Surto de Hepatite A em Portugal: Um regresso ao passado?

Desde a última semana são muitas as notícias que têm saído acerca do surto de hepatite A que está a acontecer em Portugal. Segundo a Direção-Geral de Saúde (DGS), foram notificados cerca de 115 casos de Hepatite A no nosso país no primeiro trimestre de 2017. Mas, afinal, o que é a Hepatite A? A que se deve este aumento na incidência desta infeção? O que podemos fazer para evitar que isto aconteça? 
 

A hepatite pode resultar de causas infeciosas (virais, bacterianas, fúngicas e parasitárias) ou não infeciosas (álcool, drogas, doenças autoimunes e metabólicas).

De entre as hepatites virais, a hepatite A trata-se de uma doença inflamatória aguda do fígado, causada por um vírus de ARN do género Hepatovírus e da família dos Picornaviridae, designado por vírus da hepatite A (VHA).

Curiosidade: a história da hepatite A

As primeiras descrições de uma icterícia contagiosa remontam à China antiga. Não é possível estabelecer com certezas que a descrição fosse de hepatite A, mas os sintomas eram os mesmos. Assim, os primeiros surtos de hepatite A ocorreram no século XVII e XVIII na Europa, principalmente nos períodos de guerra. Em 1855, Virchow e Bamberger passaram a designar esta doença por “icterícia catarral” porque acreditavam que o mecanismo patogénico da doença era a oclusão do ducto biliar comum por secreções não expelidas. McDonald foi o primeiro, em 1907, a propor que esta doença era causada por uma infeção viral.

VHA
Figura 1 – Fotografia obtida por ME de partículas do VHA.

Em 1923, Blumer analisou dados epidemiológicos dos Estados Unidos e determinou que o vírus da Hepatite A tinha um pico de incidência no outono e inverno, acometia principalmente crianças e jovens adultos e tinha uma via de transmissão fecal-oral. Só 40 anos mais tarde é que Feinstone e colaboradores isolaram o vírus a partir das fezes de doentes infetados. Duas décadas depois, apareceram as primeiras vacinas.

Embora a expressão clínica da doença possa ser muito variável, é uma doença habitualmente auto-limitada, em alguns casos sub-clínica, mas geralmente sintomática, sendo a manifestação cardinal a icterícia. Caracteriza-se também pela existência de sintomas constitucionais que incluem febre, mal-estar, astenia, anorexia, náuseas, vómitos e dor abdominal.

A frequência da sintomatologia depende, normalmente, da idade do doente. Desta forma, apenas cerca de 30% dos doentes com idade inferior a 6 anos é sintomático. Por outro lado, em crianças mais velhas e adultos a infeção provoca doença clínica em mais de 70% dos casos. Habitualmente, as manifestações prodrómicas ocorrem 1 a 7 dias antes do aparecimento da icterícia (que se acompanha de colúria).

A duração da doença varia de pessoa para pessoa, mas normalmente, ao fim de 3 semanas, as pessoas referem uma melhoria sintomática (que normalmente se acompanha de uma melhoria dos parâmetros analíticos que avaliam a lesão hepática).

O curso clínico desta doença é normalmente benigno. No entanto, estão descritas complicações, que incluem a colecistite, anemia hemolítica, hepatite fulminante, desenvolvimento de hepatite crónica auto-imune, pancreatite, entre outras.

O principal modo de transmissão é por via fecal-oral, através de ingestão de alimentos ou água contaminados (sobretudo em viajantes) ou por contacto pessoa a pessoa, nomeadamente o contacto sexual.

A infeção após transfusões de sangue, nos países desenvolvidos, é rara visto que se trata de uma doença que não é crónica. Pode ocorrer transmissão vertical, mas o risco é baixo se a infeção ocorrer no 3º trimestre. Infeções mais precoces podem ter consequências mais graves para o feto, nomeadamente peritonite com perfuração de víscera.

