O Estranho Caso de Bilbo Baggins

Estreia hoje um dos filmes mais antecipados do ano de 2014 – O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos – filme que promete aquecer as noites geladas de Dezembro com um misto de hálito de dragão, hidromel e muito reboliço em torno de um objecto em particular. São poucos os que não conhecem a famosa história de Bilbo Baggins – mas ainda menos serão aqueles que sabem a sua “história clínica”…
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Hábitos toxicofílicos? Presentes. (link)

Uma famosa obsessão inexplicável por um famoso Acessório de aspecto vulgar constitui o prato principal de uma famosa história que há muito que corre mundo. Perdemos livros ao passá-los de mão para mão, carimbando sempre o acto com o solene Juramento do “quando acabares, devolve-me por favor”, estando no entanto bem cientes que nem nós acreditamos naquilo que acabámos de dizer; perdemos uns tantos minutos de assim-chamado estudo em downloads, não porque tenhamos de estar sentados em frente ao computador durante todos esses minutos para garantir que o download acaba, mas sim porque olha, já que estou a usar o computador, aproveito e vou fingir que sou uma pessoa extremamente ocupada e ver todos os mails importantes que não recebi ou ler todas as notícias interessantes que o Correio da Manhã tem para me contar (se fosse para falar ainda de redes sociais, seria necessário outro artigo inteiro); perdemos a calma e maldizemos silenciosamente o empregado da bilheteira do cinema que não parece ter pressa absolutamente nenhuma para coisa nenhuma, percorrendo todos os insultos alguma vez inventados pelos diferentes povos nos seus diferentes linguajares – inventando uns quantos novos pelo caminho – enquanto lhe mostramos a nossa compreensão com o nosso mais rasgado sorriso amarelo e dizemos um politicamente correcto “não faz mal”; perdemos uns quantos amigos se por acaso nos apetecer spoilar um dos livros/filmes, por uma qualquer razão que só nós entendemos; perdemos ainda o fio à meada enquanto damos umas tréguas ao nosso cérebro em época de exames para lermos um artigo da FRONTAL que fala supostamente sobre O Mítico Anel de duas Míticas Sagas mas cujo primeiro parágrafo divagou logo na segunda frase, e aparentemente sem motivo, para irritações banais do dia-a-dia, estando esse parágrafo em vias de retomar o assunto que nos trouxe hoje aqui – o que pode um simples Anel fazer a um homem (sendo isto apenas uma pequena amostra).

Contudo, no meio de tanta perdição, dor de cabeça e divagação interminável, acabamos também por nos perder num mundo paralelo e nos seus encantos e mistérios, de entre os quais se destaca bem o Acessório referido acima, encantador, misterioso, corrosivo, agente etiológico de síndromes peculiares com diversas manifestações clínicas, sobretudo psiquiátricas.

A Origem da Grande Dependência.
A Origem da Grande Dependência. (link)

Assim que se fala n’O Precioso Objecto, até qualquer médico com qualificações obtidas com sangue, suor e lágrimas através do programa Novas Oportunidades – e, consequentemente, conhecimentos adquiridos por um processo de osmose ainda obscuro – consegue documentar, a anos-luz de distância, o principal efeito que a projecção da imagem do Anel na retina e posterior transmissão do respectivo impulso nervoso ao córtex occipital tem no cérebro do paciente em questão: uma amplificação e retransmissão do impulso nervoso para os núcleos salivares superior e inferior, cursando com hiperactividade das fibras autonómicas da corda timpânica e, posteriormente, do nervo lingual, assim como do nervo timpânico, petroso menor e, posteriormente, auriculotemporal, causando uma sialorreia imparável e com um caudal capaz de fazer vergar mesmo a admirável, inabalável, imbatível, inigualável, irredutível, invencível, infalível e temível Arca de Noé. Esta profusão intensa de saliva é visualizada graças à paralisia dos músculos mastigadores e orbicular dos lábios, que impossibilita o paciente de manter a boca fechada nos seus momentos introspectivos de contemplação e dissertação sobre as implicações metafísicas, fenomenológicas, epistemológicas e psiquiátricas da presença do Anel mesmo ali à sua frente, acabando assim por revelar as suas abundantes secreções salivares mesmo aos mais distraídos.

