Milagres de Natal

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A 25 de Dezembro os cristãos comemoram o dia em que se cumpriram as profecias e nasceu o tão aguardado menino, filho de mãe virgem e pai divino. Aquele que viria a ser o Messias dedicou parte da vida a curar enfermos e cegos, a libertar espíritos impuros por meio de exorcismos e a fazer ressuscitar mortos. Milagres para os homens do seu tempo. Os séculos foram caminhando a sua marcha lenta e o dia 25 de Dezembro – curiosamente, ou coincidentemente – foi-nos presenteando com o nascimento de outros homens e mulheres que, de formas mais seculares, prestaram serviços em prol do bem e da saúde da Humanidade. Hoje o olhar da Ciência não recairá sobre o que está por deslindar, mas sim sobre descobertas que ampliaram o espectro de acção da Medicina e ajudaram a fazer dela o que ela é. Hoje falar-te-emos do trabalho de um laureado com o Prémio Nobel, também ele nascido a 25 de Dezembro. Hoje Ciência será sobre outros milagres de Natal.

O homem

A. Windaus
Professor Adolf Windaus

Adolf Otto Reinhold Windaus nasceu em Berlim em 1876 e ingressou em Medicina na Universidade de Berlim em 1895. O facto de estudar Medicina não suplantou o fascínio que o mundo da Química exercia sobre si e, apenas dois anos depois, abandonou os estudos médicos para se formar em Química pela Universidade de Friburgo, Brisgóvia. Em 1928 recebeu o Prémio Nobel da Química graças aos trabalhos pioneiros por si desenvolvidos em torno da constituição e das propriedades dos esteróis e da forma como estes se relacionam com as vitaminas.

Os projectos de investigação de Adolf Windaus partiam sempre de uma observação experimental e não de uma teoria.

A peça que faltava

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Figura 1 – Molécula de colesterol

Apesar de ter dado os primeiros passos como investigador em pesquisas sobre os digitálicos, os esteróis cativaram o interesse de Windaus a partir do momento em que se decidiu a estudá-los. Desde o início das suas pesquisas ainda pouco se sabia acerca dos esteróis – defendeu (correctamente) que estes componentes das membranas plasmáticas das células eucarióticas seriam precursores de outras substâncias fisiologicamente importantes. São da sua responsabilidade a primeira fórmula empírica proposta para o nosso tão sobejamente conhecido colesterol (embora mais tarde se viessem a verificar algumas incorrecções estruturais) e a primeira demonstração da íntima relação entre os ácidos biliares e os esteróis, efectuada durante uma experiência em que conseguiu produzir ácido cólico a partir do colesterol. Esta profunda dedicação levou-o em 1926 a Nova Iorque para colaborar com uma equipa de investigação liderada pelo médico Alfred Fabian Hess, concentrada em explorar as origens do “factor antirraquítico” ou vitamina D.

A deficiência de vitamina D está por detrás do raquitismo, doença óssea grave descrita desde 1650. Por volta de 1924 o raquitismo era um flagelo que afectava uma percentagem preocupante de crianças das áreas industrializadas, onde a exposição solar era comprometida pela acumulação de gases poluentes na atmosfera. Não existia, à data, um tratamento completamente estabelecido, porém já se reconhecia a importância da exposição à radiação UV e da ingestão de óleos de fígado de peixes e de derivados do leite (como manteiga e queijos gordos) para o controlo da doença. Sabia-se também que certos alimentos de origem vegetal, nomeadamente os óleos de linhaça e algodão, adquiriam propriedades antirraquíticas quando irradiados. Iniciou-se, assim, uma série de pesquisas com o intuito de identificar a substância que seria activada pela luz solar. Na altura já se havia demonstrado que aquilo que se pensava ser colesterol “puro” se transformava num composto antirraquítico após irradiação, pelo que se concluiu que o precursor da substância activa (vitamina D), susceptível aos raios UV, seria o colesterol. Esta crença foi refutada em estudos ulteriores que demonstraram que esse colesterol, supostamente puro, continha uma impureza que adquiria propriedades antirraquíticas através de processos fotoquímicos. Seria essa impureza a provitamina, de cuja irradiação se obtinha a vitamina D.

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Figura 2 – Apresentação típica de duas crianças com raquitismo. A criança ao centro é saudável, ao passo que as outras duas apresentam atrofia muscular e deformações ósseas, nomeadamente joelhos valgos (à esquerda) e joelhos varos (à direita)
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Figura 3 – (A) ergosterol, (B) calciferol ou vitamina D2, (C) 7-desidrocolesterol e (D) colecalciferol ou vitamina D3

Eis o momento em que entra em cena o químico Adolf Windaus, reconhecido entre a comunidade científica pelos seus trabalhos acerca dos esteróis, com o objectivo de determinar com exactidão a estrutura desta impureza, uma vez que a mesma manifestava propriedades químicas e espectroscópicas típicas de um esterol. Inicialmente provou-se que o ergosterol actuaria como uma provitamina D, convertível em vitamina D2 ou calciferol quando irradiada, cujas características foram também determinadas graças a si. Permanecia, contudo, uma questão: uma vez que os humanos não possuem ergosterol, qual seria, neste caso, o precursor da vitamina D? Só mais tarde (e já depois de ter sido galardoado com o Nobel) Windaus conseguiu finalmente isolar, identificar e caracterizar o 7-desidrocolesterol, cujo produto de irradiação foi designado vitamina D3. Estas descobertas abriram caminho à produção de suplementos que são actualmente uma mais-valia terapêutica, não fosse a deficiência em vitamina D ter sido já associada a risco acrescido para doença cardiovascular, esclerose múltipla, doenças auto-imunes como a artrite reumatóide, diabetes mellitus tipo 1 e alguns tipos de cancro. Windaus estabeleceu, ainda, a estrutura da vitamina B1, encerrando assim um contributo crucial para o estudo destes nutrientes.

Pelo caminho…

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Figura 4 – Molécula de histamina

Ao longo do seu percurso Windaus concentrou também a sua atenção na conversão de açúcares em proteínas, tendo observado que desta reacção resultava a produção de derivados imidazólicos. Foi na sequência destes trabalhos que, em 1907, descobriu a histamina (ou β-4(5)-imidazol-etilamina) – uma hormona de grande importância fisiológica e farmacológica pela panóplia de funções que desempenha em vários sistemas de órgãos – tendo sido o primeiro a sintetizá-la laboratorialmente, ainda que desconhecendo qual o seu papel concreto no organismo. Já na recta final da sua carreira dedicou-se a investigar as aplicações de uma terapia química (o que hoje conhecemos por quimioterapia) na cura do cancro, o que expressa a sua determinação em participar activamente no progresso das ciências médicas rumo a um leque cada vez mais vasto de armas terapêuticas.

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Nascida em março de 1986, Carolina ingressou no 2º ano de Medicina na FCM-NOVA em 2012 após um desvio no seu percurso a ter conduzido ao curso de Medicina Dentária, percalço que nunca abalou a sua enorme vontade de se dedicar a outras formas de curar e cuidar. É editora de Ciência da Frontal e no (pouco) tempo livre que lhe sobra procura inspiração no cinema, na música e na leitura.

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