Assim reza a História… Clínica

Às palavras de Oscar Wilde “qualquer um pode fazer História – apenas um grande Homem a pode escrever” acrescentar-se-ia apenas uma palavra: clínica. Cada acontecimento histórico é marcado por rostos que se metamorfoseiam em ícones de livros. Contudo, por detrás de cada rosto estampado no papel há um individuo – um individuo com a sua própria história, composta por várias histórias (clínicas), rabiscadas por médicos e físicos da corte, eventualmente perdidas e adulteradas nas teias do Tempo.

A Loucura dos Reis

Aos três anos de idade, D. Afonso VI de Portugal (1643-1683) terá sofrido uma “febre maligna” – meningoencefalite ou meningite (Serrão, J. 1993) – que o deixou hemiplégico, estéril e propenso a comportamentos violentos. Depoimentos da esposa, pajens, prostitutas e médicos confirmaram a impotência sexual e a esterilidade do monarca (Baião, A. 1925), culminando assim com o seu afastamento do trono, desejado pelos apoiantes de D. Pedro II, seu irmão. Ao longo da sua vida, Afonso foi um mero brinquedo nas mãos dos seus conselheiros, nomeadamente do Conde de Castelo Melhor. “Louco” ou não, as sequelas da sua doença de infância deram origem a um destino diferente ao Portugal da época.

Afonso não foi o único dos nossos monarcas a ser apelidado de “louco”. D. Maria I teve inclusivamente a honra de ostentar esse cognome – mas terá ficado ela “louca” pela perda de familiares próximos ou pelo pavor de revoluções liberais? Partilhando o médico com D. Maria I, também Jorge III, rei inglês, foi vítima de demência na fase final da sua vida, atualmente atribuível talvez a um distúrbio bipolar ou a envenenamento crónico com metais pesados, utilizados na terapêutica da época (Hift, R. 2011, Cox, T. 2005).

A “loucura” de D. Maria I ou de Jorge III contribuiu apenas para um abandono mais precoce das funções monárquicas. Por outro lado, Ivan IV (o Terrível), czar da Rússia de 1547 a 1584, apesar de diplomata exímio e dedicado às artes, sofreu de ataques de violência desumana inexplicáveis durante todo o seu reinado. Ivan poderia padecer de síndrome do lobo temporal, o que explicaria a sua raiva explosiva, intercalada com períodos de profunda depressão (Espinoza, G. R. 2006).

Além das mortes cruéis de nobres e do extermínio de populares em Novgorod, um dos seus episódios psicóticos mais conhecidos é o homicídio do seu filho e herdeiro ao trono, Ivan Ivanovich, usando um bastão. Isto após ter espancado a sua esposa, grávida, pelas roupas supostamente indecorosas, provocando-lhe alegadamente um aborto espontâneo. A morte de Ivanovich obrigou a que Feodor I, intelectualmente incapaz e estéril, subisse ao trono, o que levou a que a Rússia entrasse numa crise de 15 anos – o chamado “Tempo de Problemas”.

O Sangue na História ou a História no Sangue

A “loucura” não é a maldição do sangue azul – esse misticismo cabe à hemofilia. Presente nas famílias reais europeias, ter-se-á originado numa mutação de novo na Rainha Vitória de Inglaterra que a transmitiu à descendência espalhada pela Europa. O exemplo mais trágico é o do seu bisneto Alexei Nikolaevich, filho do Czar Nicolau II e herdeiro do trono russo, que se tornou num príncipe duplamente amaldiçoado pelo seu sangue. Por um lado, amaldiçoado pelo sangue que corria demasiado em qualquer lesão; por outro, amaldiçoado pelo sangue real que nele corria por se tratar do herdeiro ao trono. Foi assassinado durante a Revolução Russa em 1918. Em vida, a sua doença levou à aproximação do curandeiro Grigori Rasputin à família real por insistência da Czarina Alexandra, que perdera a fé na Medicina. Contudo, a presença de Rasputin na corte agravou a desconfiança popular para com os Romanov durante o envolvimento russo na Primeira Guerra Mundial e pode ter sido um dos fatores preponderantes que levaram ao assassínio desta casa real.

Ninguém está livre das teias da doença – nem o “sangue azul” é uma garantia contra tal. A História é um desenho intrincado de jogos bélicos e políticos onde existe pouco espaço para a enfermidade. Assim, a influência de uma patologia de um líder no meio destes jogos revela-se dúbia, sobretudo pela escassez de relatórios médicos fiáveis. Torna-se, assim, difícil desenhar uma linha entre decisões políticas tomadas per si ou decisões políticas tomadas per infirmitas.

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Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

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