O Artista e a Doença – uma elasticidade virtuosa

Será o talento uma virtude com a qual se nasce, ou uma característica adquirida ao longo do tempo? Como diriam os ingleses – practice makes perfect. Mas será sempre assim? Sabe-se que, em algumas situações, a prática poderá ter sido muito favorecida por vantagens congénitas. Neste artigo serão apresentados os casos especiais de Niccòlo Paganini e Sergei Rachmaninoff, compositores e intérpretes particularmente talentosos nas suas respectivas áreas, que poderão ter sido bafejados com uma combinação genética única, que lhe abriu as portas do talento musical.

PAGANINI

[column size=”one-half”]Nome completo: Niccolò Paganini

Nascimento: 27 Outubro 1782, Génova – Itália

Falecimento: 27 Maio 1840, Nice – França

Conhecido por: Violinista; Compositor

É um homem vivo prestes a falecer e que irá entreter o público com as suas convulsões, como um lutador moribundo, ou um morto saído do túmulo, vampiro do violino, que, em vez da sangue do coração, extrai nos nossos bolsos o dinheiro armazenado?

De facto, era Paganini, o qual avistei rapidamente. Vestido com um casaco cinzento-escuro que chegava até aos pés, com o qual se erguia uma figura altíssima. O longo cabelo escuro caía em cachos desordenados, sobre os seus ombros e formava como que uma moldura escuro em volta do seu rostro pálido, cadavérico, no qual as preocupações, o génio e tormentos infernais tinham traçado sulcos inapagáveis.

Heinrich Heine, 1830

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Niccolò Paganini – Pintura de Eugène Delacroix – 1832. Retirado de (15)

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Conhecido como “o demónio violinista”, Paganini podia tocar o seu 1º Concerto para Violino com uma rapidez capaz de impressionar os seus contemporâneos. De facto, as suas diversas composições requerem uma extraordinária rapidez. (1)

O pai de Paganini, um comerciante e violinista amador, reparou no talento do seu filho desde muito cedo e procurou mestres que polissem as suas capacidades (2). Aos 9 anos deu o seu primeiro concerto, onde interpretou um tema composto por ele (2) e, a partir desse momento, foi estudar com Allessandro Rolla em Parma. (2) O seu talento e o seu aspecto físico motivaram diversas lendas demoníacas, como é passível de ver pela descrição de Heinrich Heine, poeta alemão seu contemporâneo. (2)

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Cartoon da época que satiriza a Paganini. Retirado de (14)

Renne de Sausine, um dos seus biógrafos, descrevia “há na sua aparência alguma coisa sobrenatural (….) Era descrito como sendo muito alto e muito delgado. Aparentava uma magreza tal que as pessoas temiam estar perto pele para evitar apanhar tuberculose. (2) Manifestava uma marcada palidez desde a sua infância e, apenas com 28 anos, começavam a aparecer sinais de envelhecimento prematuro, ficando mais delgado. O seu rosto era descrito como cadavérico, havia rugas na sua delicada pele. O cabelo do músico é longo, negro e escasso, com marcadas entradas frontais. O seu nariz era agudo e proeminente, os lábios muito delgados, as orelhas muito grandes. As suas mãos muito ossudas e as veias muito marcadas, os seus pés eram surpreendentemente muito grandes, e o seu pescoço longo e enrugado.” (2)

Após hemoptises recorrentes, este diabólico músico faleceu em Nice no dia 27 de Maio de 1840. No entanto, a fama sobrenatural deste era tal que o bispo da cidade negou o seu enterro e o seu caixão permaneceu anos numa cave. Apenas em 1876 foi permitido o funeral e os seus restos foram transferidos ao cemitério de Parma. (2)

Paganini deixou 22 valiosos instrumentos: 11 Stradivari entre violinos, violas e violoncelos, e violinos Amati y Guarneri (sendo o seu preferido o Guarneri do Gesu de 1742) (2)

Genética disfarçada de diabo

Desde 1820 que Paganini manifestava queixas de perda de peso e tosse crónica, às quais se viria acrescentar disfonia e dor laríngea. (3) Após várias “mezinhas” da época e vários médicos foi diagnosticado com “uma infecção sifilítica escondida de longa duração” e com tuberculose, sendo medicado com mercúrio (3).

