Smartphone Fever Syndrome

Faz um tempinho que doenças como a peste, lepra ou a varíola estavam na ordem do dia. Fast-forward até aos dias de hoje e temos doenças cardiovasculares, metabólicas e cancro à cabeça da lista, todas elas acotoveladas no primeiro lugar do pódio dos inimigos públicos da Medicina. Mundos e fundos são movidos para se enterrar as supracitadas no mesmo sítio onde a Selecção Francesa terá enterrado o seu autocarro de campeã, num esforço de deixar para trás como rasto das suas respectivas existências apenas as memórias trágicas associadas. No entanto, ainda ninguém parou para reflectir num assunto não menos premente: Qual será a Doença do Futuro? Analisemos então os sinais do Presente para percebermos que pandemia nos reservam as décadas vindouras. Mergulhemos neste admirável mundo novo e exploremos este fantástico espécime que é o Paciente do Futuro.

De http://www.bestcomputerscienceschools.net/selfies/

Já desde há uns bons tempos que o referido hominídeo se encontra metastizado pelos mais recônditos meandros do Planeta Azul, seu prisioneiro e doente terminal de longa data, Pontinho Azul Pálido a ficar anémico e caquético a cada dia que passa. Fazendo um eclipse a 99,9 % das peripécias do Homo Sapiens sapiens, chegamos então ao século XX: o século que viu os acontecimentos mais ramáticos da História, sendo o nascimento da Internet, dos Pokemons e dos Gameboys alguns exemplos. Um outro eclipse de 10 anos e chegam os smartphones. E é aqui que a coisa começa a ficar (mais) estranha. É que associado a estes objectos vieram uma série de comportamentos bizarros…

Sem mais demoras, vamos quebrar o suspense – smartphone fever syndrome. O nome sugere uma febre hemorrágica oriunda de um lugar exótico que faz o enfermo defecar sangue até à morte, mas na realidade trata-se de algo mais próximo de uma perturbação obsessiva-compulsiva de indivíduos com mais dinheiro e tempo livre do que discernimento. A doença tem um curso de agravamento progressivo com episódios de exacerbação ocasionais e de natureza variada, desde os sintomas de privação até à misteriosa e recentemente documentada Febre-do-Pokémon, tão complexa que quase pode ser considerada uma síndrome distinta. O prognóstico é aparentemente mau, já que parece que a única opção de tratamento 100% eficaz é esperar que os planetas do Universo se alinhem e o Wi-Fi deixe de funcionar permanentemente a nível mundial.

A tal componente obsessiva-compulsiva já referida. A obsessão pode chegar a ocupar uma quase-totalidade da mente, a compulsão uma parte significativa do dia-a-dia. Manifesta-se de diferentes maneiras: desde a simples procrastinação (que também poderia ter todo um artigo dedicado a ela, portanto fiquemo-nos pela menção honrosa dos vídeos do Youtube de gatos a dar cambalhotas e a lutar com ursos) até ao menos inofensivo apetece-me-ignorar-os-meus-amigos-que-estão-agora-a-falar-comigo-por-isso-vou-dar-numa-de-Ursinho-Carinhoso-e-mandar-snaps-a-expelir-arco-íris-pela-extremidade-superior-do-tubo-digestivo. Comportamentos pontuais mas repetidos várias vezes ao longo do dia, em diferentes contextos.

O primeiro durante a época de exames, quando o doente está em modo hammster, a tentar enfiar todas as páginas do livro e slides das teóricas que conseguir para dentro das bochechas, a ver se consegue reter todas as verrugas e melenas que precisa de deitar fora no dia do exame. Tem um um notável primo afastado: o multi-tasking, presente essencialmente nas aulas teóricas quando o doente pretende fingir que presta atenção à aula enquanto navega por esse Oceano Azul Profundo denominado Facebook ou exercita o polegar a jogar Flappybirds, já que é importante fazer a profilaxia da tendinite mesmo quando não se está a ver televisão.

O segundo essencialmente em qualquer ocasião de convívio na vida real em que o comportamento compulsivo se sobreponha ao prazer de conversar com gente, havendo também primos afastados como o vamos-publicar-selfies-compulsivamente – algo polémico, já que há quem defenda que se trata apenas de uma manifestação de perturbação narcisista da personalidade – e que geralmente acontece quando se está em lugares pomposos (com brownie points extra se for no estrangeiro) ou na praia (brownie points extra se for em plena época de exames), acompanhadas de descrições profundas (brownie points extra se forem em inglês) que têm tanto a ver com a imagem como os pêlos da região axilar do Cristiano Ronaldo têm a ver com o bigode do senhor representado em baixo.

