Qualquer obra de ficção tem raízes fortes num solo realista. Até a medicina imaginária dos livros de ficção fantástica não é completamente destacável do nosso passado histórico médico. Seja real ou imaginária, a medicina tem um objetivo – curar o Homem e enganar a morte. E A Guerra dos Tronos não foge à regra. Afinal, o que dizemos nós ao Deus da Morte? Hoje não.
Quando, em 1996, foi publicado o primeiro volume da saga A Song of Ice and Fire, ninguém teria imaginado que esta série de livros se iria tornar não só numa das mais lidas de sempre como se tornaria numa das séries mais seguidas da atualidade. Game of Thrones tornou-se rapidamente numa série de culto, exponenciada pela sua adaptação televisiva.
Para aqueles que não conhecem o mundo de George Martin, esta série retrata uma realidade medieval alternativa, onde os Dragões não são apenas desenhos estranhos em livros empoeirados e onde criaturas semimortas rondam um edifício gelado – a Muralha. Apesar de ser um mundo alternativo e místico, parece existir um déjà-vu em certos aspetos patentes Idade Média e noutros períodos históricos, nomeadamente no que concerne a própria medicina.
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Quando a força não vence as bactérias
Quem não pensou seriamente que seria impossível que Khal Drogo, um dos senhores da guerra mais poderosos entre os Dothrakis, aquele que nunca perdeu uma batalha, sofresse tanto por uma simples ferida infetada? Não querendo estragar a história para aqueles que desconhecem a série, direi apenas que, por insistência de Daenerys, sua esposa, uma ferida de batalha de Drogo foi tratada pela curandeira Mirri Maz Duur (ou maegi, bruxa), que lhe colocou uma cataplasma de plantas em cima do ferimento. Sentindo-se desrespeitado e fraco, Drogo recusou-se a usar a cataplasma, o que levou à supuração da ferida. Pouco mais tarde, veio a febre e, depois dela, uma nova cura mágica por parte da maegi. E um desfecho trágico para o Khal.
O tratamento da ferida de Drogo começou com a lavagem da ferida em vinho fervente. Hipócrates também advogava que o vinho teria ações desinfetantes e analgésicas e, segundo Daglia, M. et alli (2007), tanto vinho tinto como vermelho podem ter atividade antibacteriana contra Streptococcus encontrados na flora oral. Se o mesmo se aplica à miríade de bactérias presentes na pele, é algo a discutir. Nesta história, o vinho seria provavelmente também utilizado para limpar a ferida de detritos. A maegi deixou claro que o Khal não poderia beber vinho ou leite de papoila, talvez porque ambos possuem um efeito analgésico e porque o Khal precisava de se manter acordado e “montado em cima do seu cavalo”, mantendo o respeito na sua horda. Segundo a própria saga, o leite de papoilas é dado a pacientes com grandes dores ou no leito da morte e é dito que os grandes guerreiros preferem suportar as dores do que sentir as sequelas debilitantes daquela bebida. Relembremo-nos que é das papoilas que o ópio é extraído, ópio esse que provoca uma diminuição na perceção nociceptiva e um aumento da tolerância à dor. Entre os seus efeitos adversos encontram-se náuseas e vómitos, boca seca, obstipação e miose. Por outro lado, o vinho vermelho tem efeitos antiplaquetários e reduz os níveis de fibrinogénio (Tangney, C. et al. 2012), o que, no caso da cicatrização de uma ferida, poderia implicar uma recuperação mais tardia.
Seguiu-se a colocação da cataplasma, que foi recusada pelo Khal. No entanto, um contacto entre os agentes piogénicos das plantas havia sido estabelecido e a ferida tornou-se supurativa. A utilização de plantas em cataplasmas não é completamente estranha – na verdade, relatos da Suméria, Antigo Egito e Índia, anteriores a 1000 a. C., revelam que a utilização de infusões, cataplasmas e vapores era amplamente indicada para variadas maleitas. Na Baixa Idade Média, esta prática era ainda fortemente vigente, sendo a principal prática médica em mosteiros e conventos. Destaca-se, neste período, a abadessa Hildegarda de Bingen (1098-1179), que defendia a harmonia entre religião e a natureza envolvente, tendo obtido do Papa Bento XVI o título de Médica da Igreja pelas suas práticas herbalistas bem-sucedidas. As práticas médicas com plantas não eram algo original na Idade Média – quase todas as receitas e preparados eram copiados de manuscritos romanos e gregos que ainda sobreviviam em algumas bibliotecas monásticas. Contudo, a utilização herbalística e mesmo minérica acabou por ser várias vezes condenada pela Igreja, pelo uso corriqueiro entre homens e mulheres “sábios”, que “prescreviam” livremente receitas e preparados “mágicos” (note-se que a maegi era afinal uma “mulher-sábia” praticante de magia negra). A utilização de preparados herbanários a partir de manuscritos gregos foi muitas vezes banida de mosteiros e substituída única e exclusivamente pela oração durante a Idade Média e Renascimento.
