Razão ou Racionalização?

Em setembro de 2012, em resposta a um pedido do Ministério da Saúde de um parecer sobre a fundamentação ética da criação de novas regras de financiamento de três grupos de medicamentos – oncológicos, biológicos usados na reumatologia e antirretrovirais – com custos elevados (aproximadamente 500 milhões de euros em 2011), o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) publica um curto documento no qual abre portas para que o Sistema Nacional de Saúde (SNS) promova “medidas para conter custos com medicamentos”. No dia seguinte as capas de jornais encheram-se com uma palavra que iria gerar a maior das controvérsias: racionamento. Meses depois, vamos tentar perceber se esta polémica foi justificada ou se perdeu-se uma oportunidade para discutir um assunto relevante para o futuro do Sistema Nacional de Saúde (SNS).

Racionar medicamentos

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Duas palavras foram o suficiente para incendiar a opinião pública de um país de pavio curto. O pouco tempo em que este tema esteve na agenda mediática foi suficiente para criar posições extremadas e brutalmente sectárias, quase unanimemente opostas à posição enunciada pelo CNECV. Como em muitos outros assuntos polémicos que vão surgindo, poucos se importaram em discutir de forma ponderada: quem falou mais alto, falou melhor. As televisões alinharam no jogo e editaram reportagens sobre pacientes que sobreviveram ao cancro graças a terapêuticas recentes e a Ordem dos Médicos colocou a hipótese de levantar um processo disciplinar aos autores. No final o lado que ganhou foi o que esgrimiu os insultos mais requintados. Foi o debate sob a forma de caixa de comentários da internet, o genuíno “indignadismo” lusitano no seu melhor e uma oportunidade perdida de compreender os desafios futuros do nosso SNS com progressiva diminuição de recursos.

Admitamos: racionar é uma palavra forte. É coisa de tempo de guerra. Ou então de luxos desnecessários. Agora, com a Saúde? Nunca! Desde que haja saúdinha, não é? A saúdinha… Racionar cuidados de saúde invoca imagens de oficiais nazis a andarem de quarto em quarto a desligarem as máquinas dos idosos, orquestrando a tão desejada solução final – felizmente esta imagem está muito longe da realidade e, a ocorrer, o racionamento não será nada disso.

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A incontornável realidade de termos um Sistema de Saúde universal – público, privado ou misto – num incessante combate face a uma escalada de custos inexorável e à impossibilidade de aumentar o seu financiamento eternamente evidencia a questão do racionamento como sendo premente de se discutir. A inovação em meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, as necessidades de uma população a envelhecer rapidamente, e a maior incidência de patologias de terapêutica muito dispendiosa são razões de sobra para questionarmos determinantemente se o SNS, com crise ou sem crise, terá sustentabilidade a longo prazo caso a linha de pensamento continuar a ser a de que a Saúde não tem preço – por mais alto que seja – e que o sistema tem recursos simplesmente ilimitados.

É com este cenário como pano de fundo que a questão do racionamento deve ser abordada.

O que é o amaldiçoado racionamento?

Para o CNECV significa priorização, isto é, a organização de prioridades no que toca à utilização de medicamentos e meios auxiliares de diagnóstico, determinada por listas nacionais que estabeleçam a utilização dos mesmos com base na sua eficácia clínica, bem como nos seus custos, dando particularmente enfoque aos fármacos com preços elevados e eficácia duvidável, isto é, não superior a tratamentos já estabelecidos (e mais baratos). A lógica invocada pelo CNECV é criar esta priorização com base no princípio de “prescrever o mais barato dos melhores e não o melhor dos mais baratos”, através de um processo transparente envolvendo profissionais da saúde, gestores, políticos e a sociedade civil.

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Um dos argumentos do CNECV é de que o racionamento já existe implicitamente, com médicos a prescreverem diferencialmente nos vários hospitais, conforme sensibilidades locais, e sugere estabelecer regras específicas para o tornar explícito. Mais, questiona a ética da atual situação, pois advoga que dois pacientes podem receber terapêuticas diferentes conforme o ponto do país onde se encontram, ou seja que se tratam iguais de forma diferente sem que exista qualquer razão objetiva para tal diferenciação. O CNECV argumenta, portanto, que a atual situação leva a violações claras do princípio da equidade, um dos alicerces sustentadores do SNS.

Não vale a pena esquecer, porém, um ponto fundamental: o racionamento poderá levar a práticas médicas eticamente dúbias. O caminho fica livre para que se interdite a prescrição de determinados medicamentos aprovados com base em critérios financeiros. Decisões deste género já ocorreram em países onde a priorização está em campo e não há dúvida alguma que serão muito discutíveis; poderá inclusivamente ser visto como justo repudiá-las. Mas, pelo menos, estas foram públicas e qualquer pessoa as pôde criticar. Em Portugal, pelo contrário, não existem regras precisas que definam o seu uso a nível nacional, criando situações em que pacientes podem ser descriminados em relação a outros que estejam num hospital vizinho. Não haja dúvidas: o racionamento trará desafios éticos tremendos, mas ao menos fará emergir uma justiça que hoje não existe e evidência científica no campo onde o discricionarismo é rei. Será esta razão para se negar determinantemente a sua discussão? Apelidar de fascistas os seus defensores?

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Alguns detratores da possibilidade da implementação do racionamento defendem uma forma alternativa para controlar os custos com a saúde: reduzir o seu desperdício. Hoje, o SNS tem um défice brutal de eficiência e apontam como paradoxal pretender-se cortar na despesa com medicamentos sem que antes se faça um esforço premente para que se controle o desperdício (já apontado como estando entre os 20 e 30% do orçamento total para a saúde). De que vale criar regras em relação ao uso dos medicamentos mais dispendiosos se simultaneamente os recursos, que chegariam para cobrir os seus custos, são desperdiçados graças a más práticas de gestão?, perguntam.

De facto, o estabelecimento de racionamento ou priorização na saúde é questionável e muitos serão os argumentos válidos para o contestar: mais uma razão para ser um assunto a discutir com ponderação. Os custos com o SNS são e serão crescentes: de uma maneira ou de outra vamos ser confrontados com opções difíceis de tomar para permitirmos o seu equilíbrio financeiro; caso a racionalização de custos tenha de ser implementada, tal como o foi noutros países, de forma a garantir a manutenção a longo prazo das suas características fundamentais – equidade, universalidade e qualidade –, devemos antecipar a discussão sobre o assunto deixando a indignação habitual à porta. Se, pelo contrário, optarmos por bradar tochas furiosas e fechar os olhos a estas problemáticas, estas bater-nos-ão à porta daqui a uns anos com o dobro da gravidade: tendo em conta os acontecimentos dos últimos anos, acho que já aprendemos que tal não será uma muito boa ideia.

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O Luís Afonso nasceu em Coimbra, mas sempre sonhou ser de Mortágua. É estudante do 6º ano de Medicina, mas gostava era de ter um bar de praia em Copacabana e um canudo de Línguas Orientais na algibeira. Se o virem num concerto de Coldplay com ar aluado, provavelmente enganou-se no caminho ao sair de casa para comprar bolachas com chocolate, situação que, aliás, lhe acontece frequentemente. Quase ganhou o torneio de Trivial Pursuit da Queima das Fitas, só que errou a pergunta «Quantos dias sobrevivem os Glóbulos Vermelhos?». A partir daí a sua vida foi sempre a descer.

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