Estudar um (novo) Harrison… A Contra-Relógio

A meio ano do exame mais decisivo das suas vidas, os estudantes de Medicina do 6º ano vêm, sem aviso prévio, o seu estudo de meses a ir com as águas de Abril. Pousaram-se os lápis e as canetas de múltiplas cores e, ao invés de se prosseguir com um estudo insano a uma velocidade atroz, entrou-se num agonizante compasso de espera. À espera de um livro que esgotou.

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No passado dia 11 de Abril, o Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI), por intermédio de um comunicado na sua página de Facebook e no seu website, declarou que, através de deliberação do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos (CNEOM), a bibliografia da próxima Prova Nacional de Seriação será a 19ª Edição do Harrison’s Principles of Internal Medicine. Este comunicado, embora ainda não confirmado oficialmente pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), está a gerar por todo o país verdadeiros gritos de revolta por parte dos alunos do 6º ano, que se verão forçados a uma seriação muito menos pacífica do que o desejado.

Porquê mudar a edição? Segundo o CNEOM, a decisão de mudar a edição da bibliografia recomendada para a Prova Nacional de Seriação prende-se com uma simples exigência do Código Deontológico:

Artigo 9.º Actualização e preparação científica
O médico deve cuidar da permanente actualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica (leges artis).

Esta aplicação tão literal de uma interpretação deste artigo acarreta consequências gravosas para os actuais estudantes de Medicina que se encontram agora no 6º ano. O estudo para a Prova Nacional de Seriação começa, normalmente, cerca de um ano antes, uma vez que este exame prioriza a capacidade de memorização de factos, ao invés de um raciocínio clínico, altamente valorizado na fase final do curso de Medicina. Desta forma, é necessário um período de tempo considerável para que a consolidação dos conteúdos seja conseguida. Perante este facto, uma alteração tão tardia da bibliografia recomendada é, usando a vulgar expressão, um tiro no pé.

De tal forma é grande a sua importância para o futuro destes estudantes que a RTP1 entrevistou alguns estudantes de medicina, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina e o Presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos sobre a mudança bibliografia que servirá de base à Prova Nacional de Seriação de 2015. A indignação é unânime: trata-se de uma mudança que transtorna gravemente um estudo iniciado há vários meses. O CNEOM, representado pelo Presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, embora admita e confirme que a nova edição do Harrison não se encontre disponível em Portugal ou em português, reitera que

(…) a decisão que a Ordem dos Médicos tomou relativamente à última edição era a única decisão que a Ordem dos Médicos podia tomar.

Fica por saber, entretanto, a opinião do Júri de Prova, responsável pela elaboração da Prova e pelos assuntos com ela relacionados, bem como a confirmação oficial da parte da ACSS.

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Supondo que os estudantes de Medicina do 6º ano conseguem, em tempo útil, memorizar novos dados e percentagens em tempo recorde, surge outra questão: como ter acesso à bibliografia?

Actualmente, em Portugal, encontra-se à venda a 18ª Edição do , que, traduzida para português, possui um preço que vai além dos 250 €. A 19ª Edição do Harrison’s Principles of Internal Medicine, ainda sem tradução portuguesa, encontra-se disponível para encomenda em sites como a Amazon a partir de Maio. No site oficial deste manual, o Harrison’s não é passível de ser encomendado na Europa, encontrando-se esgotado. Saliente-se ainda que a aquisição desta nova edição representa um custo adicional de 200 €, que muitos estudantes não terão capacidade de despender e que, como é óbvio, não estará disponível nas bibliotecas das Faculdades de Medicina do país.

É questionável ainda a exigência de estudar, em tempo já diminuto, uma bibliografia escrita em inglês. Apesar de desejável e fortemente preconizado, o Ensino Superior português está longe de ser poliglota. Como tal, muito embora se ambicione a utilização e domínio da língua inglesa no curso de Medicina, as unidades curriculares dos actuais currículos médicos não possuem essa obrigatoriedade. Assim, além de sofrerem uma seriação com base na capacidade de memorização (ao invés de um raciocínio clínico, tão preconizado durante o curso), os estudantes serão também seriados consoante a sua rapidez de leitura e interpretação do inglês.

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Com duração de 150 minutos, a tão temível Prova Nacional de Seriação é constituída por 100 questões, em que cada uma destas, se respondida correctamente, vale 1 valor; se, pelo contrário, for errada, a cotação dessa questão é de 0 valores. Para cada questão existem 5 opções, em que apenas uma delas se encontra correcta. Os temas desta Prova, imutáveis desde 1972, consistem no seguinte:

  • Part 7, Section 2: Hematopoietic Disorders
  • Part 10. Disorders of the Cardiovascular System
  • Part 11. Disorders of the Respiratory System
  • Part 13. Disorders of the Kidney and Urinary Tract
  • Part 14. Disorders of the Gastrointestinal System

O estudo pesa, assim, a módica quantia de cerca de 1189 páginas.

Sobre cada tema incidem 20 questões, devendo cada uma delas “situar-se num nível de conhecimento que sobre estas matérias deve possuir um médico não especialista”. A selecção de conteúdos tende a priveligiar o número de capítulos e páginas envolvidas, em detrimento da pertinência dos temas. Este manual de Medicina Interna posui um especial enfoque nos mecanismos fisiopatológicos da doença. A matéria normalmente seleccionada inclui (e induz à memorização de) extensas listas de dados e detalhes de doenças raras que não fazem parte da prática clínica de rotina sendo, portanto, irrelevantes para a actividade profissional futura do candidato. Por outro lado, além da excelente oportunidade desperdiçada para consolidação de conteúdos no final da formação de um jovem médico, note-se que a prova ignora patologias com elevadíssima prevalência na população portuguesa como a diabetes mellitus, as doenças oncológicas, as urgências cirúrgicas, a patologia psiquiátrica e até mesmo as mais banais infecções.

in Revista FRONTAL, Harry…son? Quem é esse?


O que há a fazer agora? Infelizmente, para os estudantes do 6º ano, não é possível esperar. A Associação Nacional de Estudantes de Medicina entregou ontem, dia 13 de Abril, um requerimento oficial ao Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos para que a bibliografia se mantenha a 18ª Edição do Harrison’s Principles of Internal Medicine. Esteve igualmente em circulação uma petição nacional que apelava a que esta mudança fosse revogada. No entanto, até novas notícias, os livros não se pousam e a esperança não morre. Seja em que edição for.

ATUALIZAÇÃO 23 DE MAIO DE 2015

Através de um comunicado da ACSS, sabe-se agora que, para efeitos de ingresso no internato médico em 2016,  a referência bibliográfica a considerar será a 18.ª edição do Harrison’s Principles of Internal Medicine.

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Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

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