Se as doenças cardiovasculares cabeceiam atualmente a lista das causas de morte, na Idade Média o panorama era completamente diferente – basta que nos lembremos que cerca de metade da população europeia, no século VIII d. C., e cerca de 75 a 200 milhões de vítimas, durante o século XIV d. C., foram vítimas de Peste Negra, também conhecida como a Grande Pestilência. E o nome não poderia estar mais adequado – a peste estava não só intimamente relacionada com a fome que assolou a Europa durante a Pequena Idade do Gelo e com as várias guerras que atravessava, como com as condições de vida precárias em que a população vivia. Mas Khal Drogo não sofreu de peste – talvez de septicémia. O golpe que lhe levou o mamilo esquerdo não era muito profundo, mas foi sujeito a um mau tratamento. Como diria George Bernard Shaw, a maegi limitou-se “estimular a fagocitose” de forma ineficaz, expondo o Khal a uma panóplia de microrganismos.
A história de Khal Drogo reflete também a importância da desinfeção no tratamento de feridas, em qualquer período histórico, e a relevância do conselho médico.
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Os leões também sofrem
Os Lannister são a família mais temida em A Guerra dos Tronos. Conhecida pela sua sede de poder e por uma insistência prolongada na vingança dos seus, esta casa têm um papel fulcral no desenrolar da intriga. Para este artigo importa referir apenas dois deles – os irmãos Jaime e Tyrion Lannister.
Jaime Lannister poderia ser considerado um Lancelot deturpado – apesar de belo e extremamente galante, possui a perfídia tão característica dos Lannister. Por algum motivo (não irei revelar qual) ele é apelidado de Regicida. No decorrer da intriga, a mão direita deste Lannister é decepada, deixando-o inevitavelmente afetado nas artes marciais. Alguns dias depois de lhe ser cortada a mão, Jaime refere “sentir ainda o fogo a percorrer-lhe o braço” e os dedos que já não tinha a contorcerem-se no fogo, utilizado para cauterizar a ferida. A cauterização é hoje amplamente utilizada na forma de eletrocirurgia, sob o modo monopolar, bipolar, laparoscópico ou histeroscópico, tanto para o fim de corte de tecido como para promover a coagulação, recorrendo, neste último caso, a uma alta voltagem modulada. O facto de o tecido ser sujeito a uma alta temperatura implica a desnaturação proteica e desidratação, resultando em carbonização superficial ou explosão celular (Einarsson, J. 2012). Segundo Roberts, T et al. (2007), o calor induz diretamente morte celular e necrose, o que, contrariamente ao que era pensado, pode potenciar infeção, ao invés de a evitar. Contudo, o choque de calor poderá induzir também citoquinas próinflamatórias circulantes, que previnem choque hipovolémico.
A sensação da mão perdida a posteriori, sentida por Jaime, é comummente conhecida como a dor do membro fantasma, ou seja, é um tipo de dor presente após a perda de um membro em que a localização da dor é apontada numa área do membro perdido ou no próprio membro. Em Cortical Depression and Potentiation: Basic Mechanisms for Phantom Pain, de Min Zhuo, da revista Experimental Biology, é sugerido que a amputação pode de facto despoletar uma transmissão sináptica facilitada por estímulos entre o córtex somatosensitivo e o córtex cingulado anterior e alterar de forma generalizada a plasticidade sináptica nas redes corticais motoras e sensitivas, levando assim a uma perceção alterada da dor num membro inexistente.