O ser humano é o reservatório mais importante do vírus. Após replicar-se no fígado, o vírus é excretado na bílis, sendo depois libertado nas fezes em elevadas concentrações desde duas a três semanas antes até uma semana após o aparecimento dos sintomas. O VHA é resistente a detergentes, a meios ácidos (pH de 1) e a temperaturas até 60°C (mas é inativado nos alimentos se atingir a temperatura de 85ºC durante 1 minuto), podendo sobreviver durante muitos meses em água doce e água salgada. Uma vez que o seu período de incubação é extenso (15 a 50 dias) torna-se difícil identificar o meio e a fonte de transmissão. Não há evidência da existência de humanos portadores do vírus.

Hepatite A
Figura 2 – Propagação do VHA no organismo.

De acordo com a DGS, as pessoas não imunizadas quer por vacinação quer por infeção prévia estão mais sujeitas a adquirir hepatite A, se:

  • se deslocarem para zonas endémicas (Ásia, África, América Central e do Sul);
  • ingerirem alimentos/água contaminados;
  • são homens que fazem sexo com homens, que tenham um ou mais dos seguintes comportamentos, quando um dos parceiros está infetado:

o sexo anal (com ou sem preservativo);

o sexo oro-anal;

o sexo anónimo com múltiplos parceiros;

o sexo praticado em saunas e clubes, entre outros locais;

  • possuem défices de fatores da coagulação, são utilizadores de drogas injetáveis e não injetáveis, entre outros, uma vez têm maior risco de desenvolver a doença se entrarem em contacto com o vírus.

 

Segundo a DGS, “não existe tratamento específico para a hepatite A” e, para além disso “a ingestão de álcool é absolutamente desaconselhada e os fármacos com metabolização hepática ou que possam ser hepatotóxicos devem ser utilizados com precaução.” No entanto, pessoas não vacinadas que tenham estado recentemente expostas ao VHA, devem receber profilaxia pós-exposição com imunoglobulina ou vacina anti-VHA.

Uma infeção por VHA provoca imunidade vitalícia e a imunização passiva com imunoglobulina também é suficiente para prevenir doença.

Curiosamente, os dados do Inquérito Serológico Nacional de 2015-16, que é levado a cabo pelo Instituto Ricardo Jorge, indicam que em Portugal, a população com idade inferior a 30 anos tem uma taxa inferior a 20% de anticorpos IgG contra o VHA. Já a população com mais de 55 anos tem valores na ordem dos 93%.

A situação epidemiológica em Portugal modificou-se, especialmente a partir de 1980, devido ao desenvolvimento de grandes obras públicas de saneamento. Desta forma, ocorreu uma redução progressiva e marcada da incidência da Hepatite A e do risco de a contrair. Atualmente Portugal apresenta uma baixa endemicidade à semelhança dos outros países da Europa Ocidental e do Norte.

Contudo, segundo a DGS, entre 1 de Janeiro a 29 de Março de 2017 foram notificados 115 casos de hepatite A, dos quais, 107 foram confirmados laboratorialmente através de métodos serológicos e 58 doentes foram hospitalizados. Do total de casos, 97% são adultos jovens do sexo masculino, principalmente residentes na área de Lisboa e Vale do Tejo (78 casos). A última atualização do número de casos conta com um aumento dos casos para um total de 160 até à presente data.  Este surto de  hepatite A está associado à transmissão sexual sobretudo entre homens que fazem sexo com homens, mas não se limita a este, uma vez que o fator de risco principal está relacionado com as várias formas de contacto associadas às práticas sexuais que facilitam a transmissão fecal-oral quando uma das pessoas está infetada. Este tipo de surtos têm sido documentados desde a década de 70 e estima-se que se existisse uma imunização superior a 70%, dentro da população de risco, seria possível de impedir a transmissão sustentada e futuros surtos.

Para saber mais
Fontes das imagens

Figura 1 – Bennett, John E., Raphael Dolin, and Martin J. Blaser. Mandell, Douglas, and Bennett’s principles and practice of infectious diseases. Elsevier Health Sciences, 2014.

Figura 2 -Murray, Patrick R., Ken S. Rosenthal, and Michael A. Pfaller. Medical microbiology. Elsevier Health Sciences, 2015.

 

 

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