Só em 1831 o Dr. Francesco Benati identificou a intoxicação por mercúrio. Este médico publicou a história clínica do seu doente num artigo do Revue de Paris. Neste artigo, o médico realçou o efeito tóxico do mercúrio no estômago, gengivas e dentes e colocou em causa o diagnóstico de sífilis, atribuindo uma etiologia “neurogénica” aos sintomas. Colocou também em causa o diagnóstico de tuberculose, alegando que a clínica não era concordante e que o estetoscópio de Laennec (“avô” do estetoscópio moderno) não revelou qualquer alteração na auscultação pulmonar (3)

A teoria da intoxicação por crónica por mercúrio é apoiada pelos surtos neuropsiquiátricos de irritabilidade, nervosismo, comportamento evitante, depressão e lassitude. Associado a um tremor postural, também conhecido como “tremor de chapeleiro” (hatter shake) que por vezes afectava a sua escrita e manuseamento de violino (2,3)

Hoje em dia o mercúrio pode parecer um contra-senso, mas na época era prática comum. Desde os tempos de Paracelso (Phillipus Von Hohenheim) que surgiu a ideia de usar mercúrio para tratar a sífilis (9) Na altura, pensava-se que a sífilis seria uma partícula eliminada pelo corpo e, como os sais de mercúrio têm propriedades diuréticas e induzem a salivação, pensava-se que facilitariam este processo de eliminação de “partículas” pelo corpo. (9) É dessa ilação que surge o conhecido ditado “dois minutos com Vénus, dois anos com Mercúrio” (sendo que, neste contexto, “Vénus” representa a promiscuidade sexual e “Mercúrio” o metal com propriedades “terapêuticas”). Actualmente sabe-se que as propriedades diuréticas são um efeito adverso e a salivação um indicador de toxicidade por este metal (9) Segundo o conhecimento actual, a sífilis é uma doença sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponema pallidum e cujo tratamento de primeira linha é a Penicilina (9)

Curiosamente, no mesmo artigo, o Dr. Bennati destaca que, apesar do tamanho normal da mão do seu doente, as articulações dos seus membros superiores estão dotadas de uma grande elasticidade e flexibilidade (2) Quando acrescentamos o seu fenótipo ao seu talento artístico podemos compreender a dificuldade e beleza dos sons que surgiram no seu violino e criaram o mito (4). Sem dúvidas, a virtuosidade do músico é possível, em parte, graças à flexibilidade das suas articulações, que muitos atribuem a uma “doença do tecido conjuntivo”, talvez Marfan ou Ehlers-Danlos. (1)

[toggle title=”Marfan ou Ehlers-Danlos?”]

Alguns autores explicam a disfonia com a Doença de Marfan, uma patologia hereditária do tecido conjuntivo que se manifesta por alterações cardiovasculares, oculares e ósseas (2,4). Nas alterações músculo-esqueléticas destaca-se o crescimento excessivo dos ossos longos, o que leva a um comprimento desproporcionalmente grande dos membros relativamente ao tronco e dedos (de mãos e pés) estreitos e compridos (aracnodactilia) (6). A cabeça é normalmente estreita (dolicocéfala), com longas estruturas faciais. (6) Paganini apresentava algumas destas características como grande estatura, aracnodactilia (a ilusão de ter dedos longos como patas de aranha) e articulações laxas. Alguns autores atribuem ainda a sua morte a uma cardiopatia secundária a insuficiência valvular. (4)

Outra teoria plausível é que Paganini sofresse de Síndrome de Ehlers-Danlos (EDS) (2) Esta doença é uma alteração do tecido conjuntivo que causa uma grande laxidão difusa das extremidades, hiperextensibilidade cutânea, hipermobilidade articular, fragilidade dos tecidos revelada por equimoses (nódoas pretas) e cicatrização atrófica demorada (2,5) Todos os órgãos podem estar afectados como coração, olhos, rim, intestino e pulmões, com hemorragias que podem ser fatais. (2) Existem diversos tipos descritos, cada um com fenómenos diferentes. (4) Ainda hoje o tratamento é sintomático (2,13). Para uma perspectiva histórica desta doença e alguns exemplos clínicos consultar Ehlers-Danlos syndrome – a historical review (5).

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Este virtuoso, cuja história se mantém envolta em mistérios, inspirava e continua a inspirar diversas obras, como “O Violinista do Diabo”, que estreou no ano passado.

Independentemente da doença que realmente o tenha afligido o facto é que esta se tornou vantajosa, porque acrescentou a um espírito criativo uma habilidade física extraordinária.