Contrastando fortemente com o irmão, tanto em termos físicos como morais, Tyrion Lannister é conhecido pejorativamente como o Anão, sendo talvez o único dos Lannister que se opõe à tirania e prepotência da sua própria família. Olhado de lado pela família em peso, exceto por Jaime, que o trata curiosamente com algum carinho, é considerado pela população geral tanto ridículo como perigoso. Na verdade, é esse o perigo do desconhecimento – o erro.
Na Grécia Antiga e Egito, indivíduos com nanismo eram consideradas “divinos” e dignos de cargos e posições elevados na hierarquia social. A deusa egípcia Bes era inclusivamente representada como uma anã (Horstmann, P. 1949). Durante a Idade Média, havia ainda distinção entre os chamados “anões-verdadeiros” e “anões-falsos”, sendo que os verdadeiros eram aqueles que possuíam acondroplasia e, como tal, possuíam os membros desproporcionais relativamente ao resto do corpo. A baixa estatura nem sempre era associada como um traço invulgar, uma vez que o povo, no geral, possuía também baixa estatura devido à deficiente alimentação. Contudo, com o avançar da Idade Média pela Europa, o termo “anão” é conspurcado e passam a ser vistos tanto como bobos como atrações circenses. A ligação dos “anões” ao misticismo e ao folclore parece provir dos contos nórdicos medievais, onde a imagem do anão nos surge associada também a uma “corcunda” característica, sendo o “anão” uma figura não-humana, semelhante ao chamado “duende” ou “elfo”. Aquando do Renascimento, os anões eram explorados nas cortes reais e sujeitos a uma reprodução forçada. Aqueles que não residiam em edifícios nobres, eram muitas vezes alvo de alegações injustas ou forçados a viver no isolamento. Só no século XIX é que o nanismo pôde ser estudado e clarificado seriamente em termos científicos, pondo fim a toda uma série de preconceito fundamentado em histórias fantasiosas.
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Sangrar para impedir a morte ou até à morte?
Roose Bolton é uma figura sinistra e cruel – mais que não fosse pela sua alcunha “Lorde Sanguessuga”. Pertencente à casa Bolton, Roose é adepto de sangrias regulares com recurso a sanguessugas, de forma a evitar doenças e a manter uma boa saúde.
As sangrias são uma das técnicas médicas mais antigas e praticadas em todo o mundo, existindo registos de sangrias efetuadas há 3000 anos atrás. Esta prática atingiu o apogeu com o início do século XIX, onde conheceu também o seu declínio, sendo hoje não uma terapêutica ampla e exclusivamente utilizada mas um recurso alternativo. Se a prática da sangria teve origem na crença da limpeza de impurezas e excessos da alma e do corpo pelo sangue, ela está também associada à “saída” de demónios do organismo pelo derrame do fluído vital. A utilização de sanguessugas como método de drenagem sanguínea facilitado e indolor surge representada em pinturas murais datadas de 1400 a. C. Contudo, a venissecção foi o método preferido até ao século XIX, de tal forma que existiam regras e “normas” para a sangria, como aquelas descritas por Ambroise Paré, em 1643. Com a ampla utilização de sanguessugas durante o século XIX, homens saudáveis ingleses eram sangrados sempre que iam ao mercado, no âmbito de uma medicina preventiva da época. Mais ainda, a procura de sanguessugas tornou-se de tal forma popular que várias espécies de sanguessugas se encontram ainda sob risco de extinção (Seigworth, G. Bloodletting Over the Centuries. 1980)
[pullquote align=”right”]Apesar de frequentemente usada, a sangria tinha também o seu lado sinistro. Não só debilitava aqueles que, já doentes, sofriam o sangramento como, muitas vezes, eram efetuadas em excesso, resultando na morte do paciente. [/pullquote]E porquê sanguessugas? Fazia parte do senso comum da Antiguidade que a sanguessuga auxiliava grandemente o médico que tentasse fazer uma sangria – o sangue fluía em maior abundância, permitindo, em épocas não completamente iluminadas, “deixar sair todos os maus espíritos”, e, noutras, uma diminuição da febre e restantes sinais inflamatórios. Em ambas as situações, o resultado final pretendido era a cura do doente. A investigação científica atual aponta a sua constituição salivar destes “amáveis” parasitas como culpado pelo uso e abuso por parte dos médicos durante toda a História. Alguns dos seus componentes mais importantes e as suas interações hematológicas encontram-se na tabela abaixo, adaptada de Zaidi, S. A Systematic Overview of the Medicinal Importance of Sanguivorous Leeches, de 2011.
