Prof. Doutora Helena Canhão – A Evolução como Mote de Vida

A Prof. Doutora Helena Canhão é Licenciada, Doutorada e Agregada em Medicina. Detém, também, um Mestrado em Investigação Clínica pela Harvard Medical School. É Professora Catedrática de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Escola Nacional de Saúde Pública. É, ainda, Chefe de Serviço de Reumatologia, no CHLC – Hospital Curry Cabral. Para além desta atividade, dedica o seu tempo a coordenar a Unidade de Investigação FCT Comprehensive Heath Reasearch Centre (CHRC), onde supervisiona vários projetos de investigação. A chave para o seu sucesso, segundo a própria, reside na palavra evolução.


FRONTAL: Voltando um pouco atrás no tempo: quando e como é que surgiu a motivação para Medicina?

Helena Canhão: Sou de Évora, onde também fiz o liceu. Sempre fui muito boa aluna, mas a verdade é que não sabia bem que curso seguir na altura. Os meus professores sugeriram Matemática, pois era algo muito lógico e intuitivo para mim. No entanto, eu gostava muito de aprender e de saber cada vez mais, e tinha uma grande curiosidade e interesse em conhecer o corpo humano. Contudo, nunca fui o tipo de pessoa que sempre quis ir para Medicina: simplesmente queria saber mais acerca desta área. Por isso, cheguei ao fim do secundário e decidi ingressar neste curso. Escolhi-o, sobretudo, por ser multifacetado e abrangente, permitindo-me cuidar de doentes, fazer investigação, ensinar ou trabalhar na indústria farmacêutica.

Os primeiros 2 anos do curso desapontaram-me bastante. Claro que gostava de algumas cadeiras, mas não gostava de decorar, das longas épocas de exames, e, sobretudo, não percebia a aplicação daquilo que estudava na prática clínica. Contudo, tudo mudou quando iniciei os anos clínicos, no meu 4º ano, e comecei a aplicar todo o conhecimento que tinha aprendido, pelo que me apercebi de que o que eu gostava mesmo era de contactar com os doentes, e comecei a adorar o curso.

A minha assistente, em Medicina, foi a Dra. Isabel do Carmo, endocrinologista, que me marcou muito ao longo do curso, e que me fez perceber que o que eu gostava mesmo era do desafio de chegar ao diagnóstico, da sistematização do conhecimento e da tomada de decisões terapêuticas para os doentes. Era algo mesmo muito fascinante para mim.

 

F: De seguida, optou por fazer o seu internato médico em Reumatologia. O que a motivou a escolher esta especialidade?

HC: Mais perto do final do curso percebi que queria mesmo exercer clínica dado que existem muitas dimensões que a tornam extraordinária: o contacto com os doentes é desafiante, desde a sua capacidade económica para comprar certos medicamentos, à confiança que depositam nos médicos.

Ao longo do curso, vamo-nos apercebendo se gostamos mais de especialidades médicas ou cirúrgicas. Sou uma pessoa desajeitada – não sei desenhar e tenho dificuldade até na topografia – portanto, por muito que a rotina de um cirurgião fosse interessante pela sua diversidade, a verdade é que concluí que as especialidades cirúrgicas não eram para mim. As especialidades médicas, por outro lado, tinham como desafios o diagnóstico e o tratamento, que era o que mais me atraía.

No 5.º e no 6.º anos tive uma bolsa de investigação da FCT e trabalhei com a Prof. Teresa Paiva, na área do sono e da neurologia, que foi uma área que me interessou muito, mas que, na altura, tinha pouco para oferecer aos doentes, pelo que acabei por excluí-la. Sobravam, então, três especialidades que me atraíam: a gastroenterologia, a reumatologia e a hematologia.

Quando fui ao IPO, hematologia desiludiu-me, por, mesmo assim, ter muitas mortes, pelo que a minha decisão dividia-se, então, entre gastroenterologia e reumatologia. A minha nota no exame de acesso permitia-me escolher o que eu queria e, na manhã do dia da escolha da especialidade, ainda não me tinha decidido. Contudo, quando chegou a minha vez, optei por reumatologia, dado que esta é uma especialidade desafiante ao nível do diagnóstico, mas que consegue oferecer terapêutica aos doentes.

 

F: Como é que surge, então, o seu percurso na investigação?

