A vibrante história da histeria

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Histeria. A “doença” intemporal de que todos falam mas poucos conhecem. Será mesmo uma doença ou uma forma protesto? Uma metáfora literária, talvez? Porque terá o termo desaparecido da gíria médica?

Talvez não exista uma definição satisfatória de histeria. Todavia, é muito fácil identificá-la sempre que é encontrada. Coloquialmente, é empregue como epíteto à exibição de respostas emocionais exageradas, possuindo conotações depreciativas. Estigmáticas, até.

Mas, então, enquanto patologia… Existe? Já existiu? O que é feito dela?

 A palavra histeria deve ser conservada apesar de ter sido muito alterado o seu significado primitivo. Seria muito difícil modificá-la hoje e, na verdade, tem uma história tão grande e tão bela que seria doloroso ignorá-la; mas porque cada época lhe tem atribuído um significado diferente, vamos tentar descobrir qual é o seu significado actual”  

Pierre Janet, início do século XX 

in Quartilho, M. (2016)

A FRONTAL desafia-te a aceitar o convite de Janet, proporcionando-te uma expedição pela conturbada e fascinante história desta entidade. 

 

Apesar das primeiras referências serem egípcias e datarem de há mais de 4 000 anos, o termo “histeria” deriva do étimo grego para “útero”, estando-lhe inerente o carácter de patologia claramente feminina desde a mais remota das concepções.

No Antigo Egipto considerava-se que a doença resultava de movimentos ascensionais do útero a partir da sua localização pélvica normal. A razão pela qual o útero se sentiria impelido a deslocar-se seria a imperfeição do corpo feminino, que, sendo húmido e frio, fazia com que o órgão migrasse em busca de locais mais quentes e confortáveis. As manifestações clínicas traduzir-se-iam por um excêntrico conjunto de sintomas físicos e mentais, que incluíam alterações emocionais extravagantes, a chamada “sufocação histérica” (quando o útero, alegadamente, se alojava junto aos pulmões ou da traqueia), as palpitações (quando aquele “migrava” para junto do coração) e toda uma panóplia de sintomas bizarros e imprevisíveis com os quais as enfermas se podiam apresentar. O tratamento destas mulheres consistia em colocar substâncias aromáticas na vulva, de modo a que o útero se sentisse “atraído” e regressasse ao seu local habitual. Do mesmo modo, o acto de cheirar essências pútridas visava expulsar o útero das regiões tóraco-abdominais em direcção à cavidade pélvica. A inserção vaginal de um pessário, um cilindro metálico através do qual se disseminavam os fumos de várias ervas aromáticas, tinha o mesmo objectivo.

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A teoria do útero errante defendia que a histeria resultava dos efeitos neurotóxicos de um “útero frustrado” que procuraria gratificação através de movimentos erráticos na cavidade abdominal.

Mais tarde, os gregos, apoiando-se na sabedoria egípcia, mantiveram a teoria do útero migratório, ao qual atribuíram o nome de “útero errante”. Todavia, foram mais longe ao afirmar que existia também uma associação estreita entre a histeria e uma vida sexual insuficiente ou insatisfatória. Para Hipócrates (século V a.C.), a histeria resultava dos efeitos neurotóxicos de um “útero frustrado” que procuraria gratificação através de movimentos erráticos na cavidade abdominal, causando as alterações motoras, sensoriais e emocionais próprias da patologia em questão. Também Platão (século IV a.C), por sua vez, defendia que o “útero errante” se devia à necessidade concupiscente, furiosa e voraz por libertação. Posteriormente, a histeria ficaria conhecida por “sufocação da mãe”, uma expressão pejorativa na qual “mãe” é metonímia de “útero”. Para tratar as enfermas, recorria-se, sem grande expectativa, a fumigações uterinas e compressas abdominais. O melhor, mais eficaz e mais “recomendável” tratamento era, de longe, o casamento.

Os médicos da Roma Antiga, apesar de encararem cepticamente a teoria do útero errante, continuaram a evidenciar a cumplicidade entre a histeria e a ausência de gratificação sexual. Galeno (130-200 d.C.) defendeu que a histeria resultava da retenção excessiva de uma substância líquida ou vaporosa, tóxica, exsudada a partir do útero. Este, ingurgitado com a “semente não utilizada” (entenda-se, não libertada por orgasmo), disseminá-la-ia pelo organismo, causando os sintomas excêntricos que caracterizavam a patologia. Tal hipótese era coadunável com o facto de as mais afectadas serem mulheres virgens, viúvas ou celibatárias. O tratamento das histéricas dependia, pois, do seu estado civil. Às casadas, recomendava-se um padrão regular de fornicatio conjugal. Às restantes, aconselhava-se que casassem. Àquelas em que tal não era possível, aplicava-se o “Tratamento de Galeno para Viúvas”, que consistia na fricção dos genitais da enferma com um unguento até que esta atingisse um estado de contracções físicas e de estase – situação actualmente conhecida por orgasmo.

