Estaremos prontos para um transplante cefálico?

Um neurocirurgião italiano de 50 anos está convicto de que não há motivos para continuar a adiar o primeiro transplante de cabeça num ser humano, procedimento que pretende por em prática já em 2017, numa mega intervenção que envolverá 150 médicos divididos por duas equipas cirúrgicas ao longo de 36 horas e custará, em média, 9 a 13 milhões de dólares. Será um progresso para a humanidade equiparável à chegada do homem à Lua? Ou continuará a ser uma utopia? A Canavero entusiasmo, pelo menos, não lhe falta, mas só o tempo nos dirá se ele de facto é um revolucionário, ou apenas um sonhador.

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O impossível de hoje será o possível de amanhã.

Tsiolkovsky AT, considerado o pai da Astronáutica (1857-1935)

corajoso

O cirurgião, Sergio Canavero, é Italiano. O corajoso, Valery Spiridonov, é russo. Spiridonov tem 29 anos e é portador do síndrome Werdnig-Hoffman, pertencente a um grupo de doenças conhecidas como atrofias musculares espinhais (AME). A síndrome Wednig-Hoffman é uma doença autossómica recessiva, causada por uma mutação nos genes de sobrevida dos neurónios motores, localizada no cromossoma 5q13, e que se caracteriza pela atrofia e fraqueza muscular progressiva, com perda gradual de funções essenciais, cuja evolução para morte precoce é elevada. São raros os casos em que estes pacientes atingem o primeiro ano de vida. Deste modo, Spiridonov não sabe quando terminará esta luta contra o tempo, declarando que não tem nada a perder.

Os seus últimos anos foram passados à frente do computador, a única forma de poder exercer uma profissão, já que as suas debilidades físicas são evidentes, dedicando-se a desenvolver software educacional. Diariamente, recebe ajuda da mãe e de um vizinho. Chega a comparar-se com os astronautas dizendo “Tenho a certeza que o primeiro astronauta sentiu medo, mas para mim é algo que deva ser feito, porque se nunca for tentado, nunca acontecerá”. É por este espírito pioneiro que o seu destino se cruzou com Sergio Canavero. Apesar dos inúmeros pedidos, Spiridonov foi escolhido por se encontrar no estado de evolução da doença ideal para o transplante.

O cirurgião

Canavero, médico italiano de 50 anos, anunciou publicamente a sua intenção de realizar o primeiro transplante de cabeça em 2017, através de uma anastomose cefalosomática, procedimento que consiste na transferência cirúrgica de uma cabeça saudável para um corpo decapitado cirurgicamente sob condições de hipotermia profunda. A data exacta da cirurgia ainda está por decidir, dependendo do tempo que os 150 médicos envolvidos precisarão para se prepararem. O local escolhido é a Universidade Médica de Harbin, na China, e a duração estimada de 36 horas. O custo rondará os 9 e os 13 milhões de dólares e o financiamento é algo que não preocupa este grupo de cirurgiões, uma vez que para eles se trata de “uma questão humanitária”.

O que já se fez acerca de transplante cefálico?

Em 1970, Robert White (neurocirurgião Americano) e os seus colaboradores transplantaram com sucesso a cabeça de um macaco Rhesus para o corpo de outro, cuja cabeça havia sido retirada simultaneamente. O macaco sobreviveu 8 dias, não tendo sofrido nenhuma complicação. Alguns anos mais tarde White escreveu: ” … o que foi realizado no modelo animal – preservação hipotérmica prolongada e transplante cefálico – é plenamente realizável no Homem”. No entanto, ainda não existia tecnologia suficiente para ligar a medula espinhal, que funciona como uma auto-estrada para transmissão dos impulsos nervosos entre o nosso cérebro e o sistema nervoso autónomo, responsável pelos nossos movimentos. O uso de micropartículas selantes para fusão da medula poderá permitir a realização do procedimento em pleno século XXI.

