todos os contactos e coloca-los em quarentena.
  • Apresenta um comportamento de transmissão mais agressivo, com uma evolução do número de casos exponencial: o número de casos duplicou em 15,7 dias na Guiné, 23,6 dias na Libéria e 30,2 dias na Serra Leoa
  • A taxa de mortalidade é significativamente menor (37% em vez de > 90%), o que leva a uma maior probabilidade de disseminação
  • A duração é maior do que a habitual: Geralmente os surtos são limitados a 2-5 meses, mas a epidemia atual já dura há 9 meses, sem sinal de fim.

 Mas devemo-nos mesmo preocupar realmente com a atual epidemia de Ébola?

O cético responderá que não, invocando o surto de gripe das aves como argumento contra o “pânico” atualmente gerado em volta desta doença tropical. Diversos artigos têm sido publicados defendendo que a reação por parte das organizações internacionais e media nada mais passa que histeria despropositada com interesses económicos como pano de fundo.

No entanto, existem razões suficientes para os responsáveis políticos e comunidade científica olharem para o Ébola com atenção. A mortalidade associada, a rapidez de disseminação nos países afetados e a fragilidade dos sistemas de saúde do Oeste africano – claramente incapazes de lidar com uma epidemia tão destrutiva como esta – são razões de sobra para uma reação energética por parte das autoridades locais e comunidade internacional.

A mortalidade associada, a rapidez de disseminação nos países afetados e a fragilidade dos sistemas de saúde do Oeste africano são razões de sobra para nos preocuparmos com o Ébola

Outra razão importante é a inexistência, até à data, de uma cura para a doença. Hoje, a melhor arma continua a ser as medidas gerais de suporte, as quais parecem só serem possíveis de administrar com sucesso em países com um sistema de saúde organizado. A memória, por exemplo, da pandemia de gripe espanhola de 1918 – que afetou perto de quinhentas milhões de pessoas, matando entre cinquenta e cem – pode estar apagada da memória coletiva, mas todos devemos ter medo de um mundo em que não possuímos ferramentas eficazes para controlar doenças infecciosas. Afinal, a SIDA não há muito tempo (e ainda em algumas partes do mundo) era sentença de morte certa e rápida…

Que outras consequências poderão advir deste surto?

Infelizmente, mesmo no cenário improvável de vermos a epidemia controlada durante os próximos meses, as consequências para os países afetados serão inevitáveis. Não só devido à tragédia associada com a morte de milhares de pessoas, mas também às consequências económicas relacionadas com esta crise humanitária. Atualmente, as autoridades da Libéria já reviram em baixo a taxa de crescimento do PIB prevista para o atual ano, enquanto empresas estrangeiras planeiam ou têm em curso a evacuação dos seus trabalhadores expatriados. Por outro lado, a imposição de limitações de movimentos de bens e mercadorias também já está a colocar pressão sobre as já debilitadas economias do Oeste africano, num efeito global que promete aumentar os níveis já elevados de desemprego e pobreza da região.

Mesmo os países menos afetados, como a Nigéria (onde apenas foi registado um caso confirmado e a doença está oficialmente erradicada) estão a sofrer os efeitos desta doença, com o setor da hotelaria a ser severamente afetado, devido à fuga em massa de turistas para outras paragens menos “perigosas”.

Aconteça o que acontecer, o Ébola terá sempre um impacto significativo para as populações das regiões afetadas.

O que pode ser feito para combater a epidemia?

A contenção da epidemia de Ébola não é uma tarefa fácil. Também não é apenas uma questão de dinheiro – bastando aos países ricos abrirem os cordões à bolsa para resolver magicamente o problema – ou de sensibilização da população mundial, ou sequer de decretar oficialmente o estado de emergência nos países afetados. As soluções requeridas têm que ser pensadas considerando as idiosincrasias dos sistemas de saúde africanos e envolver as autoridades locais tanto quanto possível.

A debilidade dos sistemas de saúde e precaridade do saneamento são uma das grandes barreiras ao desenvolvimento de uma ação decisiva na contenção da infeção. Mas não são as únicas – a ingorância e o medo da população em relação à febre hemorrágica têm limitado a ação das equipas médicas no local e ostracizado doentes que necessitam urgentemente de tratamento.

Apesar das dificuldades sentidas no local, a imagem de uma situação cataclística, em que nada está a ser feito pelas populações e autoridades locais, deve ser linearmente eliminada. Efetivamente, a maioria dos Governos da região têm movido esforços significativos no controlo da doença (com destaque para a Nigéria, que foi capaz de erradicar o Ébola do seu país) e muitos grupos de cidadãos – como o representado neste vídeo da More than me, uma organização atualmente dedicada ao combate do Ébola na Libéria – estão a levar todos os esforços possíveis para auxiliar as populações doentes.

Atualmente, considera-se que a epidemia pode ser travada se 70% dos casos forem tratados em Unidades de Tratamento do Ébola ou, excecionalmente, no domicilio, caso exista um risco de transmissão diminuído e a garantia de boas práticas fúnebres. O problema é que muitos destes centros não têm condições de funcionamento ideais, com falta de material fundamental – como fatos de proteção – ou mesmo saneamento básico e água canalizada. Será na melhoria destes aspetos que o dinheiro vindo dos países desenvolvidos poderá ajudar a terminar o surto de Ébola.

Mais informações:                       


O ÉBOLA EXPLICADO AOS ESTUDANTES DE MEDICINA

A doença e o vírus

Aqui encontra-se o bê-a-bá do Ébola – uma abordagem sintética e informada sobre o vírus e a doença por si provocada. Os sintomas, os meios de transmissão, a fisiopatologia revistos para que nenhum estudante fique sem saber o que responder quando questionado pela avó sobre a tão falada doença.

Portugal deve ter medo do Ébola?

Quando foi anunciado um caso confirmado de Ébola na vizinha Espanha, muitos foram os que se arrepiaram com a possibilidade de uma epidemia em Portugal. O nível de preocupação subiu ainda mais no momento em que um doente suspeito foi internado no Hospital São João, Porto. Desde então, os ventos de tormenta amainaram – tendo o Ébola sido substituído pela Legionella no topo das preocupações epidemiológicas na mente dos portugueses – mas a pergunta mantém-se no ar: devemos ter medo do Ébola? Estaremos preparados para ele?

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Tem 23 anos, nasceu em Lisboa e é aluna do 5º ano de Medicina na FCM-UNL, após ter frequentado 1 ano em Medicina Dentária no ISCSEM. Adora viajar e conhecer novos mundos e culturas, já tendo morado na Alemanha e no Brasil e visitado 30 países em 3 continentes diferentes. O seu sonho é poder dar a volta ao mundo (mas não precisa de ser em balão, como o Júlio Verne!). Desde dezembro de 2013 que colabora com a revista FRONTAL. Pretende assim informar e inspirar os médicos do futuro (e não só!)

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