RACHMANINOFF

[column size=”one-half”]Nome completo: Sergei Vasilievich Rachmaninoff – Серге́й Васи́льевич Рахма́нинов

Data de Nascimento: 1 de Abril de 1873, Oneg, perto a Novgorod, Rússia

Falecimento: 28 de Abril de 1943 (70 anos), Beverly Hills, California, EUA (Melonoma)

Conhecido por: Pianista, compositor e maestro

Outro músico talentoso cuja saúde sempre esteve envolvida por mistério e especulação foi Sergei Rachmaninoff. Este pianista virtuoso era aficionado pela música de Paganini.

Rachmaninoff formou-se no Conservatório de Moscovo e, durante este tempo, destacou-se como pianista, compondo uma ópera, Aleko (1892). Posteriormente viria dedicar-se à composição, a sua verdadeira paixão (11)

Rachmaninoff, que tinha feito uma digressão artística nos EUA em 1909, regressaria a este país em 1917 devido à revolução russa (11) obtendo posteriormente a nacionalidade americana. Isto fez com que fosse rotulado como “expatriado e traidor” e a sua música dificilmente era recebida na sua terra natal, sendo mesmo boicotada nos 1930s (10) Rachmaninoff viveu em Dresden entre 1906 e 1909 com a sua família. Foi nesta cidade onde assistiu à Ópera de Semper e à peça “Salomé” de Richard Strauss. Este ficaria inspirado para escrever a sua própria ópera “Monna Vanna”, nunca acabada. (10)[/column] [column size=”one-half” last=”true”]

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Sergei Rachmaninoff. Retirado de (12)

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Durante muitas décadas a música de Rachmaninoff foi mal vista por alguns críticos – era tida como uma “banalidade sentimental” ou uma “música para os intestinos” (music for the gut). Estas críticas devem-se, em parte, ao facto de outro Americano de naturalidade russa, Igor Stravinsky, ter sido um forte crítico do Romantismo tardio russo, rotulando a música de Rachmaninoff como “música grandiosa para filmes”. (10)

Um melanoma rapidamente progressivo forçou-o a para o seu tour de 1942-1943 após um recital em Knoxville, Tennessee. (7) Faleceu pouco depois de 5 anos na casa que comprara um ano antes em Elm Drive, Beverly Hills. O melanoma está associado à acromegalia e esta pode ser a pista final para o diagnóstico de Rachmaninoff. (7)

O seu último desejo era ser enterrado no Cemitério Novodevichy de Moscovo, ao lado do seu mentor e amigo Sergei Taneyev, mas os seus restos ainda se encontram em Nova Iorque no cemitério de Kensico. (10)

As mãos do músico

Um grande virtuoso com uma mão com capacidades surpreendentes foi Sergei Rachmaninoff, um dos maiores pianistas da história. Algumas de suas composições são raramente executadas da forma como foram escritos: na verdade, existem acordes que exigem uma grande abertura de mão como na primeira parte do Op Prelude nº 32 (8)

Mas porquê escrever obras que requerem tanta flexibilidade e destreza manual? Será apenas uma forma de desafiar o intérprete ou haverá uma explicação biológica subjacente?

O Sinal do Polegal, típico da Doença de Marfan (retirado de The “Thumb Sign” in Marfan’s Syndrome, por Rodney H. Falk)

A técnica inusual de tocar um Dó maior (C maior) requer muito mais do que uma grande mão – requer flexibilidade suficiente para estender a mão (perto de 23cm) o que requer um enorme grau de flexibilidade, nomeadamente uma grande capacidade de oposição do polegar. (6) Para alguns autores isto constitui o clássico exemplo do sinal do polegar, característico da síndrome de Marfan. (6) Este era alto (por volta de 1,90m) e delgado. As fotografias revelam uma cabeça estreita com nariz largo e fino, proeminentes orelhas e escassez de gordura subcutânea, o que aponta para o fenótipo típico desta doença (6,8)

Contudo, aparentemente, Rachmaninoff não apresentava as características cardiovasculares do Síndrome de Marfan. De facto, 40% destes síndromes não tem alterações auscultatórias mesmo que quase todos tenham alterações ecocardiográficas, ainda que ligeiras. (6) Alguns acreditam que as alterações visuais e as cefaleias de esforço de Rachmaninoff entre 1907 e 1921 terão sido manifestações de miopia, uma alteração oftalmológica típica nesta doença (mas não exclusiva desta!) (6)

