Uma Santa Saúde: tomai e comei, mas não exagerai

Depois do artigo “Uma Santa Saúde: o toque divino da lepra”, apresentamos a segunda parte da Medicina Bíblica, focada nos seus ensinamentos dietéticos. As regras bíblicas relativas à alimentação são exaustivas e foram implementadas na comunidade ocidental através dos séculos, sendo parcialmente responsáveis pela dieta que detemos hoje em dia.

Quem ama os prazeres empobrecerá; quem ama o vinho e o azeite nunca enriquecera.

Provérbios 21:17

Contra a gula, temperança

Pormenor do quadro “Os Sete Pecados Mortais e as Últimas Quatro Coisas“, de Hieronymus Bosch (1500-1525), representando o pecado da gula

Dos sete pecados capitais, o que interessa mais às gentes médicas é, sem dúvida, o pecado da gula, que nos atormenta nas consultas, impede bons prognósticos e diminui a qualidade de vida dos pacientes. É um pecado intemporal, cujos malefícios são explorados avidamente nas mais diversas formas de arte. É curioso pensar que apesar de a gula ser um pecado, nem por isso a obesidade, como hoje é retratada, era um mau sinal. Foi, durante muito tempo, sinónimo de prosperidade e riqueza – quem comia mais tinha certamente mais dinheiro.

A moderação na alimentação está bem patente na Bíblia e era amplamente pregada pelos seus seguidores eclesiásticos – ao povo, sobretudo. Não obstante, conforme várias críticas, inclusivamente a partir de dentro da própria Santa Sé, não eram poucos os que prevaricavam e se faziam valer do seu estatuto para usufruir de uma vida de comodidades. Lembremo-nos de uma das (muitas) críticas subtis de Eça de Queiróis à Igreja ao apelidar, carinhosamente, o gato de Afonso da Maia de Reverendo Bonifácio – por ser gordo e anafado.

Os conselhos sobre moderação na alimentação expressos na Bíblia apresentam-se sob várias formas, seja por intermédio de parábolas ou por salmos. A advertência contra a gula não é só feita em detrimento da salvação da alma e como forma de subjugação a uma vontade divina – é também uma forma de preservar o bem-estar do corpo, algo que é considerado também sagrado, segundo as Escrituras.

20 Não estejas entre os beberrões de vinho, nem entre os comilões de carne. 21 Porque o beberrão e o comilão caem em pobreza; e a sonolência cobrirá de trapos o homem.

Provérbios 23:20-21

Em resumo – há que comer consoante a necessidade. Nem mais, nem menos. As regras relativas à alimentação não se ficam, contudo, por limitações quanto à quantidade de comida ingerida; também a qualidade da comida é alvo de rígidos limites.

Não deixa de ser curioso pensar que, em tempos bíblicos, se pregavam, além de salmos, advertências relativas à hipercolesterolémia, à diabetes e, quiçá, a várias doenças intestinais.

Sangue e gordura não comereis…

Quadro “A Mesa do Talhante com a Fuga para o Egipto“, de Pieter Aertsen (1551)

Atente-se num das exemplos mais prementes em toda a Bíblia – a proibição da ingestão de carne com sangue. Actualmente, trata-se de uma prática vivamente desanconselhada, não só pela elevada possibilidade de adquirir zoonoses (EscherichiaCampylobacterListeria monocytogenesEnterococcusYersiniaSalmonellaToxoplasma…) através da ingestão de carne crua ou sangue animal, como pela correlação com o cancro colorrectal, que é particularmente evidente na ingestão de carnes vermelhas.  Esta proibição pode ter ganho contornos meramente religiosos ao longo dos anos, sobretudo para a plebe, mas há que considerar se, de facto, a mesma não resultou de uma simples constatação de doença gastrointestinal após consumo de carne crua. Uma norma religiosa poderia ser (e muitas vezes é) melhor aceite que uma imposição nutricional – assim, uma simples regra religiosa passa a ser, na verdade, uma norma de saúde pública.

A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis.

Génesis, 9:4

Mais curioso ainda é a pribição do consumo da gordura animal. Longe de ter a mesma conotação espiritual que o sangue, a gordura animal é também uma substância cujo consumo deve ser negado a todo o custo. Esta regra parece ter contornos mais dietéticos do que propriamente religiosos, sugerindo, novamente, resultar de uma observação cuidada de pacientes cuja alimentação se baseia em carne crua, com alta prevalência de maleitas diversas.

