Lisboa-Postal


“Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!”

Nas páginas de livros, nas canções, numa ou outra pintura, num filme, numa fotografia – lá vai Lisboa, não menina, jamais moça: aqui, o tema é Lisboa mulher, objeto inspirador, explorado na Arte, em que foi referência e, por vezes, elemento central.

Porque Lisboa, invariavelmente, inspira. Cidade famosa pelas colinas, pelos pregões e pela cor, foi musa, mas também cenário e casa de artistas – palco e bastidores, assim parece. Vimo-la retratada pela Arte, da primeira à sétima expressão – e até na oitava a veríamos, se uma oitava houvesse –, e matéria em bruto para reflexão, rosto de poemas…

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da rua do Ouro,
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
Acordar,
E no meio de tudo a gare, a gare que nunca dorme,
Como um que tem que pulsar através da vigília e do sono.
(…)
Lisboa, Fernando Pessoa

…feição de uma grande narrativa…

“Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias.”
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

…de um conto,

ou letra de uma canção:

Olhai, senhores, esta Lisboa d’outras eras,
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
Das festas, das seculares procissões,
Dos populares pregões matnais que já não voltam mais!
Lisboa Antiga, José Galhardo e Amadeu do Vale (Letra)

…motivo para uma pintura, uma fotografia, uma cena de cinema.

Escrever Lisboa

cinemaO Eça… ah, o nosso Eça! Retratou de forma implacável a Lisboa do século XIX, desenhando-a a traçado incisivo e oferecendo, deste modo, à palavra disseção todo um outro significado – na obra de Eça de Queirós, as descrições de planos físicos da cidade carregam o retrato fiel do povo e dos costumes portugueses, que é, porventura, o do Homem por inteiro: víamo-lo em Teodorico Raposo e na titi Patrocínio das Neves (A Relíquia), que viviam no número 47 do Campo Santana; víamo-la na tríade Basílio-Luísa-Jorge (O Primo Basílio), mais para os lados da Baixa; víamo-lo em Gonçalo Ramires (A Ilustre Casa de Ramires), durante a sua curta estadia na capital; víamo-lo em Teodoro (O Mandarim), que encontra na Feira da Ladra a sua perdição disfarçada de livro antigo; víamo-lo – como não poderia deixar de ser – na família Maia, qualquer que fosse o bocadinho de Lisboa em que se encontrassem.

E, onde vem Eça vem Cesário Verde, cujos poemas eram como que um tratado imenso acerca da classe baixa lisboeta. Crus, assentavam na base da pirâmide social, e daí observavam a mesma Lisboa – que paradoxalmente era outra – de Eça. A referência, aqui, só poderá ser O Livro de Cesário Verde.

Passemos agora, brevemente, pela Geração de Orpheu: Almada Negreiros, modernista de primeiro plano, fez no romance Nome de Guerra um “relato ingénuo e filosófico da descoberta de Lisboa por um provinciano”, do mesmo modo que Sá-Carneiro afirmou a dualidade loucura-amor embrenhada no ambiente ocioso do início do século XX lisboeta.

Já Fernando Pessoa viveu Lisboa. E escreveu Lisboa. Álvaro, Bernardo, o Outro e os Outros todos que ele era, de uma forma ou de outra, viveram e escreveram Lisboa. “Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!” (Lisbon Revisited – 1923), dizia um; “Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito, então, parece-me a eternidade.” (O Livro do Desassossego. 34), reclamava outro.

Vasco Graça Moura trouxe recentemente ao grande público uma edição comentada do Poème sur le Désastre de Lisbonne, de Voltaire, que pretende assinalar os 250 anos passados sobre o acontecimento, e fazer sobressair, deste modo, a importância que Lisboa e o terramoto tiveram no contexto europeu da época, e que nos dias de hoje se mantém. Voltaire estava na cidade no momento em que o desastre – como o próprio classifica – aconteceu, e ficou profundamente tocado pela crise humanitária que o mesmo gerou. Serviu assim um episódio da história de Lisboa para fomentar a sua reflexão acerca do papel da Providência no domínio da vida humana, instaurando um debate polémico que se crê ter culminado no grande clássico da literatura voltaireana (e universal), Cândido.