HC: Em suma, eu fiz os 6 anos do curso de Medicina no Hospital de Santa Maria. Depois, quis ter um contacto com um hospital periférico, pelo que fui fazer os dois anos de internato geral em Évora. No ano em que ingressei na especialidade, apenas abriram duas vagas de Reumatologia no país, uma no Hospital de Santa Maria e outra no Hospital de Garcia de Orta, sendo que escolhi a primeira, dado que tinha como objetivo ter uma formação muito completa, num hospital central.

Contudo, ao desenvolver a minha atividade em Santa Maria, um hospital universitário, comecei a fazer variadas atividades para além da clínica: enquanto interna, realizava muitos ensaios clínicos, pelo que comecei a fazer investigação; por outro lado, tínhamos, no serviço, muitos alunos, o que me levou, desde cedo, a dar aulas; fiz, também, reumatologia pediátrica, que me interessava muito.

Na minha altura, no meu serviço, não havia ninguém doutorado à exceção do Diretor de Serviço, o Prof. Dr. Viana Queiroz, e também não existiam programas doutorais como agora (tínhamos de ter o acordo do diretor de serviço para fazermos o doutoramento). O Professor Viana Queiroz propôs-me, então, fazer um projeto de doutoramento, que eu aceitei.

Assim, acabei a especialidade em 2000 e, enquanto ia fazendo o doutoramento, dedicava-me à clínica, lecionava aulas de bioquímica e de reumatologia e fazia investigação. Em 2008, defendi o meu doutoramento (demorei um pouco mais, porque tive dois filhos durante o internato) e dediquei o meu tempo, a 100%, à prática clínica.

 

F: E foi por volta desta altura que surgiu a oportunidade de estudar no estrangeiro, em especial de realizar o Mestrado em Investigação Clínica pela Harvard Medical School…

HC: Por volta dessa altura, sim, talvez um ou dois anos mais tarde, abriu um programa de Harvard que tinha uma componente de investigação, uma componente de divulgação e uma componente de formação, que mais tarde culminou na formação do Clinical Scholars Research Training (CSRT), que é um programa ótimo para ensinar investigação clínica. Como, naquele tempo, não havia investigação clínica estruturada, eu e um colega começámos a desenvolver um registo nacional de doenças reumáticas para termos estrutura para fazermos investigação. Começamos, igualmente, a tentar fazer cursos de investigação clínica.

Em 2010, surgiu um prémio, o Senior Clinical Award, para pessoas que já tinham alguma investigação estruturada e que podiam ter um projeto para ir para Harvard desenvolver investigação clínica. Assim, com esse Senior Clinical Award, a equipa em que eu estava recebeu um prémio de 400.000€ e que permitia, em primeiro lugar, o desenvolvimento de um projeto de investigação de 4 anos, dois dos quais em Harvard, e, em segundo lugar, o pagamento das propinas para fazer um mestrado de investigação clínica e para formar pessoas para depois irem para os seus países fazer investigação. No fundo, a ideia era formar médicos especialistas para poderem fazer investigação clínica e dar formação nesta área.

E, deste modo, apesar de já ter filhos e de ter um marido cá, acabei por ir 2 anos para Boston e ter uma formação específica, para que depois, quando voltasse, pudesse desenvolver um trabalho mais estruturado.

 

F: De que forma é que o seu trabalho se diversificou desde que fez o Mestrado?

HC: Em primeiro lugar, percebi que, como médicos, podemos escolher entre vários percursos: podemos fazer clínica, optar pela vertente do ensino, fazer investigação ou trabalhar no setor das companhias farmacêuticas. Estas são quatro áreas diferentes em que um médico pode trabalhar, muitas vezes, simultaneamente.

Algo que costumo transmitir aos meus filhos e aos meus alunos é a importância de podermos escolher que rumo tomar. Isto é vital pois, embora as nossas escolhas sejam limitadas pela liberdade dos outros, podemos tentar fazer o possível para termos sempre o maior número de oportunidades disponíveis e aproveitá-las quando nos parecer mais adequado.

Enquanto reumatologista, comecei a entrar numa rotina em que quase só fazia clínica, pelo que vi na investigação e no ensino uma oportunidade para quebrar essa mesma rotina. Quando fui para Harvard, muitas vezes me perguntavam como é que eu, que sempre fiz clínica, ia ficar tanto tempo sem ver pacientes. Contudo, a verdade é que eu via aquele intervalo da prática clínica como algo positivo e como uma oportunidade para experimentar coisas novas.

