Evento de Lançamento nº 48: Mobilidade Académica e Emigração Médica

“Entre ter uma formação sem qualidade e não a ter,

eu prefiro que não a tenham!”

 “Sair ou ficar no Serviço Nacional de Saúde (SNS), eis a questão”. Com a deterioração dos sistemas de saúde em Portugal, o descontentamento está em riste e a emigração tornou-se parte do plano de muitos médicos em formação. Só em 2015 emigraram mais de 400 médicos portugueses e cerca de metade dos internos admite fazê-lo depois do internato. Estaremos na eminência de uma vaga de emigração médica? Quais os principais motivos que subjazem a esta insatisfação?

Ocorrido no dia 23 de maio de 2018, o Evento de Lançamento da edição nº 48 da Frontal reuniu, numa mesa-redonda, um diversificado painel de oradores para discutir a temática “A Mobilidade Académica e a Emigração Médica”, convocando as perspetivas médica, sociológica e jornalística. Sobe a bordo desta aventura pilotada pela Frontal e dá asas ao teu conhecimento!

auditorio

O início do evento foi oficializado pela atual diretora da revista Frontal, Maria Moreno. No seu discurso de abertura, deixou patente que “pertencemos a uma geração que historicamente vive numa época em que as fronteiras quase não existem”. Contudo, “se em algumas áreas profissionais a ida para o estrangeiro já é encarada como algo banal, no que respeita à Medicina o fenómeno está a ganhar expressão nestes últimos anos”, tendo sido esta a problemática eleita para a série de entrevistas ‘Volta ao mundo… à boleia de 7 médicos’ (que ocupa parte da secção principal da revista nº 48) e para o presente evento. Afinal, remata,

desde sempre que a ‘Frontal’ procura estimular os seus leitores a refletirem de forma crítica e informada sobre a realidade em que a teoria e a prática da medicina se desenvolvem. Pretendemos contribuir para esse espírito inconformado de procurar saber sempre mais, de querer fazer sempre melhor”.

O moderador Miguel Múrias Mauritti, diretor do jornal especializado SaúdeOnline e responsável pela secção “Saúde” do Jornal Económico, lançou o mote para a discussão: “Sair ou ficar no SNS, eis a questão”. “As perspetivas são mais sombrias entre os mais novos”, alega. De facto, “o descontentamento atinge níveis de tal forma elevados que metade dos médicos internos admite emigrar depois do internato”. Qualquer que seja a faixa etária, “é transversal a insatisfação com o SNS por vários motivos, com o excessivo número de horas de trabalho à cabeça”. Adianta ainda que “o SNS não tem sido competitivo para fixar os seus médicos”, tendo, só em 2015, emigrado mais de 400 médicos portugueses, o número mais elevado de sempre registado entre nós.

Num contexto de progressiva incerteza e descontentamento, a pergunta «Emigrar, porque não?» “surge com insuspeita pertinência”… Mas quais os verdadeiros motivos da insatisfação da classe médica para com SNS? Quais os principais países de destino de quem procura exercer no estrangeiro e porquê? O que dizer sobre a emigração durante o internato? Que incentivos vigoram para o retorno a Portugal? Estas foram as questões enfocadas pelos oradores e que serviram de linha orientadora do debate que aqui sumarizamos.

moderador

A primeira intervenção da tarde ficou a cargo do Dr. David Marçal, coordenador da rede Global Portuguese Scientists (GPS), que começou por nos mostrar a distribuição dos cientistas portugueses pelo mappa mundie nos falou da emigração ligada à investigação científica. Numa época em que muitos médicos se esforçam por coadunar a carreira clínica com a vertente de investigação, este projeto é, segundo o próprio, “uma forma de obter conhecimento sobre a diáspora científica portuguesa” e, acima de tudo, “um ponto de encontro entre a diáspora e a sociedade portuguesa”.

Apresentou-nos depois um estudo levado a cabo em 2017 pela Universidade de Aveiro – sede do projeto – envolvendo um grupo de 1 679 cientistas, do qual se apurou que a área das Ciências Médicas é a segunda mais representada (perfazendo 30% dos registos da plataforma GPS).

A duração média de estadia no estrangeiro é de 38 meses e a média de idades dos investigadores ronda os 36 anos, sendo a classe académica com maior representação além-fronteiras a de “investigador graduado”, seguida de “aluno de doutoramento”.

Constatou-se ainda que predominam, entre os emigrados nos EUA, os investigadores do sexo masculino, enquanto no Reino Unido o sexo feminino é o representado por excelência.

Conclui reiterando que “há várias razões para a mobilidade científica”:por um lado“é bom para a Ciência porque permite a troca de experiências profissionais”, mas por outro “retrata a falta de oportunidades – ou melhor, de oportunidades com valor – em Portugal”. E este é, defende, “um dos principais motivos para a emigração qualificada” a nível nacional.

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Tivemos depois oportunidade de ouvir a Profª Dra. Marianela Ferreira, investigadora do Instituto de Sociologia e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. É autora do estudo “A carreira médica e os fatores determinantes da saída do SNS”.

