A Preguiça Num Sonho

Ao fundo, um som familiar, que traz aquela familiar sensação da negação – não, não podem ser já horas de estar de pé! Estico o braço, calo o despertador tirano e mergulho e naquela luta ingrata entre a obrigação de informar o corpo de que o sono acabou, com um movimento imperceptível ou um alongamento subtil, e a aprazível inércia matinal de um corpo inteiro.

Saio da cama como quem tenta aos poucos solidificar um corpo amorfo e encaixar peça sobre peça, membro sobre membro, sentindo aqui e ali um estalar suave. Abro a janela: está fresco, mas sabe bem.

Eu também sou feliz só por preguiça. Preguiça de fazer perguntas. As erradas. Não me quero apoquentar com perguntas sem resposta. Por isso, vou andando sem perguntar demasiado. Volta e meia – assim como num rasgo de luz que entra pela janela do quarto cedo demais e sem pedir permissão, e me acorda demasiado tempo antes do sono terminar, ou me rapta do sonho mesmo quando ele estava a ficar bom – dizia eu, volta e meia surge uma dúvida. Uma dúvida primordial que sacudo das ideias com um abanão de cabeça porque sei bem que o esforço de dissertar supera em todas as dimensões o esforço de me abanar de C7 para cima. A chatice desta dúvida é que ela tem uma voz inaudível e simultaneamente ensurdecedora, como um som de baixíssima frequência que não se percepciona, mas que está lá, gera incómodo e causa estragos. Isto porque a consciência é danada para estragar a felicidade, resgatar uma pessoa da comodidade da sua preguiça. Quase que me sinto Sísifo: quando estou prestes a alcançar o cume da minha preguiça, e começo a antecipar a leveza muscular e a paz de alma e coração tão típicas de quando se é tão preguiçosamente feliz, eis que surge a tal questão e me arrasta montanha abaixo direitinha ao sopé das minhas inquietações. Esta dúvida é, em linhas muito genéricas, a seguinte: “Estará este doente no grupo estatístico dos pouquíssimos que fogem à regra?”. Por norma, em questões de saúde, estar englobado na fracção probabilística da excepção à regra representa uma clara desvantagem para o indíviduo, e portanto eu não o recomendaria. Além de aborrecido, é arriscado… Claro que existem os casos inversos, os milagres que ultrapassam a doença contra todas as previsões matemáticas e baralham os cálculos médicos. Mas nestes casos a hipótese de um milagre não nos zombe ao ouvido como uma dúvida inquietante, antes aquece o coração e tranquiliza a angústia. Chama-se esperança.

Interrompo de rompante a minha divagação e salto da banheira – despacha-te! Preciso tanto de um café agora…

A esperança é um assunto delicado. Como é que um médico que se vê perante um doente crónico, grave, lhe transmite a esperança que este espera encontrar na consulta, sem incorrer em inflações ilusórias e infundadas das hipóteses de sobrevivência? Como é que se transmite tranquilidade, alento, como é que se motiva ao investimento nos tratamentos? Como é consigo que o doente não desista de si?

Bom dia inquietações! Esfrego os olhos e tento conter as hordas de invasores. Bem tento mantê-las bem ao largo, na cave da consciência, mas as malditas alimentam-se da minha vulnerabilidade matinal e infiltram-se em cada brecha que encontram só para se fazerem à superfície.

Numa entrevista para a revista Visão, a Dra. Fátima Cardoso, Oncologista responsável por dirigir o Programa de Investigação do Cancro da Mama da Fundação Champalimaud e coordenadora do Programa de Cancro da Mama da Escola Europeia de Oncologia, afirma estarmos “… a caminhar para uma Medicina a duas velocidades: a dos ricos e a dos pobres. Para um médico que tenha consciência, é muito doloroso”. Trilhar o caminho da consciência é andar sobre um piso acidentado e tortuoso, com armadilhas a cada curva, tropeções, pausas e recuos, e que não raras vezes desemboca em encruzilhadas éticas. Exercer Medicina assim? Ser médico-gestor e dominar a arte de gerir fármacos que de tão baratos e tão pouco lucrativos, já escasseiam no mercado, e fármacos que, de tão caros, estão restritos aos que têm contas apertadas a ajustar com a vida?

O desencanto a apoderar-se de mim.

Felizmente que hoje não é assim. Hoje, anos volvidos e pestanas perdidas, sou a médica que projectei quando me imaginei a tomar conta da saúde de quem não tem como o fazer. Não me previ a fazer aquele tipo de contas, entre o exame a prescrever e o fármaco a administrar “Porque o orçamento hospitalar está emagrecido, faminto”. Hoje, a Medicina deixa-nos à disposição uma mão tão cheia de técnicas diagnósticas extraordinariamente exactas e medicamentos omnipresentes e “omni-eficientes”, que não há espaço para perguntas nem margens para dúvidas. Longe vão os dilemas éticos, crises de consciência nem vê-las! Porque onde tudo é tão exacto e os tratamentos são tão disponíveis, não há ansiedade, reina a minha preguiça, a rainha das certezas. Não existe médico que se inquiete nem doente que se perca no labirinto das excepções à regra. Não há excepções à regra.

Sorrio: hoje não é dia para preguiças.

E saio de casa.

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Nascida em março de 1986, Carolina ingressou no 2º ano de Medicina na FCM-NOVA em 2012 após um desvio no seu percurso a ter conduzido ao curso de Medicina Dentária, percalço que nunca abalou a sua enorme vontade de se dedicar a outras formas de curar e cuidar. É editora de Ciência da Frontal e no (pouco) tempo livre que lhe sobra procura inspiração no cinema, na música e na leitura.

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