23 Fala aos filhos de Israel, dizendo: Nenhuma gordura de boi, nem de carneiro, nem de cabra comereis. 24 Todavia pode-se usar a gordura do animal que morre por si mesmo, e a gordura do que é dilacerado por feras, para qualquer outro fim; mas de maneira alguma comereis dela. 25 Pois quem quer que comer da gordura do animal, do qual se oferecer oferta queimada ao Senhor, sim, a pessoa que dela comer será extirpada do seu povo. 26 E nenhum sangue comereis, quer de aves, quer de gado, em qualquer das vossas habitações. 27 Toda pessoa que comer algum sangue será extirpada do seu povo.

Levítico, 7:23-27

“Não tocar ou comer a carne de animais encontrados mortos na floresta (macaco, gorila, chimpazé, rato…)” Recomendações da OMS, em 2003, relativas à disseminação do vírus Ébola

O conhecimento relativo às zoonoses está também presente na proibição do consumo de carne de animais encontrados mortos. Esta seria igualmentee uma maneira de impedir o consumo desesperado de carne “morta” da parte daqueles que não tinham dinheiro para adquirir carne em melhores condições. No entanto, estas regras ganham já contornos mais sinistros, uma vez que, em termos espirituais, se considera pecaminoso comer algo “morto” e deixado ao abandono. Esta norma de saúde públlica é ainda hoje altamente recomendável, sobretudo para diminuir a disseminação de vírus como o Ébola, que já este ano provocou um surto de doença na Guiné. A transmissão deste vírus dá-se pelo contacto com sangue ou fluídos de animais contaminados, como o macaco ou o morcego da fruta.

Todo aquele que, natural da terra ou estrangeiro, comer um animal encontrado morto ou despedaçado por animais selvagens, lavará as suas roupas e se banhará com água, e ficará impuro até a tarde; então estará puro.

Levítico 17:15

Uma passagem relacionada com este tema que merece especial atenção é o versículo 21 do capítulo 14 do Deuterónimo.

Não comereis nenhum animal morto; ao estrangeiro, que está dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao estranho, porquanto és povo santo ao Senhor, teu Deus. Não cozerás o cabrito com o leite da sua mãe.

O consumo de carne “morta” era expressamente proibido, mas a sua venda era permitida… Desde que a forasteiros. Talvez esta regra advenha de uma medida de protecção contra povos estranhos, de religião diferente, ou apenas como forma de expressar que, por ser um povo santo, os cristãos não deveriam consumir uma carne que só pode ser comida por infiéis. A referência à proibição da cozedura do cabrito no leite da sua mãe pode-nos parecer bizarra, mas alguns especialistas bíblicos dizem que o cabrito pascal, que era uma oferenda divina dos sacerdotes a Deus, só poderia ser sacrificado após o desmame. Talvez a adição de leite materno fosse considerada uma quebra dessa regra.

…E da bebida forte não abusai

Não passa também despercebida a referência à moderação no consumo alcoólico. O alcóol não é proibido – pelo contrário – é até considerado uma bebida altamente cristã (vide Deuterónimo 14:26) Contudo, os seus efeitos, quando ingeridos em excesso, são notados até pelo mais inocente e santo católico. Os “grandes beberrões” são apontados como pessoas fracas de espírito, que vêem na bebida um refúgio para os seus males e que se tornam, lentamente, em pessoas indignas de grandes feitos.

Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte. Para que não bebam, e se esqueçam do estatuto, e pervertam o juízo de todos os aflitos. Dai bebida forte aos que perecem, e o vinho aos amargosos de espírito;

Provérbios 31:4-7

Contudo, o vinho é, de facto, uma bebida carregada de simbolismo. É inclusive símbolo de alegria, ou não seria por isso que, em João 2:1-11, Jesus Cristo transforma a água em vinho num casamento, permitindo assim o continuar da festa.