É importante referir também o vasto espectro de efeitos psicotrópicos peculiares sobre os mais incautos, notando-se sintomas típicos de síndrome de privação quando o Dito Cujo se encontra fora de um raio de alcance de um braço (tremores, sudorese profusa, polipneia e intensa hiperémia conjuntival).

Bilbo, um Caso Clínico

Bilbo Baggins antes do divórcio.
Bilbo Baggins antes do divórcio.

Bilbo Baggins é largamente um paciente excepcional, e pela positiva, visto que muito dos sintomas anteriores estão ausentes. Tal poder-se-à dever ao facto de, nos seus momentos de intimidade com o Anel, o mesmo não ter estado a ser caçado simultaneamente por um outro pretendente, ciumento e intriguista, que vê tudo do cimo de uma torre, sorte que o seu sobrinho Frodo não teve. Bilbo, espécime do sexo masculino com idade aparente de 60-70 anos e idade real de 131 anos (segundo especialistas em Paleontologia com a aplicação do método da datação do carbono-14), apresenta um bom estado geral, embora com discurso nem sempre fluente nem tampouco estruturado. Orientado alo e autopsiquicamente quando na posse do Anel, notando-se alguma confusão e ansiedade na sua ausência, a verdade é que Bilbo, mesmo sendo um caso de sucesso no processo de recovery, nunca esteve imune aos vícios em substâncias recreativas que teimam em acompanhar qualquer bom hobbit (e não só) – o álcool e o tabaco. Desta forma, não é assim tão estranho o mencionado sujeito arranjar um brinquedo novo como este – não o usando apenas para se entreter, pregando partidas a terceiros, mas também para salvar a sua pele uma vez por outra.

Apesar de ser um caso mais soft, Bilbo não se livrou de um transtorno obsessivo-compulsivo, caracterizado por, para lá de perder todo e qualquer tempo livre que alguma vez tenha tido/viesse a ter a consumir ATP no árduo processo de contemplação do Todo-Poderoso, tirar e pôr o Mesmo do bolso ou brincar com ele nos seus dedos, sentindo-se ora aliviado por ter ali mesmo aquela presença reconfortante, ainda que inanimada, ora sentindo uma dúvida, incerteza, ansiedade e peristaltismo intestinal a crescerem dentro de si lentamente e a tomarem conta do seu interior, sensações que sempre souberam estar presentes nos momentos mais difíceis, nomeadamente no momento da separação do Anel, depois de uma acesa discussão e de avanços e recuos numa negociação tensa com um idoso completamente apto do ponto de vista funcional e cognitivo que, embora se dissesse que fosse feiticeiro, serviu bem para médico naquele caso.

Curiosidades

Foi também documentado o caso de um ser atarracado e aparentemente frágil e senil que vagueia preferencialmente por cavernas escuras com pouca luz e, mais importante ainda, poucas pessoas, dotado de uma pronunciadíssima cifose, exoftalmia e desprovido de uma parte razoável da sua pilosidade craniana. Exibe alterações vocais exuberantes que fazem os seus agudos assemelharem-se ao chiar de um complexo metalúrgico mal oleado e os graves ao ranger de uma porta de madeira com metástases disseminadas de caruncho e percevejos. Utiliza a sua laringe para emitir sons repetitivos que, ao que tudo indica, na maioria das vezes se traduzem semanticamente como o seu nome (embora pareça que está apenas a convocar as secreções mucosas do seu tracto respiratório inferior num estranho ritual de purificação interior) ou um certo adjectivo com que baptizou O enigmático Anel…

Cá está ele. (link)

