Porque protestam os médicos?

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Dois anos após a última greve, os médicos voltam às ruas. Os motivos podem não ser os mesmos, mas a bandeira agitada mantém-se: a defesa do SNS e dos seus utentes. Neste contexto, a FRONTAL procura dar resposta a uma simples pergunta: porque protestam os médicos?

 

Nova batalha de um conflito antigo

[dropcap]U[/dropcap]ma greve da classe médica não é algo comum, antes um acontecimento extraordinário que geralmente provoca muita agitação, não só nas redações noticiosas, como também nos corredores do Ministério da Saúde. Tradicionalmente, os médicos saem pouco à rua, mas quando o fazem, fazem-no em força e conseguem efetivamente forçar o Governo a alterar as suas políticas. Agora, o atual executivo enfrenta a segunda paralisação do seu mandato, num braço-de-ferro que parece evoluir em direção ao extremar de posições.

Tradicionalmente, os médicos saem pouco à rua, mas quando o fazem, fazem-no em força e conseguem efetivamente forçar o Governo a alterar as suas políticas

Julho de 2012 foi a data da última greve. Por esta altura, o clima em Portugal era o ideal para uma jornada reivindicativa – as ruas fervilhavam de sucessivas manifestações, animadas por movimentos como os d’Os Indignados e Que se Lixe a Troika, em pleno período de implementação das mais duras medidas do “Memorando de Entendimento”. A classe médica não se deixou ficar de fora e respondeu em força ao apelo emitido pelas duas principais estruturas sindicais – a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) e o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) – apoiadas pela Ordem dos Médicos e acompanhadas nos protestos pelos próprios estudantes de Medicina. As fileiras estavam cerradas e um grito de unanimidade exigia a defesa do SNS, reivindicando-se a clarificação e proteção das carreiras médicas (que os Sindicatos apontam como a espinha dorsal do SNS).

Na greve de 2012, Ordem dos Médicos, SIM e FNAM juntaram-se para apelar, a uma só voz, à defesa do SNS

De uma forma geral, a jornada de luta foi bem-sucedida: o Ministério da Saúde cedeu em vários pontos, instaurando-se assim um período de paz entre ambas as partes, assente numa postura de diálogo e compreensão por parte da Tutela. Mas esta tranquilidade não podia durar para sempre e, dois anos volvidos, o cessar-fogo foi quebrado.

A revolta do São João

As críticas à governação por parte dos representantes médicos não são uma novidade. Ao longo dos quase quatro anos de governação, o atual Ministro da Saúde tem tido tudo menos uma gestão de pasta pacífica. Porém, entre os protestos das Farmácias – setor “sacrificado” pela política de redução de custos com medicamentos – e as críticas mais ou menos constantes por parte de várias personalidades ligadas à Saúde, a autoridade de Paulo Macedo (aliás, um dos representantes do Governo mais elogiados da Esquerda à Direita) parece nunca ter sido verdadeiramente ameaçada; até agora.

O período idílico terminou com a ameaça de demissão em bloco dos diretores clínicos do Hospital de São João. As razões desta “revolta” não foram inteiramente explicadas à comunicação social, mas é certo que surgiram a partir de uma progressiva redução de autonomia no que toca à gestão hospitalar. A burocratização dos processos de decisão até a um nível clínico, associada a uma dificuldade constante na contracção de pessoal e aquisição de novos materiais foram apontados como barreiras claras ao normal funcionamento dos serviços.

Uma progressiva redução de autonomia no que toca aos processo de decisão parece ter levado à ameaça de demissão

Curiosamente, o clima de contestação parece não ter sido transposto para a atual greve, com níveis de adesão abaixo do esperado. A reportagem do Público narrava um dia normal no São João, excetuando a presença das câmaras das estações televisivas. As maiores carências ocorreram naturalmente nas consultas, com o registo de vários atrasos e faltas de vários médicos, mas apenas um Serviço – o de Medicina Genética – encerrou por completo. As discrepâncias entre a adesão à greve e anteriores ações de protesto é, contudo, algo por explicar.

O fim das negociações

O motivo que parece ter feito estalar o verniz foi o anúncio de um Código de Ética para os trabalhadores do SNS. Este documento, à partida inócuo no que toca a polémicas, causou a revolta devido a um artigo polémico, o qual parecia prever a instauração daquilo que os Sindicatos apelidaram de “Lei da Rolha”. Efetivamente, a versão original do documento impedia os funcionários de instituições de Saúde do setor Estado de fazerem declarações públicas que pudessem lesar a imagem das suas organizações. Uma referência explícita ao uso dos meios de comunicação social fez levantar um coro de críticas que se poderá resumir numa só palavra: censura. O Ministério da Saúde procurou justificar-se com a defesa dos interesses dos Hospitais e prometeu rever o artigo polémico, mas o mal, para todos os efeitos, estava feito.

