A Dolorosa História da Dor

Actualmente, de acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é definida como uma experiência emocional e sensorial desagradável associada a dano tecidual ou potencial, ou descrita nos termos de tal dano. No entanto, nem sempre se pensou que a dor tivesse uma base física ou fisiológica. O advento do real conhecimento anatómico, fisiológico e bioquímico, ocorrido durante os séculos XIX e XX, trouxe consigo novas teorias sobre a etiologia da dor, permitindo analgésicos modernos e novos procedimentos invasivos para tratamento e controlo da dor. Contudo, nem sempre se pensou que a dor pudesse ser uma manifestação fisiológica, e, por isso, nem sempre se pensou que esta fosse passível de ser controlada ou até tratada ao ponto de desaparecer.

“A Surgeon Applying Medicine to a Wound in the Shoulder of a Man in Pain”, Gerrit Lundens (1622–after 1683)

Hipócrates (século 5 A. C.) é o primeiro médico que “racionaliza” a dor e lhe reconhece o seu potencial diagnóstico e prognóstico, considerando-a, desta forma, como uma manifestação clínica de extrema importância no processo de doença, e também uma ferramenta major para determinação da severidade e localização desta. Esta perspetiva alterou-se quando, em 1664, o filósofo francês René Descartes, no seu “Traité de l’homme”, propôs que o corpo se assemelhava a uma máquina, e que a dor seria uma perturbação que passa ao longo de fibras nervosas desde a periferia ao cérebro. Esta teoria mudou a ideia que se tinha até então de que a perceção de dor era uma experiência espiritual e mística para uma sensação que é eminentemente física, ou mecânica. Ocorreu, assim, um ponto de viragem na Medicina, com a nova percepção de que pode ser procurada uma cura para a dor através da pesquisa e localização das fibras responsáveis pela sensação de dor no organismo. Deus e a respectiva visão religiosa da sensação de dor perderam poder na equação. O “centro da dor” mudou então do coração para o cérebro.

O vínculo entre a dor e as questões religiosas foi particularmente vincado durante a Idade Média, mas, ironicamente, a definição religiosa da dor é ainda hoje abraçada por alguns doentes, que a consideram “necessária” no processo de cura. Isto acarreta alguns desafios quando, devido à crença nesta definição da dor, o doente não colabora de todo com a terapêutica analgésica. Contrariamente, o uso da religião ou meditação como método de coping adaptativo tem vindo a ser estudado e mostrar modelação da dor, pelo que pode representar uma mais valia para o doente, tal como verificado por Dedeli e Kaptan, no seu artigo Spirituality and Religion in Pain and Pain Management, publicado em 2013.

Apesar de existirem descrições sobre as diferentes teorias da dor ao longo dos tempos, sabe-se surpreendentemente pouco sobre como era experienciada no passado, e o alívio da dor tem sido mais investigado por historiadores do que a sua expressão. Talvez esta reserva se deva à subjetividade na forma como a dor é experienciada por cada indivíduo. No entanto, estas experiências podem ser observadas na subjetividade de diversas formas artísticas, dado que a dor parece permanecer desde os primórdios da arte até ao presente uma fonte rica de inspiração. De facto, a eloquência das pessoas quando tentam descrever a sua dor está descrita na literatura por Virginia Woolf, no seu ensaio “On Being Ill”, descrevendo que uma pessoa em dor é forçada a inventar as próprias palavras: “…and taking his pain in one hand, and a lump of pure sound in other, so to crush them together that a brand new word in the end drops out”.

No que toca à pintura, o exemplo clássico da representação da dor vem da artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Nos seus auto-retratos, Kahlo retrata as emoções relacionadas com o acidente, a dor, as hospitalizações e o medo do isolamento. Uma das suas obras mais icónicas, La Columna Rota (1944), reflete a dor e as lesões a que foi condenada pelo acidente de autocarro que lhe perfurou a pelve, através das suas lágrimas, da construção de metal na sua coluna e os pregos a serem espetados por todo o seu corpo, expressando uma dor aguda e de natureza difusa. A artista pinta, assim, as suas obras de forma a que o observador consiga entender a sua vida e sofrimento.