Neste paciente, o conflito de emoções culmina, paradoxalmente (ou não) e com bastante frequência, num estado de espírito de vazio absoluto, em que o paciente sente necessidade de deitar cá para fora uma míriade de sentimentos diferentes para aliviar um pouco da sua tensão interior mas sentindo-se ao mesmo tempo incapaz de o fazer, visto não sentir nada dentro de si. Este tenesmo espiritual leva este paciente, com frequência, a delírios febris violentos, caracterizados por ataques de epilepsia verbal em que o paciente rosna com evidente rancor sílabas incoerentes enquanto lança jactos de amilase salivar em direcções aleatórias e em intervalos de tempo irregulares, emprestando uma textura única e singular à musicalidade do seu comportamento interessante, embora desviante e, de facto, um pouco assustador para os mais tímidos.

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Bilbo Baggins, depois do divórcio. (link)

Felizmente, Bilbo não chegou a atingir este estado, chegando até a beneficiar do vício que teve, do ponto de vista de longevidade, apesar de todo o stress desnecessário que aquela Presença trouxe à sua vida pacata. A compensação pelo peso que o transporte do Anel teve no estado de espírito e, de certa forma, na consciência de Bilbo, o querer e não querer guardá-lo, o desespero que quase lhe deu intussuspecções nas meninges quando não sabia dele e o procurava, o tédio quando o tinha e não sabia o que mais fazer com ele como uma criança que recebe uma prenda de Natal e dois dias depois já se fartou dela, os remorsos de saber que devia largar o seu Novo Tabaco, foram compensados por uma interrupção inexplicável de certos processos metabólicos que resultaram não apenas na preguiça gigante de quem passa os dias sentado à lareira a giboiar com os seus livros como numa longevidade aumentada. No entanto, assim que se viu separado do Anel, houve uma disrupção súbita deste equilíbrio holístico que resultou num envelhecimento ainda mais acelerado do que o normal, talvez em virtude das mesmas energias negativas e espíritos maus que causam insuficiência supra-renal aguda na sequência da cessação abrupta de corticosteróides, mantendo-se, no final, as marcas psicológicas da presença do Anel.

Nenhum transeunte da sua localidade lhe põe os olhos em cima desde o seu 111º aniversário…


Como seria de esperar, as patologias de Bilbo e Frodo Baggins são mero fruto da imaginação brincalhona do autor. Os direitos de autor dos vídeos apresentados neste artigo pertencem à Warner Bros. Studios.

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As origens do Pedro Vazão Vasques remontam ao longínquo dia de 5 de Junho de 1993, dia em que infligiu os seus primeiros estragos nos tímpanos de um qualquer pobre coitado a estagiar no Hospital D. Estefânia em Pediatria (ele parte do princípio que os profissionais de saúde já não os teriam sequer e portanto não se incomodassem minimamente com os gritos de sofrimento - infligido, e com prazer - soltados pela amostra de ser humano que tinham perante si, mas refere não se lembrar muito bem). Lembra-se, no entanto, que desde pequeno que tem a mania de escrever textos cheios de parênteses, vírgulas e hífens que ficam muitíssimo - também costuma usar palavras acabadas em "íssimo", adjectivos principalmente (também palavras acabadas em "mente"), embora não neste caso - confusos e que precisam de ser lidos 3498498 vezes para se decifrar o que lá está realmente escrito - e ainda seria mais complicado se estivessem a tentar lê-lo não com a letra de computador mas sim com a sua caligrafia singular, que mesmo o próprio, por vezes, interpreta como uma sucessão bizarra de complexos QRS pleiomórficos. Metade de si é desastrada e esquecida, a outra foi entretanto derrubada ou perdida num qualquer canto da cidade de Lisboa, não se lembra bem qual. É garantido, no entanto, que a sua cabeça, neste preciso momento, andará a deambular algures pela Via Láctea, vindo algumas vezes à Terra para estabelecer contactos com a gente que por aqui anda, pôr conversas em dia e consumir as suas drogas preferidas, música e cinema.

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