A falta de material é uma das razões apontadas pelos médicos como motivo para a greve Fotografia: Inês Amaral
A falta de material é uma das razões apontadas pelos médicos como motivo para a greve Fotografia: Inês Amaral

Mas mais do que um artigo controverso, o que parece ter sido decisivo na saída à rua por parte de muitos médicos foi um clima de insatisfação latente e indistinta. Apesar da relativa proteção da Saúde dos cortes implementados transversalmente em todos os setores do Estado (Paulo Macedo apelou a um “regime de exceção” para a sua pasta), os médicos foram dos funcionários públicos que mais sofreram das reduções salariais, entre cortes às horas extraordinárias e agravamento do IRS. Tal, naturalmente, está relacionado com o facto de se incluírem entre os mais bem pagos (dados) do Setor, realidade que não impede o crescimento de um sentimento de desalento por parte dos profissionais que deram um grande pedaço da sua vida ao SNS. Adicionalmente, não é possível desassociar a insatisfação com um progressivo agravamento das condições de trabalho e degradação dos serviços, associados à escassez recorrente de material, instabilidade dos Sistemas de Informação e a já referida precariedade da gestão de meios por parte das estruturas locais. Em declarações à Lusa, Jorge Neves, dirigente da FNAM, sintetiza da seguinte forma esta inquietação: «Os médicos sofrem hoje múltiplas restrições no seu desempenho profissional, estão confrontados com limitações ao exercício pleno das suas funções profissionais e sentem que, cada dia que passa, a qualidade assistencial se vai degradando e a capacidade de resposta dos serviços vai diminuindo».

Uma greve diferente 

A greve que ontem terminou não foi igual à de 2012. Nem nos objetivos, nem nos contornos, nem provavelmente nas consequências. Se há dois anos o protesto recebeu o apoio massivo dentro e fora do mundo médico, o mesmo não se verificou agora. A divisão iniciou-se, entre os profissionais da bata branca, com a demarcação do SIM do protesto convocado pelo outro grande grupo sindical, a FNAM. A primeira organização advoga não existirem razões suficientes para a convocação de uma greve, não tanto de um ponto de vista “reivindicativo”, mas mais estratégico. De facto, o SIM subscreve no geral as críticas enunciadas pela FNAM, defendendo porém que o Ministério da Saúde tem cumprido no geral o acordo estabelecido em 2012, preferindo portanto a via negocial ao extremar de posição agora assumido pela sua congénere sindical.

O SIM prefere a via negocial ao extremar de posição agora assumido pela FNAM

A primeira organização, que subscreve de uma forma geral as críticas enunciadas pela segunda, demarca-se portanto desta greve ao preferir a via negocial em detrimento do extremar de posições assumida pela sua congénere sindical. De facto, o SIM, segundo as palavras dos seus dirigentes à Lusa, «não desiste de dialogar com o Ministério da Saúde, porque entende que esse é o caminho que melhor defende e serve os interesses dos médicos seus associados», acautelando ainda que a Tutela tem cumprido de forma geral o acordo firmado em 2012.

Blocos operatórios vazios devido a cirurgias canceladas foi uma das consequências da greve de 8 e 9 de Julho. Fotografia: Inês Amaral
Blocos operatórios vazios devido a cirurgias canceladas foi uma das consequências da greve de 8 e 9 de Julho. Fotografia: Inês Amaral

E qual foi o resultado desta divisão no que toca aos números de adesão à greve? Tal é uma questão difícil de responder, com o surgimento de estatísticas dissonantes entre os dois lados da barricada. Na tarde do primeiro dia de greve, um artigo do Público ilustrou bem esta dissonância, referindo que os dados apresentados pela FNAM (90% de adesão, 5% abaixo da de 2012) contrastaram com «relatos de manhãs relativamente tranquilas nos hospitais e centros de Saúde (…) e com as unidades a avançarem, através dos seus dirigentes, com adesões menos expressivas do que há dois anos.». De facto, no maior Hospital de Lisboa, o Santa Maria, o número de grevistas terá chegado aos 300, num total de 832 médicos escalados (32% do total) e em Coimbra, segundo declarações do Diretor clínico do CHUC, José Pedro Figueiredo, ao Observador, «houve serviços onde a greve teve algum impacto, mas houve outros onde este foi praticamente nulo».