“La Columna Rota”, Frida Kahlo, 1944

A forma como as pessoas expressam e percepcionam a sua dor é altamente influenciada pelas teorias da dor, pela sua crença religiosa, pela cultura, e ainda pela personalidade do indivíduo, ou seja, a mesma dor, com a mesma origem, tem interpretações diferentes baseadas em todas estas particularidades e é, por isso, um tema recorrente e rico nas diversas formas de arte.

Na coleção hipocrática são referidos variados tratamentos não farmacológicos para a dor, como por exemplo o calor, o frio, a dieta, a cauterização, entre outros, chegando algumas a ser mesmo bizarras, como a abordagem da flebotomia para a cura da cefaleia. Adicionalmente, os médicos hipocráticos usavam ainda diversas propriedades de substâncias químicas na cura da dor, a maioria com propriedades soporíferas, narcóticas ou venenosas, como é o caso da mandrágora e da papoila.

O ópio parece ter sido a primeira substância química a ser amplamente utilizada como analgésico de base empírica. As evidências mais antigas do uso de substâncias para o controlo da dor referem-se ao uso de “planta da felicidade”, descrito em tábuas de argila suméricas de 5000 A.C., que cultivavam o ópio através das sementes de papoila de forma a trazer felicidade e reduzir a dor. O uso de ópio parece ter chegado ainda à antiga civilização Egípcia, dado que foram encontrados resíduos desta substância em túmulos desta civilização, e é ainda referido na sua mitologia, estando descrito no Papiro de Ebers (1552 A.C.) como a deusa Isis sedava o seu filho Horus com ópio quando este era criança. Neste mesmo documento, um dos tratados médicos mais antigos se que existe conhecimento, é descrito por Theophrastus e Dioscorides como tendo propriedades analgésicas e indutoras do sono.

O ópio foi então usado durante milhares de anos para fins recreacionais e medicinais, e a sua exportação deu origem às Duas Guerras do Ópio entre a Inglaterra e a China. O seu principal princípio ativo é a morfina (cujo nome advém de Morpheus, deus grego dos sonhos). A morfina pura só foi passível de ser extraída no século XIX, tendo sido amplamente utilizada na Segunda Guerra Mundial, com um grande número de soldados dependentes como pagamento de tão cara utilização.

No século XVI começou a ser utilizado o láudano, medicamento originalmente a base de vinho branco, açafrão, cravo, canela e ópio desenvolvido pela primeira vez pelo alquimista Paracelso. Esta bebida foi amplamente utilizada na Inglaterra Vitoriana como tratamento da dor, sendo particularmente utilizada pelo sexo feminino no controlo da dismenorreia, e ainda como supressor da tosse. A codeína, outro composto do ópio, aparece isolada na História em 1830 pelo francês Jean-Pierre Robiquet com o propósito de substituir o ópio na Medicina. Já em 1874 surge a heroína, como uma tentativa de criar uma alternativa que causasse menos dependência que acabou por se revelar particularmente desastrosa. A metadona aparece mais tarde, em 1937, sintetizada na Alemanha por Max Bockmühl e Gustav Ehrhart, que procuravam uma alternativa mais simples de usar na cirurgia e com menor potencial de dependência. Escusado será dizer que de bons intentos está o Inferno cheio…

Na História da Medicina Moderna fala-se na “conquista da dor” e na “vitória sobre a dor”. No entanto, em pleno século XXI ainda não se descobriu a cura milagrosa que todos os doentes em sofrimento gostariam de ter. E o futuro? Esse residirá certamente na investigação de novas terapias, que podem ser tanto farmacológicas como de outro tipo. A Realidade Virtual pode ser uma dessas estratégias: começou por ser aplicada para atenuar a perceção de dor durante procedimentos médicos dolorosos. Esta tecnologia permite ao utilizador sentir-se como se estivesse presente na experiência virtual e a sua imersão desloca a atenção da dor (Teoria da Distração ou do Portão, formulada por Melzack e Wall). Avanços em neuroimagiologia mostraram que a distração da VR modula o processamento da dor em áreas do SNC conhecidas como a matriz da dor (córtex cingulado anterior, ínsula, tálamo e córtex somato-sensorial). No entanto, a falta de conhecimento sobre o mecanismo de ação exato limita o seu uso no controlo da dor crónica, e, apesar dos avanços que têm sido conseguidos, há ainda um longo caminho a percorrer até podermos afirmar que saímos vitoriosos sobre a dor.

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