Canavero apresentou dois artigos científicos da sua autoria, onde expõe a técnica que pretende utilizar e alguns pormenores técnicos relativos aos seus projectos, com os nomes de código Heaven e Gemini.

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O maior obstáculo técnico é, naturalmente, a reconexão das medulas espinhais do dador e destinatário. Segundo Canavero a tecnologia só agora está disponível para realizar a ligação, com a existência de materiais selantes.

Hipotermia Profunda

A única maneira de realizar uma troca cefálica no homem é baixar a temperatura do corpo do receptor e a cabeça do dador para uma temperatura tão baixa que permita desconectar e reconectá-los um ao outro, posteriormente, por uma segunda equipa cirúrgica. Depois de separados, o fluxo circulatório pode manter-se interrompido durante uma hora, decaindo a taxa metabólica cerebral para cerca de 10% do normal. A hipotermia profunda reduz o aparecimento de isquemia e dá tempo aos cirurgiões para reconectar os corpos. A experiência clínica em cirurgia cardíaca demonstrou que a interrupção circulatória com hipotermia profunda por 45 minutos não produz praticamente nenhum dano neurológico.

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Imagem retirada de White et al. 1971
Anastomose da Medula
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Imagem retirada de White et al. 1971

Segundo Canavero, a chave para a fusão da medula espinhal é o corte, na medida em que permite aproximar axónios cortados e a respectiva fusão com os homólogos distais. Esta fusão será feita graças a substâncias fusogénicas, sendo o mais conhecido, dentro dos polímeros inorgânicos, o polietileno-glicol (PEG), capaz de reconstituir imediatamente membranas de células danificadas pela lesão mecânica. O PEG é solúvel em água e não é tóxico no ser humano. Tem também capacidade de selar o endotélio e secar feridas durante os procedimentos de laminectomia. O PEG é de fácil administração e tem um histórico de segurança forte no ser humano. Em suma, são suficientes 2 minutos de aplicação de PEG para fundir axónios mielinizados cortados previamente em medulas espinhais completamente transeccionadas, o que permite a difusão de marcadores intracelulares ao longo dos segmentos reconectados e imediatamente recuperar a condução dos potenciais de ação interrompidos após a lesão. Ao ser injectado, o PEG atravessa a barreira hemato-encefálica e tem como alvo áreas de lesão neural, sem se acumular em tecidos intactos. A Quitosana, recentemente apontada como um agente melhor do que o PEG, é outra possibilidade. Trata-se de um biopolímero natural, facilmente encontrado em crustáceos e fungos, biocompatível, biodegradável, não tóxico e que tem sido usada como hemostático sendo facilitador de cicatrização. Este biopolímero possui propriedades superiores ao PEG: em solução salina estéril atua como um vedante de membrana potente e neuroprotector, dotado da capacidade de direccionamento e de formação de grandes agregados de fosfolípidos, um componente principal da membrana plasmática podendo ser uma possibilidade no procedimento devido à boa adesão do tecido, segurança e biocompatibilidade.

Como decorrerá a cirurgia?

O dador teria de ser um doente em morte cerebral, sensivelmente com o mesmo peso e histocompatível, saudável e sem doenças neurológicas. Após a intervenção, o doente permaneceria anestesiado durante três dias, e ao acordar teria a mesma voz, conseguindo andar no espaço de um ano.

Se o período de tempo assim o permitir, um protocolo de autotransfusão de sangue poderia ser promulgado para reinfusão após a anastomose.

O procedimento terá de ser realizado numa sala de cirurgia grande o suficiente para acomodar o equipamento de duas cirurgias, realizadas simultaneamente por duas equipas cirúrgicas separadas.

Ambos receptor e dador estarão entubados e ventilados através de uma traqueostomia. As sondas de temperatura serão posicionadas no tímpano, nasofaringe, bexiga e recto. Será também inserida uma cânula na artéria radial para monitorização hemodinâmica. Será necessária cobertura antibiótica durante todo o procedimento e, posteriormente, quando necessário. Poderá ser feita transplantação de outros órgãos por uma terceira equipa cirúrgica.

