A História do Cromossoma que se Revoltou contra o Sistema.
Depois de ter sido descoberto que o cromossoma Y tem vindo a degenerar geneticamente desde a sua origem, foi posta em causa a sua longevidade. Irá o Y desaparecer do genoma humano?
[column size=”one-half”][list type=”arrow”][li]A sobrevivência do cromossoma Y tem vindo a ser posta em causa.[/li][li]Desde a sua origem sofreu um processo de especialização funcional.[/li][li]Possui estratégias próprias para a manutenção da sua diversidade.[/li][/list][/column][column size=”one-half” last=”true”]O genoma humano pode ser visto como um livro onde é contada a história da nossa evolução como espécie. Se olharmos com atenção para os nossos genes podemos encontrar pistas que nos aproximam das nossas origens. Uma das mais interessantes e inesperadas histórias da genética pode ser contada por um peculiar aglomerado de [/column]material genético ao qual se chamou de cromossoma Y. O Y pode ser visto como um símbolo revolucionário no genoma humano, uma vez que lutou contra várias conceções evolutivas ao rejeitar a recombinação sexual. Como consequência entrou num conflito com o seu par, o cromossoma X, e tem vindo desde a sua origem a degenerar geneticamente até ao ponto da sua sobrevivência ter sido posta em causa por muito investigadores. Tal como é escrito num artigo da autoria de Paulo Navarro-Costa do Instituto Gulbenkian de Ciência, «o Y traz o espírito do rock & roll ao nosso genoma» (Sex, rebellion and decadence: The scandalous evolutionary history of the human Y chromosome).
Os cromossomas X e Y são conhecidos como cromossomas sexuais pela razão óbvia de determinarem de uma forma quase perfeita o sexo do individuo. É conhecimento geral que todos os indivíduos recebem um cromossoma X da sua mãe, e caso herdem outro X do pai são do sexo feminino, mas se o cromossoma paterno transmitido for o Y o individuo é do sexo masculino. Isto é uma regra para a espécie humana com poucas exceções. Como os homens não têm um cromossoma X de reserva, estão muito mais suscetíveis a sofrer as consequências de genes defeituosos recessivos. Até agora isto não é novidade nenhuma. Contudo, não foi há muito tempo que o futuro do Y foi posto em causa após ter sido estipulado que, desde o seu aparecimento há cerca de 160 milhões de anos, o cromossoma já perdeu aproximadamente 97% dos seus genes iniciais (cerca de 1393 genes). Considera-se que, se o Y continuar a perder genes a este ritmo, nos próximos milhões de anos acabará mesmo por desaparecer. Mas se o cromossoma Y desaparecer, irá o sexo masculino desaparecer com ele? Surgirão novas maneiras de determinar o sexo? Este é um dilema que intriga a comunidade científica há anos e para o qual têm vindo a surgir cada vez mais respostas. Contudo, antes de esclarecer o futuro do Y, é necessário olhar para o seu passado.
[pullquote]Desde o seu aparecimento há cerca de 160 milhões de anos, o cromossoma já perdeu aproximadamente 97% dos seus genes iniciais [/pullquote]É bastante aceite na comunidade científica que os cromossomas X e Y derivaram de um par de cromossomas idênticos. Foi uma mutação num destes autossomas ancestrais que deu origem a um gene que determina o sexo do indivíduo. Foi assim que surgiu o proto-cromossoma Y e se fez a transição do hábito réptil de determinar o sexo a partir da temperatura de incubação para uma determinação do sexo que é genética. No ser humano e noutros mamíferos placentários o gene que decide o sexo do indivíduo é chamado de SRY e a sua presença determina a masculinização por influenciar o desenvolvimento testicular e a produção de testosterona.
Rapidamente após o seu aparecimento, o cromossoma Y começou a adquirir genes secundários que beneficiam o sexo masculino e outros que chegam mesmo a ser prejudiciais para o sexo feminino. Não demorou muito tempo até se desenvolver um antagonismo entre o Y e o X e, logo desde início, a recombinação genética entre os dois era um problema: um indivíduo de um determinado sexo poderia ter em falta genes necessários para o seu papel sexual ou até adquirir genes que seriam desfavoráveis. Foi então necessário suprimir a recombinação meiótica de forma que cada um dos cromossomas sexuais pudesse seguir a sua trajetória evolutiva: estabilidade no caso do X e especialização funcional no Y. Tanto a própria acumulação de genes masculinos, como grandes rearranjos estruturais afetaram criticamente o emparelhamento meiótico.
Enquanto o X reteve a maior parte do material genético do autossoma original, a especialização do Y envolveu a perda rápida do seu conteúdo primitivo e a manutenção de um grande conteúdo de pseudogenes. Esta deterioração resulta de uma grande acumulação de mutações aliada a uma menor capacidade de reparação, uma vez que o Y não tem um par homólogo com quem possa trocar material genético. Este último facto resultou numa ineficiente seleção natural com uma maior predisposição a acumular ADN não codificante. O mesmo não aconteceu ao X pois este continuou a sofrer recombinação meiótica com outro X na linhagem germinativa feminina.
[pullquote align=”right”]É possível que, numa fase inicial, o Y se tenha livrado rapidamente dos genes que o tornavam “fraco”, mantendo apenas os genes essenciais para a sua sobrevivência. [/pullquote]Com isto, qual será mesmo o futuro do cromossoma Y? Estudos recentes com macacos Rhezus verificaram que apenas se perdeu um gene no Y desde que a espécie humana terá divergido de um ancestral comum há cerca de 25 milhões de anos atrás. O que confirma algo que se já tinha vindo a especular: o decaimento genético do Y afinal não seguiu uma progressão linear. Terá o Y evoluído por fases? É possível que, numa fase inicial, o Y se tenha livrado rapidamente dos genes que o tornavam “fraco”, mantendo apenas os genes essenciais para a sua sobrevivência. Com estas novas respostas surge uma nova questão: que mecanismos evolutivos é que se desenvolveram para conseguir evitar o drástico destino que os cientistas haviam previsto para este cromossoma?
Uma forte hipótese relaciona-se com a descoberta de que, mesmo sem um parceiro para recombinação, o Y arranjou maneira de garantir a manutenção da diversidade nos seus segmentos codificantes através da recombinação intracromossómica. Como este cromossoma é de certa forma o único que se encontra sozinho no genoma humano, em vez de ter cópias dos seus genes num outro cromossoma homólogo, tem-las em si próprio. Assim, mesmo ocorrendo erros genéticos, ele consegue utilizar esses genes duplicados como base para se corrigir a si próprio.
Apesar de tudo, não se pode dizer que o Y esteja estabilizado evolutivamente e esta discussão continua bastante polémica no meio científico. Todavia, enquanto o Y continuar a ter um papel essencial na masculinização e nas funções de reprodução masculina e enquanto a sua taxa de rearranjos seletivamente positivos e neutros se mantiver elevada, será difícil de imaginar um futuro em que este cromossoma não faça parte do cariótipo humano.