Oanfiteatro é de puro branco: os azulejos, a tinta que cobre as paredes, as batas médicas e os uniformes das enfermeiras; o restante é preenchido pelos reflexos metalizados da maca e instrumentos. Por fora deste espaço resguardado, encimam os desconfortáveis balcões de madeira gasta, uma dicotomia desagradável para aqueles que assistem à cirurgia que começou. É um caso de placenta prévia, o sangue vermelho escuro cobre os lençóis, o chão e as mãos dos cirurgiões, o choque é evidente e forte. Trata-se de uma produção de contrastes e dá-nos as boas-vindas à epifania médica do século XX.
Pela mão da Cinemax e sob a direcção de Steven Soderbergh e música de Cliff Martinez, somos transportados para uma nova realidade. Talvez seja um cliché afirmar isso de um drama de época mas, através das lentes miópicas e midriáticas de Soderbergh e com a soberba banda sonora de Martinez, o efeito é completo e perfeito.
1900. Nova Iorque espraia-se perante nós, as suas avenidas largas, pontuadas pelas ocasionais árvores, os bairros pobres de apartamentos encafuados e os imponentes prédios, casas senhoriais e igrejas, resguardadas nas suas vedações de ferro, ainda um vislumbre da cidade que um dia dominaria os céus acima. E, como seria de esperar numa cidade que fervilha de vida: as pessoas, tão distintas do que hoje somos, mas comuns e vulgares como todos nós. Serão os indivíduos que compõem esta produção que a tornarão num cativeiro para os olhos e ouvidos. Não irão conseguir largá-la, a curiosidade médica e humana cativará o estudante em nós, simplesmente por não conseguirmos abandonar uma peça sem conhecer o seu desfecho.
Nesta magnífica obra, contamos com a presença de Clive Owen, na personagem do irrefreável e ilustre John W. Thackery, médico, mente criativa na inovação do campo cirúrgico, com o ocasional problema narcótico. Com ele e a equipa do ficcional hospital Knickerbocker (“The Knick” para os amigos), somos confrontados com uma realidade médica impensável nos dias actuais, mas que foi a pedra basilar para a construção da medicina moderna de diagnóstico em que assentam hoje os serviços de saúde.
Thackery, baseado no histórico William Stewart Halsted, é o novo apontado cirurgião-chefe do Knick (após o seu predecessor ter tido uma saída profissional prematura e abrupta) e batalha contra a adicção por cocaína e ópio com a ambição que tem de ser o primeiro entre os seus pares na vanguarda das descobertas médicas; tarefa que se torna complicada com o súbito aparecimento do Dr. Algernon Edwards, por sua vez fundamentado na pessoa de Daniel Hale Williams. Algernon terá de lutar duas vezes mais pelo respeito do pessoal hospitalar, maioritariamente branco, e para sobreviver numa cidade constantemente à beira do precipício racial.
A estes junta-se um leque incrível de caricaturas/figuras:
Herman Barrow, o administrador do Knick que luta pelo lucro hospitalar num bairro pobre, constantemente em sarilhos com os fundos financeiros do hospital, por ele próprio desviados e mal aplicados.
Cornelia Robertson, a directora do Gabinete de Assistência Social que recentemente substituiu no Conselho de Directores o pai, o Capitão August Robertson, o maior financiador do hospital. Pouco respeitada numa posição tradicionalmente ocupada por homens, Cornelia lutará para se fazer ouvir, mas principalmente para fazer o bem e ajudar todos os doentes que lhe chegam.
Tom Cleary, o desonesto condutor de ambulâncias que rouba os enfermos a outros hospitais e cobra, descaradamente, a Barrow, uma taxa por cada um. Se eventualmente o enfermo morrer a caminho, não poupa esforços para os aliviar das suas posses terrenas.
A Irmã Harriet, católica e parteira, responsável pelo orfanato associado ao Knick, muitas vezes intervém em cirurgias envolvendo grávidas com os seus ensinamentos pouco conhecidos dos homens, mas guarda um segredo que é visto aos olhos da Igreja e dos crentes como algo terrível.
Pela primeira vez, os Estados Unidos da América ultrapassam a Europa na Revolução Industrial, e as descobertas médicas acontecem todos os dias. Trata-se de uma época maravilhosa para as ciências médicas, a cirurgia deixa de ser a sentença de morte dos barbeiros-cirurgiões e passa para os cirurgiões especialistas. É um momento incrível, com os trabalhos de Edison, Halsted e Roebling, o mundo conhece a electricidade e o raio-X e, pela primeira vez na História, a sociedade económica baseia-se na posse de bens imateriais: é o novo conhecimento aplicado que se tornará a roda da economia.
Com a invenção de novas técnicas, cirurgias que ceifavam muitas vidas (cirurgias à hérnia inguinal, ao aneurisma aórtico e por placenta prévia) tornam-se mais seguras. O cirurgião é, assim, mais que um médico: é um inventor, um visionário, que toma para si o trabalho de ser melhor, inovar o que é tradicional e expandir o seu repertório de saber.
Mas não só do incrível se vive. A calamidade existe na forma da febre tifóide, da sífilis e da meningite e nem o jovem nem o adulto lhe escapam. O conhecimento da fisiopatologia é precário e pouco se consegue fazer por estas vítimas que não seja dar-lhes conforto no inevitável. Surgem assim as elevadas taxas de mortalidade, a saúde pública é ainda uma ideia que ninguém compreende e aceita, o bem-comum não existe tão assente como deveria e as injustiças sociais são o assunto do dia.
Restringidos pela difícil mente iletrada e colectiva do povo, que prefere os valores tradicionais e as curas de família, torna-se complicado aplicar com eficácia as múltiplas descobertas que ocorrem. Explicar a uma pessoa sem formação a necessidade de lavar as mãos porque os germes existem, ou que é portadora de uma doença sem apresentar sintomas, torna-se uma tarefa esgotante. Ainda mais complicado será explicar a cirurgiões, que durante décadas operaram com uma única técnica, que estão errados e que outra técnica é substancialmente melhor.
Paralelamente ao realismo atroz da época, somos confrontados com inquietações pessoais e desconcertantes da toxicodependência. Tendência bastante comum neste período (se estivermos dispostos a despender o nosso rendimento), a toma de ópio e de cocaína é o escape ideal das massas para o surreal. Quando se trata de profissionais de saúde, ainda mais desconcertante o cenário se torna: a necessidade de um estimulante para operar ou pensar ou a angústia de perder os doentes levam ao limite o individuo que deveria representar a imagem de saúde perfeita; e é o inevitável resvalar final que afunda o jovem médico que nós ansiamos ser.
A Frontal convida-vos a desvendar este novo drama médico, em nada semelhante aos actuais. Espera-vos uma magistral composição de imagem e som como poucas outras. Enquanto descobrimos as atribulações médicas na viragem de um século único para o avanço da ciência, somos forçados a pensar no papel do próprio médico na sociedade. Somos considerados ilustres e sem par no panorama público, ou assim o fomos durante décadas. Todavia esquecemos muitas vezes as origens dessa posição. Estamos instruídos a estudar a História para não repetirmos os erros do passado; contudo, às vezes, devemos entender a História para conhecermos mais sobre nós próprios.