A Cidade Cantada

O fado – que mais? Lisboa é fado, quando de música se fala, mesmo que o fado nem sempre seja Lisboa – é Portugal, esclareço já. Tantos fados e fadistas cumprem a tarefa de dar à cidade a sua música-alma, que a tarefa de mencionar alguns se assoma redutora, mas não inútil, ou não fosse este o país de Amália, portadora de uma das vozes mais inesquecíveis nisto de cantar Lisboa através do fado, fosse com Lisboa Antiga, Maria Lisboa, Lisboa Menina e Moça. E não há material algum mais fiel ao propósito de divulgar o fado do que as Casas onde o mesmo é protagonista, dispersas pelos bairros alfacinhas.

Passamos assim a Sérgio Godinho, com Lisboa que Amanhece; Dead Combo e o seu Lisboa Mulata (ainda que por toda a discografia seja a capital, não raras vezes, recordada); e Madredeus, com infinitas hipóteses a explorar graças ao vasto reportório em que Lisboa, fosse pelos bairros, pelo rio, pelas gentes, por qualquer outro motivo, foi lembrada e perpetuada – destaque para Alfama, integrante da banda sonora do filme Lisbon Story (Alemanha, 1994).

Breve referência para todas aquelas músicas em que somente a guitarra canta, num gesto que faz qualquer instrumento além deste tornar-se absolutamente prescindível; e isso fez Carlos Paredes com um jeito admirável, servindo-se unicamente da guitarra para nos trazer, através de Serenata no Tejo ou Lisboa e o Tejo, à beira do rio.

http://www.youtube.com/watch?v=mtlnL_9xNLM

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Da Rua do Carmo a Santa Apolónia: Uma Rota Lisboeta Através do Cinema

Com efeito, Lisboa tem no Artista o seu principal mentor, mas é no cinema que se faz Postal endereçado ao mundo. Recordemos, por exemplo, as paragens de autocarro da cidade forradas com cartazes alusivos a um filme a que a capital emprestava o cenário e dava título – refiro-me, obviamente, a Comboio Noturno para Lisboa, com Santa Apolónia em grande plano. E é bonito, sem dúvida alguma, ver na grande tela as ruas que nos são tão familiares, tão próximas, reconhecer os nossos lugares como sendo os lugares deles, e serem esses mesmo os escolhidos para serem gravados e, de certo modo, perpetuados na película e projetados a uma escala que se pode crer mundial.

Seis cenas de seis filmes diferentes, e um Roteiro por Lisboa é criado…

O percurso começa na Rua do Carmo, que Florbela desceu aquando o seu regresso a Lisboa, e que eu subo ao encontro da loja de “joias e pratas” em frente à qual a poetisa, numa cena do filme Florbela, assinado por Vicente Alves do Ó, comprou as flores com as quais viria a receber o seu irmão. É uma rua que incomoda pela despersonalização crescente, quero eu com isto dizer que me entristece a tomada de posse pelas grandes cadeias dos espaços que o comércio tradicional em tempos ocupou – sobram, porém, a resistente luvaria Ulisses, uma ou outra pastelaria, a entrada para o elevador da Glória e o carrinho dos fados que, em conjunto com os prédios pombalinos e a fachada dos Armazéns, dão à Rua do Carmo o encanto que vimos no tempo de Florbela tão bem captado.

Florbela - Rua do Carmo
Florbela – Rua do Carmo

O confronto século XXI-XIX alastra-se pela Rua Garret acima, manifestando-se nas montras, nas esplanadas, nos sons próprios de uma zona dedicada a acolher turistas e músicos e homens-estátua e “dê-me uma ajudinha” e lá vem o 28!

Observemos agora da Rua da Horta Seca, que desemboca no Largo Camões, o trajeto que Chico, enamorado perdidamente por Tatão, percorre atrás da rapariga, numa cena do filme O Pai Tirano, de 1941; e deste modo, refazendo a correria do infeliz Chico, ainda que em sentido contrário, chegamos à Bica.

