Esse órgão é teu, ou é impressão minha?

Quando, por volta do ano de 1455, Johannes Gutenberg tomou nas mãos a sua “Bíblia Latina” e contemplou a primeira obra fruto da técnica de impressão por si desenvolvida, estaria longe de imaginar que, meia dúzia de séculos volvidos, fosse possível imprimir objectos nos três planos do espaço. Em pleno século XXI, assistimos, incrédulos, ao advento da impressão tridimensional de tecidos orgânicos e somos assombrados pelas infinitas possibilidades que aqui encontram um precedente.

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A receita para o sucesso

A evolução da impressão a duas dimensões para a impressão de objectos tridimensionais chegou ao campo da Medicina e promete ampliar os horizontes das respostas que os médicos podem dar a problemas como a substituição total ou parcial de tecidos perdidos (por trauma, queimadura ou patologia), ou a escassez de órgãos para transplante, que motiva longas (nalguns casos demasiado longas…) listas de espera. Até ao momento já foi possível imprimir tecido hepático, ósseo, muscular e cartilagíneo, vasos sanguíneos, pequenas vias aéreas, entre outros, mimetizando com grande minúcia a anatomia dos mesmos.

A impressora a três dimensões (3D) é composta por dois braços robóticos que se movem com alta precisão para que a geometria tecidular, quer micro quer macroscópica, seja a desejada. Um dos braços carrega uma “bio-tinta” com células humanas saudáveis, provenientes do doente e correspondentes ao tecido a replicar, enquanto o outro transporta um hidrogel neutro com funções de matriz de sustentação dos tecidos, que são construídos verticalmente para adquirirem as três dimensões na forma pretendida. O hidrogel também pode ser utilizado para preenchimento, o que permite criar canais que simulam vasos sanguíneos ou espaços vazios dentro dos tecidos, reproduzindo, assim, características reais. Ambos os componentes são depositados, camada a camada, segundo um molde digital previamente obtido através de técnicas de imagem, como a tomografia computorizada a 3D. O produto final é incubado para que as células cresçam e iniciem a síntese das moléculas que lhes são essenciais para formar o tecido em questão. Tomem-se como exemplo as fotografias abaixo.

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Imagens adaptadas de: Hockaday LA, et al. Rapid 3D printing of anatomically accurate and mechanically heterogeneous aortic valve hydrogel scaffolds. NIH Public Access – Author Manuscript. Biofabrication. 2012 September; 4(3): 035005.

A primeira fotografia corresponde a uma válvula aórtica porcina que foi sujeita a um scan por micro-tomografia computorizada para servir como molde à impressão a 3D de válvulas artificiais. Na segunda apresentam-se próteses valvulares impressas a diferentes escalas. De notar a semelhança anatómica em relação à válvula aórtica original.

Os tecidos elaborados por impressão a 3D possuem actividade celular organizada e, como tal, respondem a estímulos. Isto torna possível induzir-lhes doenças para compreender o modo como evoluem in vivo e, ainda, estudar em tempo real a eficácia de uma dada terapêutica, a sua viabilidade e eventuais efeitos adversos para os tecidos humanos.

Até ao momento já foi possível imprimir tecido hepático, ósseo, muscular e cartilagíneo (…)

A um passo de uma maior acuidade sensorial?

ouvido biónicoO grupo de investigação liderado por Michael McAlpine, da Universidade de Princeton, acredita na capacidade de criar tecidos e órgãos artificiais passíveis de dotar os receptores de capacidades supra-humanas. Esta crença fundamenta-se na impressão, num dos laboratórios desta Universidade, de um “ouvido biónico” (na imagem), capaz de detectar e transmitir frequências que estão para lá do limiar das ondas sonoras que o ser humano consegue alcançar, nomeadamente sinais de rádio. Este “ouvido biónico” foi impresso com “tintas” à base de células e cartilagem cultivadas artificialmente possuindo, até, a sua própria cóclea.

Tal realidade apenas é possível pelo facto de a impressão a 3D permitir compatibilizar materiais com propriedades físicas distintas que, por norma, não funcionam bem em conjunto: os tecidos biológicos (suaves e flexíveis) e elementos electrónicos (rígidos e facilmente quebráveis). Desta feita, estas duas matérias-primas podem ser fabricadas em simultâneo num formato tridimensional. No cume das possibilidades em aberto está a concepção de órgãos dos sentidos com sensibilidade sensorial superior à convencional, o aperfeiçoamento funcional de certos órgãos e a integração de aparelhos que possam monitorizar a saúde dos seus portadores. McAlpine especula até que, no futuro, venha a ser possível dotar os humanos de um sexto-sentido: a percepção de ondas electromagnéticas que não a luz visível.

State-of-the-art

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A imagem mostra a impressão a 3D de um rim artificial, tal como é levada a cabo nos laboratórios do WFIRM.

Passou cerca de uma década desde que Luke Massella, então com dez anos de idade, recebeu uma bexiga concebida laboratorialmente a partir de células suas, que lhe abriu portas para uma vida livre da hemodiálise, a que estaria, à partida, condenado (até à eventualidade de encontrar um dador compatível). O procedimento esteve a cargo do Dr. Anthony Atala, cirurgião, director e investigador do Wake Forest Institute for Regenerative Medicine (WFIRM), que se dedica à impressão a 3D para desenvolver tecidos a partir daquilo a que designa de “biomateriais inteligentes”, que possam ser usados como próteses ou como matrizes para a regeneração guiada de tecidos lesados in vivo. Actualmente, o cerne da sua actividade passa pelo estudo experimental da utilização de células vivas para imprimir órgãos sólidos viáveis e funcionais, como é o caso do rim ilustrado na figura.

Outro grande objectivo da equipa do Dr. Atala é desenvolver um equipamento que permita a impressão directa no doente: na presença de uma ferida é utilizado um scanner que começa por ler e mapear os contornos e o relevo da mesma; de seguida entra em acção a impressora 3D que deposita no doente as camadas necessárias à reparação da lesão, como esquematiza a figura. As camadas são aplicadas sob a forma de um gel contendo várias amostras de células do doente que, uma vez introduzidas na ferida, se dispõem de acordo com os tecidos de origem, permitindo a sua total cicatrização.

Impressão in vivo 1

Por permitir a concepção de tecidos vivos, capazes de crescer, remodelar-se, integrar o organismo hospedeiro e desempenhar uma função biológica pretendida, a aliança entre a engenharia de tecidos e as emergentes técnicas de impressão tridimensional coloca ao dispor dos médicos uma infinidade de aplicações possíveis. Além disso, possui ainda o potencial de contornar as correntes limitações impostas pela rejeição, quer de próteses fabricadas à base de tecidos não-vivos, quer de aloenxertos (nas situações em que se encontra um dador compatível em tempo útil), por conceber órgãos de novo a partir de células do hospedeiro.

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