Outros autores, como Ramachandran e Aronson (2006), são cépticos relativamente à existência de alguma doença primária do tecido conjuntivo (como Ehlers-Danlos ou Marfan) devido à falta de evidência de outras alterações morfológicas relevantes como escoliose, pectum excavatum (depressão do tórax) ou história de patologia cardíaca. (7). Estes apresentam a acromegália como diagnóstico alternativo (7) Usam como argumento principal o facto de ter havido uma alteração das características faciais do artista ao longo do tempo, e associam a este a existência de surtos depressivos do artista, ter tido um melanoma e por haver registo do artista ter cancelado uma série de concertos na Rússia em 1912, devido a uma rigidez nas mãos (7) No entanto, a rigidez pode ter resultado do excesso de uso, ou de uma síndrome do túnel cárpico (7)

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Talvez este artigo não consiga responder à velha pergunta apresentada – o que tem mais peso, a genética ou o esforço? No entanto, exemplifica como dois virtuosos aproveitaram ao máximo os seus eventuais “dons” genéticos. Isto revela que nem todos os desvios à “normalidade” resultam necessariamente num handicap.

As artes, e particularmente a música, estão repletas de mistérios que talvez não serão resolvidos. Como diria o célebre Rachmaninoff:

A música é suficiente para uma vida, mas a vida não é suficiente para a música.

[toggle title=”Para saberes mais, consulta a bibliografia”]

1. West J Med. Nov 2001; 175(5): 345. PMCID: PMC1071620. Creativity and chronic disease Niccolo Paganini (1782-1840) Paul Wolf Niccolo Paganini – http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1071620/

2. Rev Méd Chile 2008; 136: 930-936 Artículo Especial Niccolo Paganini: Aspectos médicos de su vida y obra Niccolo Paganini: Medical aspects of his Ufe and work – http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0034-98872008000700017&script=sci_arttext

3. Journal of the Royal Society of Medicine Volume 81 October 1988 – Was Paganini poisoned with mercury? J G O’Shea – http://jrs.sagepub.com/content/81/10/594.extract

4. Volume 4 Number 2, 2004  – Original Article NICCOLO PAGANINI: WHEN DISEASE BECOMES ART Carlos G. Musso – http://www.humanehealthcare.com/Article.asp?art_id=813

5. Ehlers-Danlos syndrome – a historical review. Liakat A. Parapia and Carolyn JacksonVolume 141, Issue 1, pages 32–35, April 2008 – http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1365-2141.2008.06994.x/full

6. Rachmaninov and Marfan’s syndrome – Dab Young – BRITISH MEDICAL JOURNAL VOLUME 293 20-27 DECEMBER 1986 – http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1351877/

7.  J R Soc Med. 2006 Oct;99(10):529-30. The diagnosis of art: Rachmaninov’s hand span. Ramachandran M1, Aronson JK – http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=The+diagnosis+of+art%3A+Rachmaninov%E2%80%99s+hand+span

8. Corpo e strumento musicale: è sempre armonia ? Milano, 8 e 9 aprile 2005 – Abstracts – Mani celebri nel virtuosismo musicale: un tentativo di analisi del fenómeno Famous hands in musical performance: an attempt of analysis Prof. Renzo Mantero (pp.2-4) – http://www.medart.pillole.com/Pdf-files/dispensa.pdf

9. Journal of the Royal Society of Medicine Volume 83 June 1990 ‘Two minutes with venus, two years with mercury’ – mercury as an antisyphilitic chemotherapeutic agent – J G O’Shea – http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1292694/

10. http://www.dw.de/sergei-rachmaninoff-born-140-years-ago/a-16724247 (2-5-2014)

11. http://www.bbc.co.uk/music/artists/44b16e44-da77-4580-b851-0d765904573e (2-5-2014)

12. Imagem Rachmaninoff http://en.wikipedia.org/wiki/File:Sergei_Rachmaninoff_LOC_31755.jpg (domínio público)

13. http://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/ehlers-danlos-syndrome/basics/treatment/con-20033656 (3-5-2014)

14. http://www.realizedsound.net/dac/archives/511 – Cartoon Paganini

15. http://books0977.tumblr.com/post/35339318994/portrait-of-paganini-1832-eugene-delacroix – Retrato de Paganini pintado por Delacroix

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Santiago Rodrigues Manica ingressou em 2009 na FCM- NOVA onde estuda o 5º ano de Medicina. É luso-descendente natural da Venezuela e fez grande parte da sua formação no Funchal, Madeira. Este habitante do Mundo, apesar de ter escolhido a carreira médica desde muito cedo tem um interesse amador por múltiplas áreas do conhecimento como; filosofia, história universal, línguas e ciências. Os seus grandes hobbies são a leitura e a música sem esquecer os habituais passeios à margem do Tejo.

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