Assim, mesmo durante os dois anos em que estive em Harvard, sempre que tinha oportunidade e voltava a Portugal, ajudava os meus colegas no hospital e em projetos de investigação clínica com doentes portugueses, nunca tendo deixado de ter uma atividade clínica.

Quando voltei de vez de Harvard, continuei a dedicar-me a dar consultas. Contudo, quando a NOVA Medical School me convidou para estruturar a investigação clínica e para fazer uma ponte com a área de Saúde Pública, com exclusividade, decidi mudar de carreira, dedicando mais tempo à investigação e menos tempo à clínica.  Abri, também, a especialidade de Reumatologia no Hospital Curry Cabral e no Hospital dos Capuchos. Assim, a partir daqui, a minha atividade passou, essencialmente, por desenvolver o centro de investigação CHRC (Comprehensive Health Research Centre), dar aulas, fazer investigação, fazer clínica e abrir o serviço de reumatologia. Passados alguns anos, voltei a ganhar o gosto pela prática clínica, pelo que deixei de estar em exclusividade e comecei a trabalhar no Hospital CUF Tejo, 20 horas por semana.

Em suma, através deste percurso, em que andei sempre para a frente e para trás, procurei construir algo com robustez e estrutura para quem viesse a seguir a mim. Deste modo, quero reforçar que a nossa situação laboral não é estanque: há momentos em que a clínica nos pode ser mais desafiante, outros em que a investigação se nos afigura melhor, e existem até situações em que podemos querer fazer um bocadinho dos dois. Desde que se trabalhe com seriedade e se saiba o que se está a fazer, as pessoas confiam em nós e conseguimos desenvolver bem o nosso trabalho. Podemos criar estrutura, que não depende somente de nós e que outras pessoas podem continuar a fortalecer.

 

F: Para além da clínica, da investigação e do ensino, a Prof. Doutora Helena Canhão aventurou-se, também, no ramo das companhias farmacêuticas. De que forma é que o dia a dia do médico é diferente e qual é a sua experiência nesta área farmacêutica?

HC: Eu estive mais envolvida na realização de consultoria para as companhias farmacêuticas.

Nos anos 2000, fazíamos muitos ensaios clínicos e começaram a ser desenvolvidos anticorpos monoclonais para a artrite reumatoide e para outras patologias. As companhias farmacêuticas precisavam, então, de pessoas que dessem formação aos seus departamentos médicos e aos delegados de informação médica, de forma a que eles percebessem melhor estas condições e pudessem realizar eficazmente o seu trabalho.

Eu trabalhei algumas horas por semana como consultora na Roche e na Merck com contrato. Fazia a revisão dos produtos de marketing e dava formação interna às pessoas que trabalhavam nas farmacêuticas. Nessa altura, fi-lo, não tanto pelo desafio, mas pela remuneração, que era muito superior ao que se ganhava no hospital ou no ensino.

A partir de 2008, percebi que já não queria, nem precisava, deste trabalho e deixei de ser consultora. Contudo, ainda agora participo, com laboratórios farmacêuticos, em Advisory Boards. Aqui juntam-se cerca de dez “Key Opinion Leaders” de várias especialidades para dar a sua opinião pessoal e baseada em ensaios clínicos sobre vários assuntos da companhia farmacêutica. No fundo, a minha função é emitir uma opinião científica sobre um determinado fármaco, consoante o meu conhecimento.

Este tipo de trabalho tem inúmeras vantagens, dado que nos ensina muito sobre outras componentes que os médicos, normalmente, não aprofundam, nomeadamente: gestão, SWOT (strengths, weaknesses, opportunities e threats), visão comercial e peso económico.

 

F: Relativamente à investigação, de que forma é que o seu interesse tem vindo a evoluir?

