A doença e o vírus

ebolsO bê-a-bá do Ébola – uma abordagem sintética e informada sobre o vírus e a doença por si provocada. Os sintomas, os meios de transmissão, a fisiopatologia revistos para que nenhum estudante fique sem saber o que responder quando questionado pela avó sobre a tão falada doença.

O que é o Ébola?

A Doença por vírus Ébola, comummente e daqui em diante referida apenas como Ébola, é uma doença causada pelo vírus homónimo, que pertence à família Filoviridae, género Ebolavirus. Este vírus, RNA-negativo, com simetria helicoidal e invólucro, compreende 5 espécies: Zaire ebolavirus (ou simplesmente Ebolavirus), Sudan ebolavirus, Tai forest (Cote d’Ivoire) ebolavirus, Bundibugyo ebolavirus e Reston ebolavirus (único que, apesar de também infetar humanos, só causa doença nos primatas não humanos).

Qual o seu mecanismo de ação?

O genoma do Ébola codifica uma glicoproteína, cuja forma secretada inibe a ativação dos neutrófilos, prejudicando a resposta imunitária precoce do hospedeiro. A forma transmembranar permite que o vírus invada e se replique nas células dendríticas (com diminuição da resposta imunitária); nos monócitos/macrófagos (com libertação de citocinas pró-inflamatórias, responsáveis pela febre e apoptose dos linfócitos); nas células endoteliais (com aumento da permeabilidade vascular e coagulopatias); e nos hepatócitos (com necrose e disfunção hepática).

Quais as manifestações clínicas?

Após um período de incubação que varia entre 2 e 21 dias, começam a aparecer os primeiros sintomas, que são semelhantes a uma gripe, e o doente torna-se contagioso. À medida que a doença progride, surgem também manifestações gastrointestinais (náuseas, vómitos, dores abdominais, diarreia e disfunção hepática), hematológicas (hemorragias inexplicáveis, linfopénia e neutrofilia) e dermatológicas (rash maculopapular). Cerca de 6 dias após o início dos sintomas, os doentes começam a melhorar ou então evoluem para uma fase caracterizada por fácies inexpressiva e choque séptico, cuja não reversão é fatal. As espécies com maior taxa de mortalidade são o Zaire ebolavirus (> 90% em surtos anteriores) e Sudan ebolavirus (41-65%). Se após 21 dias o suspeito não desenvolver sintomas, exclui-se a infeção, porém nas áreas rurais da África Central até 18% da população tem anticorpos contra este vírus, indicando que ocorrem infeções subclínicas.

Como se transmite?

O Ébola pode ser transmitido de duas formas: através da convivência com animais infetados ou do contágio entre indivíduos doentes (apenas após o início dos sintomas) e pessoas saudáveis. O contacto próximo da superfície corporal não íntegra e das mucosas dos olhos, nariz e boca de uma pessoa saudável com os fluidos corporais (sangue, vómitos, sémen, fezes, etc) de seres vivos infetados é o principal meio de transmissão do vírus.

O consumo de carne de primatas e do morcego-da-fruta (que se presume atualmente reservatório natural do vírus)  é igualmente uma causa importante de doença em humanos. Em epidemias anteriores, iniciaram-se várias cadeias de transmissão quando as pessoas contactaram com primatas infetados, apesar do mesmo não se verificar no atual surto da África Ocidental. Mosquitos não são vetores da doença, existindo ainda evidência limitada de que os cães possam ser infetados, mas não se sabe ao certo se podem desenvolver a doença ou transmiti-la aos humanos.

A transmissão através de gotículas ou aerossóis não está comprovada, pelo que a tosse e espirros de doentes infetados – desde que isentas de sangue – são praticamente inofensivos. Uma causa importante de transmissão entre humanos é o manuseamento de superfícies ou objetos contaminados, nomeadamente a roupa ensanguentada das vítimas. Neste sentido, os grupos de risco são os familiares cuidadores, os profissionais de saúde, as pessoas que preparam os corpos para os funerais (os cadáveres apresentam um grande risco de transmissão) e os caçadores de primatas.