Aquilo que ficou por esclarecer foi quem executava o tratamento. Os relatos do caso histórico de Galeno variam em diferentes traduções. Possivelmente, os tabus sexuais e as implicações em torno da sexualidade feminina e da autoridade médica encarnada neste tratamento terão sido a razão deste “lapso” da História. Consequentemente, não se conseguiu apurar se seria a própria enferma a realizar o tratamento em si própria – situação demasiado semelhante à “condenável” masturbação – ou se seria Galeno – um homem – ou, ainda, se seria uma assistente – uma curandeira, mulher, sem formação que a habilitasse a médica; alguém muito compatível com uma figura que, séculos mais tarde, seria apelidada de “bruxa” e condenada à fogueira.

 

O que acabou mesmo por acontecer. Apesar de as ideias oriundas do Antigo Egipto, da Grécia e de Roma constituírem as origens históricas do conceito médico de histeria na civilização ocidental, o aparecimento da civilização cristã operou a primeira grande mudança prototípica na história da histeria. As formulações sobrenaturais viriam substituir as naturalistas. Partindo da premissa que o sofrimento humano resultaria de um pecado original, a histeria passou a constituir uma evidência de possessão demoníaca. As anestesias, os mutismos e as convulsões, sintomas típicos de histeria, passaram a ser interpretados como stigmati diaboli, ou seja, marca do demónio.

O diagnóstico de histeria deixou de ser feito por médicos e passou a ser feito pela Igreja e pelos tribunais. Uma parte deste consistia na aplicação local de ferros quentes para se delimitarem as áreas de anestesia. O tratamento consistia em rezas, amuletos e exorcismos. As mulheres identificadas como histéricas eram interrogadas, perseguidas, torturadas e, por vezes, queimadas na fogueira.

Adicionalmente, a criação de uma classe médica universitária, controlada pela Igreja, exclusiva a homens e pouco acessível às massas populacionais, reforçou o papel das curandeiras enquanto prestadoras de cuidados de saúde junto das classes mais desfavorecidas. Estas mulheres foram erradicadas e queimadas como “bruxas” (juntamente com as histéricas às quais prestavam cuidados) por praticarem “artes curativas”, nomeadamente por providenciarem tratamento ginecológico a estas mulheres.

O fim do Renascimento, coincidente com a Revolução Científica na Europa Ocidental e a introdução de novos métodos de investigação, conduziu à retoma do estatuto patológico que outrora fora associado à histeria, atribuindo-lhe um tratamento médico, ao invés de um castigo público ou condenação religiosa.

Uma vez provada a ausência de patologia uterina nas autópsias das doentes “histéricas”, e vice-versa, as associações entre a histeria e o sistema reprodutor da mulher começaram a enfraquecer. Ao invés, a fonte da patologia moveu-se para o sistema nervoso central (SNC). Emergiu assim um novo modelo, não sexualizado, compatível com as teorias ginecológicas do passado, que removeu os obstáculos conceptuais à identificação diagnóstica da histeria tanto nas mulheres como nos homens. Admitiu-se, pela primeira vez, a histeria masculina como uma possibilidade diagnóstica plausível.

Para Thomas Sydenham (1624-1689), a histeria feminina e masculina eram em tudo semelhantes. Ambas resultavam de perturbações emocionais que se manifestavam pela mimetização de várias doenças. Surgiu, deste modo, o conceito de “histero-hipocondria”, o primeiro encarar a histeria enquanto transtorno neuropsicológico. Todavia, não foi um modelo consensualmente aceite pela classe médica vigente.

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Franz Anton Mesmer recuperou a teoria do magnetismo animal, de Paracelso, criando o mesmerismo, cuja popularidade contribuiu para a prática disseminada de charlatanismo durante todo o século XIX.

Nos finais do século XVIII, Franz Anton Mesmer (1734-1815) eternizou-se ao criar o “mesmerismo”.
Recuperando a teoria do magnetismo animal, de Paracelso, segundo a qual as forças de maré dos planetas exerceriam uma força magnética universal sobre os seres humanos, Mesmer propôs tratar os seus pacientes utilizando um magnete que, alegadamente, transformaria o fluido cósmico universal em fluido magnético, passível de entrar na nádis (espécie de artéria etérica, isto é, uma via energética transcendente do ser humano) e, assim, repor o fluido vital, curando o enfermo.
O tratamento efectuado com magnete, que Mesmer percebeu não ser “o” elemento terapêutico, conjuntamente executado com outras técnicas que incluíam a imagem mental, o gesticular das mãos e o toque, induziam estados de anestesia, paralisia e convulsões histéricas nos seus pacientes. Mesmer, que exibia as suas demonstrações e curas dramáticas em público, foi criticado e descredibilizado pela comunidade médica. Previsivelmente, o fascínio com o mesmerismo contribuiu para a crescente popularidade de práticas do oculto e de charlatanismo durante todo o século XIX.