Uma divina dieta, com os ingredientes certos

Quadro "Adão e Eva no Jardim do Éden", de Jan The Elder Brueghel (1615)
Quadro “Adão e Eva no Jardim do Éden“, de Jan The Elder Brueghel (1615)

A Bíblia é particularmente rica nas listagens de animais permitidos/proibidos na alimentação. Certas passagens do Deuterónimo e do Levítico são bastante exaustivas nas descrições do que deve ou não constar na alimentação de um bom cristão. Por exemplo, animais ruminantes que não tivessem cascos fendidos não deveriam ser comidos, além de todos os animais marinhos que não possuíssem barbatanas ou escamas. Aves de rapina e animais carívoros também não constavam da dieta de um bom cristão. Convém aqui ressalvar que os animais podem variar consoante a tradução bíblica em causa. Algumas traduções consideram “águia” em vez de “aves de rapina”, e outros usam o termo “unhas fendidas” em detrimento de “cascos”. Esta ressalva é, infelizmente, válida para quase todas as passagens da Bíblia, que apresentam variações entre ediçõe, países e livros.

Répteis, animais exóticos e insectos eram expressamente proibidos. Quem sabe pelo desconhecimento em relação a tais criaturas, ou talvez por serem “estranhos”, eram “impuros” à luz da lei cristã. Caso um desses animais entrasse em contacto com um animal “puro”, este também não deveria ser consumido. Talvez esta regra advenha do medo de grandes pragas, com grandes perdas de gado e, inevitavelmente, a fome. Esta proibição pode inclusivamente ter estado na base da nossa aversão e repulsa, bem ocidental, em comermos iguarias como insectos ou répteis, tão populares no mundo asiático.

Mas a Bíblia não se restringe apenas a fomentar o consumo moderado de carne. Se retornarmos ao Génesis, apercebemo-nos, para grande regozijo dos apologistas da dieta vegetariana, que os primeiros alimentos recomendados por Deus foram, na verdade, vegetais.

E disse Deus: eis que vos tenho dado toda a erva que dá semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto de árvore que dá semente, ser-vos-á para mantimento.

Génesis 1:29

E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: de toda a árvore do jardim comerás livremente.

Génesis 2:16

Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo.

Génesis 3:18

[hr]

As aprendizagens sobre os conceitos e práticas de saúde da Antiguidade na Bíblia são mais que muitas. Mais numerosas ainda são as analogias que podem ser feitas entre os seus episódios e práticas actuais da Medicina, que dependem largamente das crenças de quem as analisa. Muitos preferem olhar para a Bíblia de forma dogmática, inteiramente proveniente de Alguém divino, nunca adulterado por mão humana; outros sentem uma maior liberdade para fazer interpretações das suas passagens.

Os temas de Saúde presentes na Bíblia geram normalmente controvérsia na sociedade moderna, originando discussões que nem hoje estão perto de terminar. Muitas vezes se argumenta inclusive que Fé e Ciência são incompatíveis. O mesmo poderá ser aplicado totalmente à Religião e à Medicina? A própria Bíblia é a prova de que talvez estas duas temáticas não sejam tão imiscuíveis como tantos as quiseram fazer ser ao longo da História. Se a Medicina, durante séculos e séculos, foi impedida de avançar pela Igreja (que não é o equivalente à Fé ou à Religião), eram também os seus praticantes – os monges e freiras – que se ocupavam da arte de curar. Afinal, na Bíblia, Deus não proíbe a cura.

O Homem proíbe.

E Jesus, respondendo, disse-lhes: não necessitam de médico os que estão sãos, mas, sim, os que estão enfermos.

Lucas 5:31

[toggle title=”Mais passagens bíblicas e comentários”]

  • Sobre a moderação na alimentação – Salmos 105:15, Ecclesiastes 10:17
  • Relativos à proibição do consumo de sangue e gordura – Levítico 17:10, Levítico, 3:17, Génesis, 9:4, Levítico, 7:23-27, Deuterónimo, 12:16
  • Sobre a proibição do consumo de carne de um animal encontrado morto – Levítico 22:8, Ezequiel 4:14
  • Sobre a moderação no consumo de bebidas alcoólicas – Levítico 10:9, Provérbios 20:1, Provérbios 23:29-35
  • Sobre os animais proibidos e permitidos na alimentação – Capítulo 14 do Deuterónimo e as passagens Levítico 11:13-19, 11:21-23, 11:41-43 e 7:19 e Haggai 2:12-13
  • Mais passagens e comentários em – http://pt.bibles.org/ e http://biblehub.com/commentaries/ [/toggle]
Artigo anteriorUma Santa Saúde: o toque divino da lepra
Próximo artigoContra o medo da bata branca: o Hospital da Bonecada!
Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.