As jogadas políticas

A ressaca da greve de sete e oito de julho é algo difícil de prever, mas provavelmente não resultará no apaziguamento da tensão tal como aconteceu há dois anos. Em 2012, os Sindicatos “forçaram” o Ministério de Saúde a sentar-se na mesa de negociações e a aceitar algumas das propostas apresentadas. Agora, com o SIM promovendo uma política de diálogo, o Governo tem já um parceiro com quem dialogar, statement implícito nas declarações de Paulo Macedo ao Económico, referindo não compreender existirem razões para a realização de uma greve. Mais terá dito que a convocação da mesma não passou de uma jogada política combinada com CGTP e englobada numa estratégica mais ampla por parte da central sindical de forma a colocar pressão no Executivo liderado por Passos Coelho e que em nada ajuda aqueles que os médicos pretendem defender: os doentes.

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Mas jogadas políticas à parte, terão os médicos razões efetivas para protestar? As duas centrais Sindicais concordam que sim, apresentando um caderno de propostas conjunto na última reunião com a Tutela. A Ordem dos Médicos junta-se igualmente às críticas, lançando o alerta sobre a ameaça imanente que Paulo Macedo representa para o SNS. Apesar da mantra agregadora de defesa do SNS, não parece existir um pólo central unificador nas exigências da FNAM que despoletaram a greve, antes um conjunto disperso de pequenas e grandes questões que, segundo esta organização, estão a pôr em causa as carreiras médicas e o próprio SNS: entre outros aspetos, apelam à anulação de diversas portarias, nomeadamente as associadas com a reorganização da rede hospitalar (que ditará o encerramento de diversas unidades por todo o país), a indexação da prática da Medicina do Trabalho às já atarefadas funções dos Médicos de Família, ou a imposição do horário de 40 horas como critério de progressão na carreira.

As reações

O Ministro da Saúde não compreende as motivações da Greve dos Médicos

A sociedade portuguesa não ficou indiferente a esta greve. Os principais prejudicados por esta – os utentes do SNS –, de uma forma geral e apesar de alguma indignação momentânea face ao cancelamento de consultas, parecem concordar com o protesto dos médicos. Não de estranhar, considerando a proximidade que muitos pacientes têm com o seu clínico e a relativa unanimidade em relação ao SNS enquanto uma das mais sólidas criações da Democracia – e cujos preceitos fundamentais os animadores do protesto pretendem defender. Esta benevolência face aos grevistas não é, porém, partilhada por muitos líderes de opinião, como José Manuel Fernandes, que, na sua crónica d’O Observador, defende que «A “defesa do SNS” não passa do manto usado para cobrir matérias puramente corporativas». As vozes críticas acusam os médicos de dramatizarem a sua situação, considerando pertencerem a uma das poucas classes (senão mesmo a única) onde o pleno emprego ainda se verifica no nosso país.

«A “defesa do SNS” não passa do manto usado para cobrir matérias puramente corporativas», advogam os críticos à greve dos médicos

Mário Jorge Neves, da FNAM, não esconde esta vertente “corporativista” dos protestos. Refere mesmo que uma das razões para a convocação da greve foi o não cumprimento por parte do Governo «das [normas sobre] folgas e descanso compensatório e ilegalidades na imposição do horário de 40 horas», questões de facto do foro laboral. A defesa das carreias médicas é efetivamente uma das bandeiras agitadas, com o argumento de que sem o seu enriquecimento e proteção não é possível termos um Sistema de Saúde de excelência.

A visão dos estudantes de Medicina

As questões levantadas pela atual greve são naturalmente do interesse de todos os estuantes de Medicina, não só pelo hipotético impacto na Saúde da população portuguesa, mas também nas perspetivas profissionais futuras. Em declarações à FRONTAL, Duarte Sequeira, Presidente da ANEM, assume a atenção que esta associação prestou aos acontecimentos mais recentes, particularmente no que toca à formação médica, a qual define como «ponto-chave na defesa de um SNS sustentável e que sirva as necessidades do país». As dúvidas levantadas em 2012 quanto ao acesso de todos os atuais estudantes à formação especializada, mantêm-se na ordem do dia, sendo ponto comum nas exigências dos sindicatos, Ordem dos Médicos e ANEM. Esta última mantém como prioridade impedir a criação da figura de «médicos indiferenciados”em Portugal (portanto, sem formação pós-graduada)».