O Pai Tirano - Largo Camões
O Pai Tirano – Largo Camões

Novamente me recordo do poema de Álvaro de Campos (“Lisboa com suas casas / de várias cores / Lisboa com suas casas / de várias cores / Lisboa com suas casas / de várias cores […]) quando, depois do elevador passar, se revela a Rua da Bica de Duarte Melo em toda a sua força. Deixamos para trás a miscelânea cultural do Chiado e entramos a fundo no espírito bairrista de Lisboa, representado nos estendais e nas tascas, no chiar do elétrico ao longo da linha e nas vozes das pessoas falando de janela para janela. Pretendia, aqui, descer a Bica até encontrar a praceta (mesmo junto ao início do elevador) de A Bela e o Paparazzo em que a personagem interpretada por Nuno Markl organiza uma assembleia para a assunção de uma federação de estados, em que “cada prédio é um estado autónomo, cada andar faz as suas próprias leis e não há governo”.

A Bela e o Paparazzo - Bica
A Bela e o Paparazzo – Bica

Daí cheguei, de forma relativamente aleatória, à famosa rua de bares do Cais do Sodré, a Rua Nova do Carvalho, que de dia nos parece menos intrigante, mais normal, quiçá. Como o intuito era explorar, não me limitei a seguir em frente e chegar sem mais desvios ao meu próximo destino, o Terreiro do Paço; ao invés, enveredei por uma rua que vim depois a descobrir ser a das Flores, e rapidamente dei com a do Alecrim – também esta cenário para a ação de um filme alemão, Lisbon Story, de Wim Wenders. A cena é curiosa porque nela vimos um belo exemplar da Carris dos anos 90, e conhecendo a Rua do Alecrim, tão velhinha e tão cheia de lojas de bricabraque e alfarrabistas, mais a famosa estátua do Eça de braçado com a Vénus, parece que só mesmo a Carris renovou a frota nos últimos 20 anos.

Lisbon Story - Rua do Alecrim
Lisbon Story – Rua do Alecrim

No Terreiro do Paço há uma novidade a anotar além da reabilitação da zona recentemente desenvolvida, que é o Lisboa Story Center, espaço de recolha e exposição das “memórias da cidade”, onde se podem viver os principais episódios e heróis que marcaram a história da mesma através de simulações (ou maquetas virtuais) e cenografias.

Ao fundo do Terreiro, o rio. Junto ao rio, a Avenida das Naus. Do outro lado, a margem Sul. No entanto, aqui mesmo, foquemo-nos neste pequeno prolongamento da praça que foi palco de mais um monólogo de Bernardo Soares no Filme do Desassossego, “cada qual tem o seu álcool; tenho álcool bastante em existir”, dizia, “e se me atirasse para ali?”.

Filme do Desassossego - Cais das Colunas
Filme do Desassossego – Cais das Colunas

A caminho da partida, lugar ainda para uma paragem na Fundação José Saramago, instalada na Casa dos Bicos desde junho de 2012. O espólio do escritor não resume o que se pode encontrar na fundação: um café, uma livraria, casuais sessões de cinema, poesia e toda uma imensa atividade que se presta a honrar e celebrar, mais do que Saramago, a Língua Portuguesa.

Termino este roteiro em Santa Apolónia, tal como no filme Comboio Noturno para Lisboa, que mencionei nas primeiras linhas desta coluna. Restaurantes, diversão noturna e a proximidade do típico bairro de Alfama e da igualmente típica Feira da Ladra fazem de Santa Apolónia a estação terminal com mais pontos de início.

Comboio Noturno para Lisboa - Santa Apolónia
Comboio Noturno para Lisboa – Santa Apolónia
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Ana Luísa tem 22 anos e frequenta o 5º ano da FCM-NOVA, desde setembro de 2010. É natural de Caldas da Rainha, mas foi na vila da Benedita que completou o ensino secundário. Hoje, além de estudante de Medicina, é voluntária na Liga Portuguesa Contra o Cancro e Editora-geral da FRONTAL, onde já foi colaboradora e editora da secção de Cultura da revista (Para Inspirar) e do site. Fez parte da comissão organizadora do iMed Lisbon 2014 e interessa-se por viagens em geral - reais e irreais - além de tantas outras áreas diversas em particular, o que sempre levantou dilemas na hora de decidir o que fazer no futuro; o Ser Humano no seu todo é, contudo, o grande interesse que poderá sumarizar os restantes - o Cérebro, a Literatura, a Filosofia, a Natureza – e justificar a sua atual escolha.

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