A cabeça é submetida a hipotermia profunda (aproximadamente 10 °C), enquanto o corpo receberá apenas hipotermia espinhal. A cabeça será fixada com um anel de fixação de três pinos, ou seja, vai ser literalmente “pendurada na estante” durante a cirurgia. O aparelho de suspensão permite que os cirurgiões sejam capazes de reconectar a cabeça de forma confortável.

As duas equipas, trabalhando em conjunto, fariam incisões profundas em torno do pescoço de cada paciente, separando cuidadosamente todas as estruturas anatómicas (C5/6) para expor as artérias carótidas e vertebrais, veias jugulares e coluna vertebral. Todos os músculos serão marcados com um código de cores para facilitar a posterior ligação. Além das incisões axiais serão feitos cortes para estabilização da coluna vertebral e acesso às carótidas, traqueia e esófago (a glândula tiróide do receptor é deixada in situ) e ao longo da margem anterior do esternocleidomastoideu.

Quais as questões éticas implicadas?

Algumas questões éticas têm sido levantadas e, sobre isso, o neurocirurgião escreverá em breve um artigo. Podemos questionar se um homem do qual subsista apenas a cabeça no corpo de outro seria a mesma pessoa. O cérebro comporta-se como uma janela através do qual visualizamos e percepcionamos o mundo. Não é apenas um órgão corporal – é considerado a sede da nossa identidade. Afinal, é este conjunto de “massa cinzenta” que nos define, que dá suporte ao nosso pensamento e que controla as nossas emoções. Assim sendo, apesar de, na melhor das possibilidades, Spiridonov adquirir um corpo novo, a sua mente e a sua face permanecerão quase que inalteráveis, acreditando que esta possa ser uma oportunidade única: “esta operação pretende restaurar a independência de pessoas com deficiências graves. Assim que o conseguir, vou poder descobrir como é a vida de uma pessoa saudável.”

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Canavero acredita que a sociedade esteja preparada para esta quimera e que poderá atenuar o sofrimento de muitas pessoas que vivem em condições deploráveis devido a doenças neurológicas, distrofias musculares graves ou mesmo tetraplégicos, muitos deles com a certeza de que ficarão presos a uma cama para o resto da vida. O italiano afirma que após este acontecimento a história humana mudará para sempre e a clonagem estará cada vez mais perto de se tornar uma realidade.

Queres saber mais sobre Canavero?

Canavero S., HEAVEN: The head anastomosis venture Project outline for the first human head transplantation with spinal linkage (GEMINI). Surg Neurol Int 2013;4:S335-42. Available free in open access from: http://www.surgicalneurologyint.com/text.asp?2013/4/2/335/113444

Canavero S. The “Gemini” spinal cord fusion protocol: Reloaded. Surg Neurol Int 2015;6:18. Available free in open access from: http://www.surgicalneurologyint.com/text.asp?2015/6/1/18/150674

https://www.newscientist.com/article/dn27703-surgeon-proposes-human-head-transplant-operation-as-soon-as-2017/

FERREIRA, N.; Síndrome de Werdnig-Hoffman, um relato de caso.

https://www.youtube.com/watch?v=uTHHT39A3Vw – “Who wants do live forever …young?”

Imagens alusivas à técnica retiradas de https://publichealthwatch.wordpress.com/2015/04/13/russian-man-set-to-undergo-worlds-first-human-head-transplant/

Imagens referentes a Canavero retiradas de:

https://www.newscientist.com/article/dn27703-surgeon-proposes-human-head-transplant-operation-as-soon-as-2017/

http://kotaku.com/meet-the-head-transplant-doctor-at-the-centre-of-a-meta-1699686702

Russian Man Set To Undergo World’s First Human Head Transplant

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