Apesar de tudo, esta “doutrina” viria a influenciar James Braid (1795-1860) a desenvolver, em 1843, a teoria da neurofisiologia da hipnose, que acabaria por enterrar o mesmerismo de vez e estabeleceria o fenómeno da hipnose como abordagem científica.

Durante o século XIX, assistiu-se a uma multiplicação de textos e teorias sobre a localização anatómica precisa da histeria. Apesar de se favorecer o SNC nuns círculos, a descoberta da ovulação inspirou as teorias ováricas e reforçou as hipóteses uterinas, noutros.

  • As Hipóteses Uterinas

Curiosamente, o fim do século XVIII e o início do século XIX testemunharam o renascimento das teorias uterinas. Em França, entre 1790 e 1860, a histeria foi novamente considerada uma doença feminina associada à anatomia e fisiologia reprodutora da mulher; as teorias nervosas sobre a histeria masculina iniciaram um (longo) período de hiemação. Estabeleceu-se, de novo, uma associação marcada entre a histeria e a sexualidade feminina que, apesar de tudo, trocou de argumento: ao invés da privação sexual, a histeria dever-se-ia à determinação causal dos excessos libidinosos.

Os defensores das hipóteses uterinas conceberam modelos neuro-uterinos, segundo os quais a patogénese da histeria ocorria, primeiro, em locais como o útero, a vagina ou os ovários e, posteriormente, se estendia a todo o organismo através de plexos nervosos uterinos. A teoria da irritabilidade reflexa surgiu neste contexto. Esta defendia que a disfunção do sistema nervoso central podia ser provocada por uma excitação excessiva dos nervos periféricos. Por outras palavras, as origens da histeria e das queixas nervosas podiam residir nos hábitos de masturbação feminina. De entre as soluções terapêuticas mais radicais, destacaram-se as injecções intra-uterinas, as cauterizações do clítoris ou mesmo as cirurgias ginecológicas de amputação e extirpação. A compressão dos ovários, com recurso a compressores simples ou complexos, e as ovariectomias foram também tratamentos aconselhados.

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Tratamento “local” por Hidromassagem

Efectuavam-se ainda, directamente sobre a genitália da mulher, os intitulados tratamentos “locais”. Destes, destacam-se a colocação de sanguessugas e ventosas in situ, a electroterapia, a hidromassagem, a utilização de enemas e até o renascido “Tratamento de Galeno”, um verdadeiro eufemismo para estimulação genital via manual – desta feita e sem margem para dúvidas, executado pelo clínico, visando proporcionar alívio dos sintomas da histeria, apesar de não os curar.

Este último foi particularmente prescrito durante a Era Vitoriana (1837-1901), época distintamente moralista durante a qual se promoveu e banalizou o estigma de que os homens possuíam autodomínio e razão para controlar as suas emoções, contrariamente às mulheres, que eram olhadas como criaturas infantis e sexualmente instáveis, destituídas de poder e às margens da economia. Por consequência, esta mudança paradigmática reflectiu-se na relação médico-doente, contaminando-a pelo antagonismo, pela censura moral e fazendo com que ao conceito de histeria se passasse a associar um defeito de carácter ou mesmo de degenerescência constitucional. A crença médica segundo a qual a instabilidade dos sistemas nervoso e reprodutor da mulher a tornava mais frágil à perturbação, comparativamente ao homem, foi utilizada como razão para a excluir das profissões, para lhe negar direitos políticos e sociais, para a manter sob o controlo masculino na família e na sociedade – confinada a papel de esposa e mãe – amputando-lhe, também, o direito ao prazer sexual.

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“Paroxismo Histérico”: o termo que medicalizava e dessexualizava o orgasmo feminino

O “Tratamento de Galeno” faz sentido atendendo ao background moralista e a toda a repressão sexual que lhe esteve subjacente. O que não deixa de parecer paradoxal é o facto de, na época, a masturbação autónoma – quer em mulheres quer em homens – ser considerada pouco saudável e imoral, ao passo que a estimulação genital feita por um clínico era considerada um tratamento médico e portanto necessário, legítimo e aceitável.
Aliás, não só era aceitável como, frequente e ironicamente, as mulheres – muitas das quais casadas – eram trazidas pelos seus esposos aos consultórios, a fim de alcançarem o tão almejado estado de “paroxismo histérico”, um termo que simultaneamente medicaliza e dessexualiza o orgasmo feminino.

Este tratamento acabou por se tornar muito popular. De facto, a afluência chegou a ser tal que os médicos, associando a necessidade de mecanizar, dessexualizar a prática e poupar tempo, encararam com receptividade o aparelho electromecânico congeminado por Joseph Mortimer Granville, e depressa o começaram a utilizar como instrumento terapêutico, não para tratar as dores musculares para o qual este terá sido concebido, mas sim para o “encostar” à região pélvica, de modo a que a massagem genital ocorresse de forma mais fácil, rápida, limpa e impessoal.

Foi assim que, algures na década de 1880, nasceu o primeiro vibrador da História.

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 Fim da primeira parte. Fica atento ao site da Frontal, a continuação deste artigo será publicada brevemente. 

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