- [list type=”arrow”] Hirudina – Possui um efeito inibitório para a trombina, sendo semelhante à heparina
- Calina – Atua no colagénio, inibindo a agregação plaquetária induzida pelo mesmo e interfere com o fator de von Willebrand
- Apirase – Inibidor não-específico da agregação plaquetária pela sua ação ao nível da adenosina 5’-difosfato, do ácido araquidónico, do factor de ativação plaquetária e da epinefrina
- Decorsina – Antagonista proteico da glicoproteína IIb-IIIa e potente inibidor da agregação plaquetária
- Hirustasina – Liga-se à calicreína e inibe o factor X.
Pela tabela compreendemos que a saliva de algumas espécies de sanguessugas (especialmente Hirudo medicinalis) é rica em agentes anticoagulantes e que, como tal, pode voltar a ser amplamente explorada no campo médico – desta vez, na área da farmacologia.
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Médicos, feiticeiros ou algo pelo meio?
A maegi não era considerada uma “médica”, mas antes uma “mulher-sábia”. Esta distinção remonta, novamente, à Idade Média, onde, além de, muitas vezes, no caso das mulheres, qualquer prática médica ser associada inevitavelmente a bruxaria, era clara a distinção entre a prática dita médica e monástica e a prática médica dos curandeiros de rua. Com o avançar da Alta Idade Média, a cirurgia foi inclusivamente afastada dos Mosteiros no Concílio de Tours de 1163 (Ecclesia abhorret a sanguine) e passou a ser da responsabilidade de barbeiros/cirurgiões. Também vários dos livros de cirurgia foram queimados e banidos das bibliotecas.
A educação de Mirri Maz Duur era, sem dúvida, pouco ortodoxa. A mãe tinha-lhe ensinado “canções e feitiços” que ajudavam no tratamento de maleitas e como fazer “fumos sagrados e unguentos das folhas, raízes e bagas”. A sua formação “médica” continuou junto de magos em Asshai da Sombra, onde aprendeu vários costumes curandeiros de outros povos. Menciona ainda que um meistre lhe abriu um cadáver para que ela pudesse estudar “todos os segredos que se escondem sob a pele”. Rimo-nos sem maldade deste “curso de Medicina” extremamente alternativo e improvável, mas, se nos relembrarmos que a prática da dissecção foi proibida e condenada durante o Império Romano (de domínio pagão) e em países como a Inglaterra até ao século XVI, talvez a tenhamos em melhor consideração. Por muito estranho que possa parecer, a dissecção não era completamente proibida durante a Idade Média – pelo contrário, até ao século XIII, esta prática era relativamente corrente, sabendo-se hoje que nenhuma proibição universal da dissecção foi emitida por entidades religiosas durante a Idade Média. Contudo, esta prática era realizada de uma forma pouco eficaz, ciosamente agarrada aos manuscritos galénicos e sem qualquer tipo de inovação.
Um outro tipo de médico presente em A Guerra dos Tronos é o Meistre. Mais do que médicos, os meistres eram estudiosos que dedicavam a sua vida não só à cura como ao oculto e ao misticismo. O seu grau de conhecimento era evidenciado pelo tamanho das correntes metálicas que envergavam ao pescoço e sua área de estudo era assinalada pelo tipo de metal. As artes médicas, por exemplo, eram assinaladas pela prata. Os Meistres têm também uma hierarquia estratificada. Existem os Arquimeistres, os Grão-Meistres, os Meistres, os Acólitos e os Noviços, por ordem decrescente de poder. Nas suas artes curativas são referidos o uso e fabrico de poções, cataplasmas e cânticos. O Meistre Colemon, da Casa Arryn, encarregue de Robert Arryn, filho de Jon Arryn, o antigo “Mão do Rei”, costumava sangrar esta criança frequentemente e dava-lhe um analgésico potente (sweetsleep) durante as suas crises de epilepsia.[hr]
A Guerra dos Tronos é uma obra de ficção e, no entanto, não podemos negar que muita da cultura mundial, tanto passada como presente, tem grande influência na visão de George Martin. E a Medicina não é exceção. No meio de curandeiras e poções que nos parecem estranhas e “dignas de histórias”, esquecemo-nos por vezes que aquilo que é agora história foi antes uma prática médica.