São simples as diretrizes do Homem Comum: gasta um terço da vida a dormir; outro terço gasta-o a trabalhar (possivelmente); passa, grosso modo, vários anos a comer, a beber, a procriar… São estas as necessidades que ditam o comportamento desta espécie.
Mas nós – estudantes de Medicina – não somos como o Homem Comum. Somos a nata da sociedade! (Não fossem a lisonja e o elogio tão importantes como são os lubrificantes para rodas). Desta máxima surge uma ilação: a de que o nosso tempo é dedicado a atividades muito superiores às dele, em todas as medidas. Exemplo e prova de tudo isto é o nosso muy nobre e querido afazer de todos os dias: estar encostados à parede.
O estudante de Medicina sofre de uma paixão pouco natural pelo estuque.
Vêmo-lo no caloiro que espera horas no corredor de anatomia para ser chamado à oral. Vêmo-lo no colega que se passeia pela enfermaria quando o seu assistente desaparece. Vêmo-lo no estudante que passa cinco horas no bloco operatório sem sequer ver um pingo de sangue. Não chega a ser irónico que o próprio símbolo da nossa faculdade seja uma fachada? O nosso amor é puro!
Em verdade vos digo: uma hora do estudante de Medicina encostado à parede tem dez, tem cem, tem mil vezes mais valor que toda a vida de um Homem Comum.
Mas um fenómeno peculiar decorre deste quotidiano. Tal como tudo o que é bom mas persistente se torna crónico, assim o comportamento se torna essência: o encosto físico que a parede nos proporciona parece tornar-se com o tempo num encosto para a alma.
Esta metamorfose nada mais é que uma defesa, uma defesa para as desilusões que vivemos como estudantes de Medicina. É o nosso covil, se quisermos. É a reação mais fácil para o mantra que nos murmuram diariamente ao ouvido: “todos querem o mesmo, todos são iguais; quem pensa de outro modo vai pelo seu próprio pé para o manicómio!”. É a caminhar este trilho que vamos perdendo as nossas convicções. É aqui que tem origem o nosso espírito de passividade. Quando a nossa alma se encosta à parede ficamos assim, confortavelmente entorpecidos…
Estudantes de Medicina do mundo, desencostai -vos!
Não tendes nada a perder a não ser o conforto do vosso lombo. Participa, vive, sai, experimenta. Larga os livros, deixa a sebenta e queima os apontamentos. Vivemos tempos de novos inícios! Só viverás o teu se te desencostares. Não se olhe à pequenez deste primeiro passo: o que no princípio é bem feito permanecerá bem feito para sempre.
«But it was only a fantasy
The wall was too high as you can see
No matter how he tried he could not break free
And the worms ate into his brain»
O Crónico