Atualmente coordena um estudo sobre os fatores determinantes do abandono do SNS por parte dos médicos, considerando três cenários de saída: reforma, opção pelo setor privado e emigração.

Apesar da formação em Sociologia, “há 30 anos que, de forma mais direta ou indireta, estou ligada à área da Saúde”, começa por afirmar. Prossegue e confessa-nos que o tema sobre o qual versa o seu estudo é, para além de um problema bastante atual da nossa sociedade, “uma grande preocupação pessoal enquanto investigadora”, tendo-se pautado pelo objetivo major de “informar de forma mais próxima, rigorosa e científica os decisores políticos” nesta área. Com efeito, o mesmo arrancou com o aval do atual bastonário Miguel Guimarães, então presidente da Secção Regional Norte da Ordem dos Médicos.

Apresentou-nos de seguida as linhas gerais deste trabalho, explicitando os três cenários de saída SNS que foram considerados: a emigração, a reforma (antecipada ou não) e a transição para o setor privado. Neste enquadramento, foram aplicados dois questionários online ao nível da Secção Regional Norte da Ordem dos Médicos: numa primeira fase destinados a especialistas em exercício no SNS e, numa segunda fase, a internos em formação e médicos que, por algum dos três motivos supracitados, tenham abandonado o serviço público de saúde.

Como conclusões gerais, sobressai a de que “a opção pela emigração não tinha grande expressão entre os médicos que já tinham abandonado o SNS” – na verdade, a maioria saiu por reforma. Contudo, o mesmo já não se verificou entre os especialistas ainda em exercício, sobretudo até aos 45 anos de idade, muitos perspetivando uma eventual saída por essa via.

Já entre os internos, 42,9% não sabe se ficará no SNS após terminar o internato de especialidade, 47,6% pondera mesmo sair e apenas 10% afirma reiteradamente permanecer em Portugal.

Quanto aos fatores de satisfação/insatisfação, “o único aspeto positivo valorizado em todos os grupos questionados foi o relacionamento com os colegas”. Entre os motivos de descontentamento, listam-se a parca remuneração, a falta de progressão na carreira, o excessivo número de horas de trabalho e a falta de tempo livre para a família ou atividades de lazer. Mas vamos a números: entre os profissionais em exercício no SNS, 60,5% dizem-se insatisfeitos com a carga horária; 46,6% consideram que os descansos compensatórios exigidos por lei não são aplicados; 50,7% revelam insatisfação com a sua participação na tomada de decisões; 76,7% não concordam com a remuneração salarial e 63,3% estão insatisfeitos com as perspetivas de progressão da carreira médica.

No que concerne ao terceiro ponto inicialmente definido como via de abandono do SNS – o trabalho no setor privado –, diz que em Portugal “não há competitividade entre o serviço público e o privado” e,“apesar da maioria dos médicos trabalhar no SNS, grande parte acumula funções no privado”. Por estas razões, considera que há um “casamento divorciado entre o SNS e o sistema privado”.

Visivelmente preocupada, conclui partilhando com a plateia a conclusão que mais a marcou a título pessoal: “os médicos portugueses gostam e querem continuar a trabalhar em Portugal, mas lamentam não ter condições para o fazer”. “É inevitável, urgente e indispensável que se tomem medidas para melhorar as condições de exercício da Medicina no SNS”, o qual considera “hospitalizado em fase terminal”.

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O debate prosseguiu com a intervenção da Dra. Catarina Perry da Câmara, interna do 4º ano de Neurorradiologia do CHLC e presidente do Conselho Nacional do Médico Interno. Assumindo uma postura claramente otimista, muda o rumo da conversa e confessa-se “muito feliz com a especialidade que escolhi e com o meu trabalho”, defendendo que

“ainda há muita gente feliz nos hospitais portugueses!”.

Avança de seguida com uma perspetiva do panorama europeu em números: Portugal tem uma densidade de médicos – tanto em áreas rurais como urbanas – superior à da média da OCDE. “Será esta mais uma razão para emigrar?”, questiona. Percebemos ainda que os médicos portugueses que emigram encontram-se maioritariamente na faixa etária compreendida entre os 25 e os 34 anos. O principal país de destino de emigração é o Reino Unido, enquanto os nossos imigrantes provêm sobretudo de Espanha: “há muitos portugueses a ir tirar o curso lá que depois regressam, não nos podemos esquecer”.

Para ultimar, alega que “estes circuitos não são tão simples quanto aparentam: há muitas razões para sair, mas também as há para ficar”, recordando que “os internatos em Portugal são dos melhores do mundo”, com programas curriculares muito organizados e bem definidos sobre os quais assenta uma formação de excelência meritoriamente reconhecida além-fronteiras. “Não é obrigatório ir para fora, é uma escolha pessoal” mas, independentementedo país, “é muito importante a humanização dos cuidados de saúde”, remata.

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O último elemento da mesa a intervir foi o Prof. Dr. Jorge Penedo, assistente graduado de Cirurgia Geral no CHLC e vice-presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Este orador começa por sondar a plateia questionando “Quantos de vocês são felizes?”. A maioria ergueu o braço. Prosseguiu então questionando “Quem gostava de ter uma semanada/mesada maior?”, “Quem queria ter um carro melhor?”, “Quem queria viver numa casa maior?” e, perante os braços que praticamente não baixavam, concluiu: lá está, “não têm tudo o que gostavam, mas mesmo assim são felizes”. Com o SNS, diz, deve acontecer o mesmo.