Em média, cada pessoa contagia outras duas até recuperar ou morrer. Os indivíduos curados permanecem contagiosos, bem como os seus fluidos corporais, durante um longo período após a resolução dos sintomas.  Foram descritos casos de transmissão de doença através do sémen até sete semanas depois da reversão do quadro clínico.

Como se diagnostica?

Existem alguns procedimentos laboratoriais capazes de conferir o diagnóstico de doença por Ébola. Em Portugal, a Direção-Geral de Saúde recomenda o estudo de RT-PCR, realizado 3 a 10 dias após o início dos sintomas.


Sobrevivência e terapêutica

Porque é que ainda não há uma vacina ou tratamento?

Existem várias investigações a decorrer com o objetivo de encontrar uma cura para o Ébola. Um exemplo é a liderada há 30 anos pelo Dr. Tom Geisbert, professor de Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Texas e investigador no Laboratório Nacional de Galveston, da mesma Faculdade, que concentra esforços na criação de armas capazes de prevenir ou tratar o Ébola. No entanto, este manteve-se um alvo pouco prioritário para programas de financiamento privados ou governamentais e pouco estimulante para os grandes laboratórios e farmacêuticas por ser um vírus difícil de transmitir caso sejam acauteladas as medidas básicas de prevenção e proteção e por ter causado um número de mortes baixo até aos presentes surtos (menos de 1600 mortes desde a sua descoberta) e sempre longe dos países desenvolvidos.

O que está a ser feito para o desenvolvimento da vacina?

Há 6 anos, o Dr. Geisbert desenvolveu uma vacina ainda não testada em humanos que permitiu a sobrevivência de macacos infetados com vírus do Ébola e lhes conferiu proteção total à infeção com uma única dose. Esta vacina resultou da aplicação de forquilhas de três dentes do invólucro do vírus do Ébola no invólucro do vírus da estomatite vesicular recombinado (rVSV), que pertence à família Rhabdoviridae e provoca um quadro gripal, tornando os últimos morfologicamente idênticos aos primeiros e, portanto, capazes de desencadear uma resposta imunitária semelhante. Também no Hospital Universitário de Genebra se está neste momento a testar, sob a alçada da OMS, uma vacina baseada no mesmo vírus, a rVSV-ZEBOV. No findo mês de outubro foi aprovado pela Swissmedic (Autoridade Reguladora para Produtos Terapêuticos Suíça) um ensaio experimental da Universidade de Lausanne que pretende estipular a capacidade de indução da resposta imunitária, a segurança farmacológica e a dose terapêutica ideal de uma vacina envolvendo um adenovírus geneticamente modificado, a “ChAd-Ebola” ou Chimpanzee-Adenovirus chAD3-ZEBOV. Este estudo integra os ensaios do Mali, Reino Unido e EUA.

O que está a ser feito para o desenvolvimento da terapêutica?

Atualmente está em estudo, no Laboratório Nacional de Galveston, uma terapêutica genética que usa genes isolados para interferir com a replicação do vírus no interior da célula hospedeira, a qual foi bem-sucedida em animais. Outra empresa americana, a Mapp Biopharmaceutical, desenvolveu um tratamento à base de anticorpos anti-Ébola de ratos infetados, que foi administrado aos dois doentes americanos que sobreviveram, embora não se possa concluir se isso foi devido à terapêutica inovadora ou ao tratamento de suporte.

A que armas podemos recorrer entretanto?

