Em Janeiro e Março deste ano foram publicados dois artigos com contribuições inovadoras para a área da transplantação, com abordagens tão diferentes entre si, em termos de conceptualização, que se pode considerar que estão em extremos opostos. O artigo de Janeiro, publicado na revista Cell, mostra como uma equipa de investigadores, maioritariamente associados ao Instituto Salk, mas também a Universidades Espanholas, cria pela primeira vez um organismo híbrido com material genético de humanos e de outro animal, nomeadamente porcos. O artigo de Março, publicado na revista Biomaterials, diz respeito a uma metodologia inovadora, desenvolvida por investigadores dos Estados Unidos da América, que permitiu o desenvolvimento de cardiomiócitos humanos em folhas de espinafre descelularizadas.
A FRONTAL vai então explorar um pouco os trabalhos desenvolvidos por estes grupos de cientistas.
Vai uma bifana?
Um conceito importante no trabalho desenvolvido pela equipa de Jun Wu é o quimerismo. As quimeras, criaturas mitológicas gregas caracterizadas por serem um leão com uma segunda cabeça de bode e uma cobra como cauda são, na Biologia, organismos que ,além do seu,, têm material genético de outro organismo. As experiências desenvolvidas por estes cientistas envolveram a tentativa da criação de três quimeras, duas das quais com sucesso, entre ratos, ratinhos, porcos e humanos; foram ainda realizadas outras experiências no decorrer do trabalho com outras espécies, nomeadamente vacas. mas, para não exceder o limite de palavras do artigo maior conforto do leitor, não irão ser. referidas.
Para compreender melhor as particularidades de quimeras de espécies diferentes, a equipa de cientistas começou por fazer uma quimera ratinho-rato: injectou células estaminais pluripotentes de rato para blastocistos de ratinhos in vitro, tendo estes sido posteriormente transferidos para o útero materno de ratinhos. Observou-se que esses ratinhos apresentavam cerca de 20% de quimerismo com ratos, com contribuições diferentes para diferentes órgãos. Através da utilização do sistema CRISPR (para mais informações, ver este artigo – na prática é um mecanismo que permite uma edição fácil, precisa e barata de material genético), fez-se o knock-out de diferentes genes de ratinho importantes para o desenvolvimento de determinados órgãos (coração, pâncreas e olhos, entre outros) e observou-se que os genes de rato compensavam os genes de ratinho aos quais tinha sido feito knock-out. Uma observação interessante foi a de que a vesícula biliar do ratinho tinha material genético de ambas as espécies, o que é curioso dado que os ratos, ao contrário dos ratinhos, não terem vesícula biliar.
A segunda experiência foi a tentativa da criação de quimeras porco-rato; a metodologia utilizada foi semelhante à da primeira experiência, mas, ao contrário desta, não foram criadas quimeras, já que os organismos resultantes não apresentavam material genético de ratinho. Atribui-se a ausência de quimerismos à distância filogenética entre estas duas espécies.
Por fim, a última quimera criada foi a de um porco-humano. Criaram-se embriões de porco através de métodos in vivo e por partenogénese; depois de estarem na fase de blastocisto, foram injectadas células humanas estaminais pluripotentes (reprogramadas de fibroblastos da pele) que poderiam ser posteriormente identificadas por técnicas de fluorescência; e, por fim, foram introduzidos em úteros de porcos para serem colhidos aos dias 21-28. Aqui os resultados foram variados, já que nem todos os embriões apresentavam células humanas detectáveis por imunofluorescência; devido a uma presença moderada de falsos positivos nas técnicas de fluorescência, os embriões de que se suspeitava terem células humanas foram seccionados e foi confirmada e a presença destas por técnicas mais específicas, nomeadamente através de anticorpos e PCR genómico. Embora com uma menor taxa de quimerismo do que os híbridos ratinho-rato, foi criada a primeira quimera humana com outra espécie.
One love, one life, one spinach
Uma dificuldade na criação de órgãos é a ausência de uma rede de vasos adequada; o que estes cientistas se lembraram de fazer, foi, muito sinteticamente ( no vídeo abaixo os próprios autores o explicam), aproveitar a vascularização inata de tecidos vegetais, nomeadamente folhas de espinafres, induzir a sua descelularização e, posteriormente, re-celularizar o esqueleto desses tecidos com células endoteliais e cardiomiócitos, tendo-se verificado que estes últimos mantinham a capacidade de contracção. O artigo levanta ainda a hipótese, utilizando a mesma lógica, de substituir tecidos menos vascularizados, como o osso, por tecidos vegetais menos vascularizados, nomeadamente madeira.
Ambos os artigos abordam uma necessidade crescente: cerca de 22 pessoas morrem por dia só nos EUA em lista de espera de órgãos para transplante.. Os trabalhos aqui explorados procuram uma solução para este problema, sendo que enfrentam dificuldades técnicas e eventualmente éticas. Será que estas medidas serão rotineiras no futuro? Quem sabe… Para prevenir, será melhor degustar enquanto se pode estes ingredientes: poderão ficar mais caros daqui a uns tempos…