HC: Essa questão é muito pertinente e a palavra que pretendo realmente destacar é “evolução”. Eu acho que todos evoluímos, sendo essa evolução numa determinada área. Tomando o meu exemplo pessoal, no início, a minha investigação estava muito ligada à reumatologia: fiz um doutoramento de saúde óssea em determinantes da proteção do osso, o que me levou a estudar outras áreas, como a epidemiologia e a análise e tratamento de dados. Já na agregação, ainda ligada ao campo da reumatologia, a área em que me foquei foi a farmacogenética da artrite reumatoide, o que me levou a aprender mais sobre genética e a trabalhar lado a lado com a equipa de laboratório. Além disso, trabalhei em investigação na área da reumatologia pediátrica, que é a minha subespecialidade.

O meu início foi, assim, muito focado na Reumatologia. No entanto, quando comecei a trabalhar com a Universidade Nova de Lisboa, comecei a alargar a minha área de investigação, focando-me nos idosos e na tecnologia digital, que envolvia, por exemplo, sensores e tecnologia adaptada a casas (smarthouse), comunicação à distância, literacia em saúde, saúde mental e saúde pública.

 

F: Em que projetos de investigação está envolvida, neste momento?

HC: Neste momento, no nosso grupo, temos 14 projetos em andamento:

  • Um na área da nutrição em idosos e reforço proteico -InDEPENDEnt.
  • A nível do uso de tecnologia para a literacia em saúde, temos um projeto que consiste no aconselhamento da dieta, exercício físico e técnicas de adesão à terapêutica em idosos, através de um tablet – DigiAdherence.
  • Um projeto de saúde mental para idosos em situações de luto – LEAVES.
  • O EpiDoC4, que se trata de um inquérito geral sobre a saúde e outros fatores, de modo a averiguar as suas relações.
  • Projetos sobre diabetes;
  • Três projetos relacionados com a pandemia COVID-19: um que tenta avaliar o papel da voz no diagnóstico da infeção por SARS-Cov2, outro que consiste na colocação de plataformas digitais no emprego para averiguar as lesões ligadas ao teletrabalho, e ainda um projeto com o SNS24 focado nas chamadas de idosos.

Em resumo, a minha área de investigação evoluiu para um panorama de meios digitais, inovação, doenças crónicas e idosos e com base numa equipa multidisciplinar.

 

F: Por último, que mensagem e conselhos deixaria aos atuais alunos de medicina?

HC: Vocês fizeram uma extraordinária escolha em optarem pelo curso de Medicina e serem médicos. Aprendam o máximo possível de clínica, porque é muito desafiante e obriga-vos a utilizar o conhecimento para decidir constantemente. Isto dá-vos uma abrangência muito grande e, se forem sólidos nas vossas áreas, têm o mundo à vossa frente. O termo chave é evolução: vão sempre aprendendo mais! Lembrem-se, também, que podem trabalhar em áreas diversas, em diferentes alturas.

O sucesso mede-se no trabalho de equipa: sozinhos nunca vão conseguir fazer nada. Somos sempre mais fortes quando temos equipas à nossa volta, não a trabalhar para nós, mas sim a trabalhar connosco, em conjunto.

É importante terem gozo no que fazem, não serem ressabiados nem se ressentirem. Escolham os caminhos que mais gostam e que vos fazem sentir melhor. Lembrem-se de que nem tudo é um “mar de rosas”, há momentos duros e decisões para tomar, mas não deixem que os “nãos” vos façam desistir, continuem a tentar e a melhorar.

Tenham o espírito aberto, contem uns com os outros, não tenham medo de pedir ajuda. Vejam sempre o melhor em cada situação e façam o que gostam. Quando surgir um problema, reconheçam-no e procurem soluções, não deixem que os problemas vos prendam – há sempre uma solução, mesmo que não seja a que pensavam.

Falem com pessoas de outros meios, de outras idades, vejam o que podem aprender e tentem sempre ser positivos na forma de olhar para as situações. Há sempre algo bom a retirar de uma situação má – aprendemos sempre alguma coisa e, se não resultar nesse momento, resultará mais tarde. Acreditem nisso e acreditem em vocês. Lutem pelas coisas, que hão de lá chegar.


A Revista FRONTAL agradece à Prof. Doutora Helena Canhão pela atenção prestada.

Esta entrevista foi realizada pelas colaboradoras da Revista FRONTAL: Ana Sofia Faria, Carolina Veloso, Inês Guerreiro, Sara Silveira Vanessa Tilsner, tendo sido editada pela Editora de Ciência e Investigação da Revista FRONTAL, Sara Silveira.

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