Falou depois da emigração médica e deu o exemplo do serviço de saúde inglês (National Health Service), cujo funcionamento assumidamente depende de mão-de-obra estrangeira, muita dela portuguesa. Para Portugal também vêm muitos médicos de fora: “só do Brasil, em 2015, vieram mais do que os portugueses que saíram”.

O tema da conversa recaiu depois sobre o programa Erasmus, que “em 3 anos mobilizou 23 000 estudantes”, o que só foi possível porque “temos um mundo mais globalizado, mais pequeno, onde tudo é mais fácil”. E porque, alega, “ter alguma internacionalização no currículo é positivo”. Distingue ainda dois tipos de migração: “há migração financeira e migração tecnológica: uns vão porque querem ganhar mais, outros em busca de ‘expertise’, de novas competências”.

Há ainda os que vão e acabam por se sujeitar a piores condições de trabalho: exemplifica com o caso de um médico que emigrou para o Paquistão por motivações pessoais – dispondo-se a ganhar 8 vezes menos – ou de profissionais que vão para os EUA, para centros mais qualificados, mas que trabalham 90 horas/semana. A verdade é que“ a mobilidade vai ser cada vez maior”, conclui.

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Findas as apresentações dos oradores convidados, o moderador interveio e estendeu o debate à participação da plateia. Vários braços se ergueram e a primeira questão versou sobre o polémico desemprego médico e os jovens recém-formados que não têm vaga para ingresso na formação específica: o que tem o nosso painel a dizer sobre o assunto? O Prof. Dr. Jorge Penedo prontificou-se a responder, dizendo que

“não há nenhum médico (que queira trabalhar) sem emprego em Portugal; o que pode haver é dificuldade em entrar na especialidade”. 

Prossegue afirmando que a classe médica, que define como uma “elite”, tem um “escalão salarial muito achatado”, de tal forma que, confessa: “um interno de Cirurgia Geral ganha mais do que eu, que tenho 30 anos de carreira”. Falou depois a Dra. Catarina Perry da Câmara, que prontamente afirmou: “vocês querem mais vagas, mas elas não existem; entre ter uma formação sem qualidade e não a ter, eu prefiro que não a tenham!”. E reitera:

“não tem de haver vagas para todos – a Ordem dos Médicos não é capaz de solucionar esse problema. Vocês estão num momento de parcial independência; nada vos impede de ir”.

Em manifesta concordância, o Prof. Dr. Jorge Penedo tomou novamente a palavra para dizer que “quando abdico da qualidade da formação, abdico da vossa qualidade e prestígio médico a nível mundial”e “se eu dissesse que vamos aumentar as vagas para dar formação a todos, estaria a fazer mal a todos nós”.

Seguiu-se outra questão, endereçada ao Prof. Dr. Jorge Penedo: “Enquanto representante da Ordem dos Médicos (OM), sabe-nos dizer se há estatísticas oficiais sobre a emigração médica em Portugal?” O Professor responde recordando que a OM está compartimentada nas secções regionais do Norte, Centro e Sul, que executam estratégias independentes, pelo que “não há um instrumento permanentemente montado para saber isso”. Acrescenta ainda que essa informação teria um “impacto muito mais político do que para os médicos em si” e que “a OM é uma entidade reguladora; não tem como obrigação dinamizar os sistemas de saúde”.

A interpelação subsequente foi dirigida à Profª Dra. Marianela Ferreira, questionando se pretende expandir o seu projeto (até então confinado à Secção Regional do Norte da OM) e, se o vier a fazer, se os instrumentos aplicados serão os mesmos. Agradecendo a questão, a investigadora clarifica que a progressão do estudo não depende dela mas, “se vier a acontecer, serão os mesmos instrumentos – que estiveram um ano em desenvolvimento – a ser aplicados, até para haver coerência e evitar enviesamentos”. Mais, esclarece que “um investigador está sempre preocupado em saber aquilo que um número traduz”, pelo que “não tem uma perceção otimista nem pessimista”.

 Com o tempo a esgotar-se, a última questão da plateia relacionou-se com a burocracia do processo e a falta de garantias de quem opta por emigrar e quer regressar. O Prof. Dr. Jorge Penedo intervém então recordando que “em Portugal há 48 especialidades e em toda a Europa não há 20 que sejam comuns a todos os países”. A falta de uniformidade a nível europeu é, de resto, segundo a Dra. Catarina Perry da Câmara, uma das razões pelas quais

não podemos dar garantias de que uma pessoa que vá tirar a especialidade fora possa regressar e ser reconhecido como especialista”.

Se és da NMS/FCM e não pudeste assistir ao Evento de Lançamento, encontra a tua revista nos expositores da faculdade!

Caso estudes noutra escola médica, envia-nos um email para saberes como podes ter acesso ao teu exemplar… e, quem sabe, participar na próxima edição!

 

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