Taquicardia, irritabilidade (“birra” na gíria popular), suores frios, tremores de mãos e hiperémia conjuntival são alguns dos sintomas observados no exame objectivo, havendo ainda alterações do sono importantes (se ele ainda estiver sequer presente). Estes sintomas surgem num contexto singular: quando a internet deixa de funcionar. Ou quando o nosso tarifário de telemóvel não inclui 3G e temos mesmo que conversar com os nossos amigos enquanto esperamos pelo metro. E em muitas outras situações em que o convívio é indesejado, pelo menos na vida real. Há que referir que também aqui há uma certa polémica: se há autores que consideram que os sintomas observados se devem à privação do acesso ao Mundo Encantado dos Filtros de Instagram, há uns quantos outros que inserem estes sintomas num quadro de atrofia das capacidades de relacionamento social, com consequente ansiedade no momento de interacção que proporciona conversas com um nível de interesse semelhante ao de conversas de elevador ( 1 – falar do clima 2 – *silêncio constrangedor*) ou, num caso mais extremo, ao nível das conversas que temos quando encontramos no autocarro aquele colega de liceu que conhecíamos mas com o qual não falávamos assim tanto, sentindo a obrigação de meter conversa só para não parecer mal (1 – falar um pouco sobre as respectivas faculdades 2 – *silêncio ainda mais constrangedor do que o da conversa de elevador*).

Merece um destaque especial, visto que é, como já referido, um fenómeno mais complexo. Existe, como o nome indica, febre, de intensidade variável e sem predomínio por qualquer fase particular do dia, acompanhada de estereotipias, distonias, coreias, atetóses e outros movimentos involuntários, visualizados por um observador pouco atento e inexperiente como padrões de comportamentos… interessantes. Os mesmos podem ser bastante inofensivos – quiçá benéficos – como haver sedentários cuja única actividade física se resume a fortalecer os músculos do polegar no decurso do extenuante processo de zapping a elevarem os glúteos do sofá e irem praticar algum jogging para apanhá-los todos – ou mesmo andar de bicicleta, no caso dos mais intrépidos. Acaba por ser também um factor de protecção para as úlceras de pressão da região glútea.

Por outro lado, também pode envolver algo que não se compreende bem ainda: há autores que defendem que são delírios febris intensos, enquanto outros consideram mesmo um episódio maníaco transitório, que pelo seu carácter altamente – e sobretudo estranhamente – contagioso, pode receber também o simples nome de histeria colectiva. Perseguições policiais na autoestrada em contramão, parar o trânsito em plena hora-de-ponta, invadir cemitérios em busca de um tesouro numa arca perdida, entrar no quintal de um nosso ilustre desconhecido e demais exercícios de falta de vergonha capazes de envergonhar até o Remi Gaillard são alguns das opções do cardápio. Dita a psicologia do Símio Dominante que o pensamento de manada é de sentido único, razão pela qual é difícil escapar à histeria colectiva quando ela acontece. Apesar de tudo, parece haver um tratamento sintomático eficaz para este quadro: pensar pela própria cabeça. Se não resultar, nada como a aplicação de um par de lamparinas terapêuticas para exorcizar a turba dos demónios da mentalidade de cartel.

Não há vacina que valha, mas poderão ser adoptadas algumas medidas profiláticas para se prevenir ou retardar o aparecimento da smartphone fever syndrome. Uma delas é ter em conta que ninguém quer saber que comemos sushi e bebemos gin. Para além disto, há que notar, aquando da publicação de uma selfie, que a vida nunca deu limões a ninguém. Nem são dois dias. Por fim, e não menos importante: só gente infeliz se agride verbalmente on-line. E não, a idade do Renato Sanches não é assunto assim tão interessante.

E bom, esta conversa poderia dar pano para mangas. Para já, ficamos assim combinados.

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As origens do Pedro Vazão Vasques remontam ao longínquo dia de 5 de Junho de 1993, dia em que infligiu os seus primeiros estragos nos tímpanos de um qualquer pobre coitado a estagiar no Hospital D. Estefânia em Pediatria (ele parte do princípio que os profissionais de saúde já não os teriam sequer e portanto não se incomodassem minimamente com os gritos de sofrimento - infligido, e com prazer - soltados pela amostra de ser humano que tinham perante si, mas refere não se lembrar muito bem). Lembra-se, no entanto, que desde pequeno que tem a mania de escrever textos cheios de parênteses, vírgulas e hífens que ficam muitíssimo - também costuma usar palavras acabadas em "íssimo", adjectivos principalmente (também palavras acabadas em "mente"), embora não neste caso - confusos e que precisam de ser lidos 3498498 vezes para se decifrar o que lá está realmente escrito - e ainda seria mais complicado se estivessem a tentar lê-lo não com a letra de computador mas sim com a sua caligrafia singular, que mesmo o próprio, por vezes, interpreta como uma sucessão bizarra de complexos QRS pleiomórficos. Metade de si é desastrada e esquecida, a outra foi entretanto derrubada ou perdida num qualquer canto da cidade de Lisboa, não se lembra bem qual. É garantido, no entanto, que a sua cabeça, neste preciso momento, andará a deambular algures pela Via Láctea, vindo algumas vezes à Terra para estabelecer contactos com a gente que por aqui anda, pôr conversas em dia e consumir as suas drogas preferidas, música e cinema.

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