Enquanto não há terapêutica disponível para a febre hemorrágica causada pelo Ébola, as equipas médicas têm tratado os sintomas através de rehidratação oral/intravenosa, manutenção do status de oxigénio, correção das alterações metabólicas e tratamento de infeções concomitantes (como as associadas às perturbações gastrointestinais). Sempre que possível, têm recorrido a sangue total colhido de doentes em fase de convalescença e com boa resposta às medidas de suporte instituídas. Não passa de um tratamento empírico em que o doente é sobrecarregado com um soro rico em anticorpos de ex-doentes cujo sistema imunitário foi capaz de vencer a batalha contra o vírus. Pelos resultados promissores que se têm observado, embora num pequeno número de casos, está já na mira de várias equipas de investigação que vêem nele uma janela de oportunidade para uma nova modalidade terapêutica.

Porque é que, perante as mesmas circunstâncias, uns morrem e outros sobrevivem?

A vitória perante o Ébola parece, para já, assentar em dois pilares: um bom tratamento de suporte e uma resposta imunitária competente por parte do hospedeiro. Em relação a esta última, tem-se verificado que os indivíduos infetados que permanecem assintomáticos são os que desenvolvem uma resposta imunitária precoce (4-6 dias após a infeção) e vigorosa (com produção de IL-1β, IL-6 e TNF), enquanto nos casos fatais não se detetam citocinas pró-inflamatórias mesmo 2-3 dias após o início dos sintomas.

Que repercussões podem sofrer os sobreviventes?

Sobreviver à doença por vírus Ébola confere ao ser humano proteção contra a espécie do vírus em questão durante pelo menos 10 anos. Não é, todavia, um feito isento de consequências desagradáveis, pois é frequente os sobreviventes terem queixas de cefaleias, fadiga crónica, mialgias, artralgias assimétricas migratórias, acufenos/perda de audição e alterações/perda de visão. Durante alguns dias ainda serão capazes de transmitir o vírus já que este permanece 101 dias no sémen, 33 nos fluidos vaginais e 15 no leite materno, desde o início dos sintomas. Outra consequência, mais silenciosa para a comunidade médica, é a estigmatização dos ex-doentes pela população, que receia o contágio mesmo quando tal já não é possível, o sentimento de culpa e solidão pela transmissão do vírus aos seus familiares e a perda de bens essenciais, como as roupas e utensílios queimados com o intuito de destruir o vírus.


O ÉBOLA EXPLICADO AOS ESTUDANTES DE MEDICINA

O mundo contra o Ébola

Nos últimos meses, o Ébola tem dominado os escaparates noticiosos e a mente da maioria dos responsáveis políticos da área da saúde. Num apelo inaudito, a Organização Mundial da Saúde instou os países de todo o globo a unirem-se na contenção da epidemia, prevendo cenários catastróficos caso a acção não fosse rápida e eficaz – e com muitos milhões pelo meio naturalmente! Dias depois do Congo ter-se anunciado como uma nação livre de Ébola, esta é a altura ideal para compreender o que foi feito, o que deve ser feito e o que ficou por fazer para limitar os efeitos desta catástrofe epidemiológica.

Portugal deve ter medo do Ébola?

Quando foi anunciado um caso confirmado de Ébola na vizinha Espanha, muitos foram os que se arrepiaram com a possibilidade de uma epidemia em Portugal. O nível de preocupação subiu ainda mais no momento em que um doente suspeito foi internado no Hospital de São João, no Porto. Desde então, os ventos de tormenta amainaram – tendo o Ébola sido substituído pela Legionella no topo das preocupações epidemiológicas na mente dos portugueses – mas a pergunta mantém-se no ar: devemos ter medo do Ébola?

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O Luís Afonso nasceu em Coimbra, mas sempre sonhou ser de Mortágua. É estudante do 6º ano de Medicina, mas gostava era de ter um bar de praia em Copacabana e um canudo de Línguas Orientais na algibeira. Se o virem num concerto de Coldplay com ar aluado, provavelmente enganou-se no caminho ao sair de casa para comprar bolachas com chocolate, situação que, aliás, lhe acontece frequentemente. Quase ganhou o torneio de Trivial Pursuit da Queima das Fitas, só que errou a pergunta «Quantos dias sobrevivem os Glóbulos Vermelhos?». A partir daí a sua vida foi sempre a descer.

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