Para a ANEM é impensável a existência de médicos indiferenciados em Portugal e lutamos para que não se reúnam condições que favoreçam a criação de uma tipologia de médico com menores qualificações, desaconselhada internacionalmente, e para a qual não há enquadramento profissional na Saúde em Portugal.

«As capacidades formativas das Escolas Médicas encontram-se em progressiva redução, por força do numerus clausus vigente e das restrições orçamentais no Ensino Superior, e um elevado número de estudantes poderá não ter acesso à formação pós-graduada por impossibilidade de absorção de tamanho número de candidatos por parte do Internato Médico», explica Duarte Sequeira.

O fim do SNS?

Uma das palavras mais repetidas durante a contestação é a de que os médicos fizeram greve para proteger os doentes. A defesa do SNS e a promoção da Saúde Pública face aos ataques do atual Governo parece ser a linha orientadora de muitos dos que saíram à rua nos últimos dois dias. Mas até que ponto a crise – e a ação do Ministério da Saúde no seu decurso – têm vindo a agravar os principais indicadores de Saúde em Portugal?

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O relógio estará a contar os minutos para o fim do SNS? Fotografia: Inês Amaral

Numa primeira análise dos números, entre os quais a evolução das taxas de mortalidade infantil, perinatal e neonatal, verifica-se que estes mantêm, nos últimos anos, a tendência de crescimento negativo que se tem vindo a verificar historicamente. Estes são dados fundamentais na discussão da qualidade da Saúde e parecem dar razão ao Ministério da Saúde quando afirma que a crise não está a afetar a Saúde dos portugueses. Por outro lado, muitos afirmam não ter ocorrido um agravamento destes preciosos indicadores precisamente devido à capacidade tampão do SNS e do esforço dos profissionais de Saúde, capacidades estas que poderão estar no limite. Adicionalmente, o Observatório Português para os Sistemas de Saúde (OPSS) lançou recentemente o seu Relatório da Primavera, onde, em linha do publicado em anos anteriores, deixa pesadas críticas à governação PSD-CDS. Advogando que “os grandes números e a estatística das médias camuflam o que se passa nas franjas”, defendem que a crise tem deixado marcas profundas na Saúde dos portugueses, usando como arrugamento o agravamento dos indicadores relativos à Saúde Mental, doenças infeciosas, ou diabetes e ainda passando um cartão vermelho à política centralizadora e burocratizante do Governo. 

O Observatório Português para os Sistemas de Saúde lançou recentemente o seu Relatório da Primavera, onde deixa pesadas críticas à governação PSD-CDS

O fim do SNS, ao contrário do predito, é uma realidade pouco provável no futuro próximo. Apesar de uma tendência favorável ao desenvolvimento da iniciativa privada (IPSS e grupos de Saúde privados) nas medidas tomadas pela Tutela, o SNS mantém-se como uma pedra-basilar da Democracia Portuguesa e um dos projetos que mais apoio gera da Esquerda à Direita – não é de prever, portanto, e ainda mais em final de mandato, a implementação de um plano de destruturação do mesmo por parte do Ministério de Paulo Macedo. Tal significa não existirem razões para exigir mais das Políticas Públicas de Saúde? Naturalmente que não: Portugal, apesar dos progressos, mantém carências fundamentais na Saúde, apresentando um desempenho sub-ótimo a nível, por exemplo, da Saúde Mental ou do tratamento de infeções respiratórias (cuja mortalidade tem vindo a subir nos últimos anos). O nível de desperdício no Setor Público, as dificuldades de Financiamento, os problemas de gestão e, logicamente, a definição das Carreiras Médicas são apenas alguns dos problemas que a Saúde vai continuar a enfrentar nos próximos anos, e a cujo debate todos os profissionais da área não se poderão furtar.

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O Luís Afonso nasceu em Coimbra, mas sempre sonhou ser de Mortágua. É estudante do 6º ano de Medicina, mas gostava era de ter um bar de praia em Copacabana e um canudo de Línguas Orientais na algibeira. Se o virem num concerto de Coldplay com ar aluado, provavelmente enganou-se no caminho ao sair de casa para comprar bolachas com chocolate, situação que, aliás, lhe acontece frequentemente. Quase ganhou o torneio de Trivial Pursuit da Queima das Fitas, só que errou a pergunta «Quantos dias sobrevivem os Glóbulos Vermelhos?». A partir daí a sua vida foi sempre a descer.

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