Como filosofar com um estetoscópio?

Notas sobre meritocracia e aceitação no mundo da Saúde

As opiniões aqui expressas representam única e exclusivamente o ponto de vista do autor e não da Revista FRONTAL.


“O que importa que saibam que eu tenho razão? Eu tenho demasiada razão. E hoje quem ri melhor também ri por último.”

Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos

Vou começar por partilhar um pouco da minha história convosco. É absolutamente banal, penso, até um pouco privilegiada, mas será importante para contextualizar as minhas opiniões.

Venho de uma cidade na periferia de Lisboa chamada Cacém. O meu pai era ferroviário e a minha mãe, professora do ensino secundário. Ela foi a primeira pessoa da família direta a frequentar o Ensino Superior, e com a sorte do meu avô se sacrificar um pouco para poder apoiá-la nos estudos, na altura em que se introduziram as primeiras propinas. Aliás, viviam todos numa casa clandestina na Brandoa, aquele bairro da Amadora para onde muitos alentejanos foram morar para escapar à miséria e desertificação do interior que ocorreu a partir da década de 1960.

Nunca tive problemas financeiros em casa. Embora a condição laboral da minha mãe tenha sido precária por quase vinte anos da minha vida, como quem tem familiares ou amigos professores saberá, nunca – como diz a boa gente – “me faltou nada”. Até certo ponto, sempre tive o que quis.

Na escola, porém, contactei com colegas e amigos das mais variadas realidades: aqueles que não tinham dinheiro para comprar os livros e cujos pais não conseguiam preencher os papéis da Ação Social Escolar sem muita ajuda por não conseguirem falar português nem inglês, aqueles cuja única refeição quente diária era o prato miserável de almoço da cantina escolar subcontratada a uma firma privada qualquer, e assim sucessivamente. Poderá parecer que estou a pintar um quadro patético de sentimentalidade baratucha, mas não é verdade – e crises como a pandemia vieram pôr este tipo de situações totalmente a nu (1) – que corroboram o que estou a dizer. E, provavelmente, para muitos outros de vós, isto talvez seja também só uma imagem do quotidiano das vossas vidas na escola.

Para dizer a verdade, pois, alguns dos amigos que fiz no ensino básico e secundário não tiveram a oportunidade de ingressar no Ensino Superior: ou por não verem a utilidade em estudar algo que não seja uma garantia de um emprego melhor e que faça o investimento de pelo menos três anos de propina a 697€ anuais valer a pena (2) , mais custos de transportes (3) , livros, alimentação, e assim sucessivamente; ou por pura e simplesmente darem maior valor a um emprego que lhes permita ter alguma estabilidade financeira própria e ajudar a própria família com mais um rendimento em casa.

Talvez possível seja que sempre tenha tido, ora, o privilégio de ter um pai e uma mãe, e avós, que me apoiaram na perseguição do tal “bichinho” da Medicina (mal eu sabia o que me esperava…) e do sonho do Ensino Superior. E, embora o meu pai já tenha partido, a minha mãe também se continua a sacrificar para que eu possa vir em Erasmus, para Itália, de onde vos escrevo estas palavras. Uma casa, estabilidade financeira, alguma tranquilidade pessoal e familiar. Penso que seja para nós, estudantes de Medicina – e também de Nutrição -, algo relativamente banal, que não merece ser ouvido.

A certeza, porém, é que a banalidade por trás desta história esconde uma conquista enormíssima da nossa sociedade livre: a democratização do Ensino Superior. E ofuscam-na, porque ofuscam as histórias mais desafortunadas de quem não percorreu este mesmo caminho, ou de quem teve de trabalhar muito mais para o alcançar.

Embora governos após Abril tenham existido que tenham querido ferir de morte esta instituição, o facto do Ensino Superior se ter aberto em copas a toda uma nova classe social na geração dos meus pais revela não só um sintoma do enriquecimento absoluto e da melhoria absoluta das condições materiais de vida após a queda do fascismo e o fim da sanguinária Guerra Colonial em Portugal, como também o sucesso de uma das poucas conquistas de Abril que, apesar de tudo, permanece segura de ameaças de extinção ou pauperização.

E, contudo, existem a meu ver dois grandes problemas, duas grandes dores de crescimento, que o Ensino Superior, e mais concretamente o ensino médico em Portugal, apresenta e continua a ignorar na esperança de que passem:

  • a tensão inquieta que surge com esta democratização, na qual a promessa de uma meritocracia e da entrada apenas dos melhores alunos conforme médias internas e de exames nacionais tende a favorecer os alunos com mais recursos socioeconómicos, na falácia de que estes parâmetros de avaliação sejam puramente correlacionados com um putativo intelecto puro que existe num vácuo e não com toda outra miríade de fatores associados;
  • a visão em túnel de docentes na faculdade e nos hospitais, que, antiquados, ainda não admitem que o estudante de medicina vá além do estereótipo de etnia, sexo, expressão pessoal, classe, etc. ao qual toda a sua vida foram habituados, ou, pior, que ainda acham que a Medicina é uma profissão de homens, embora nas últimas décadas se tenham formado mais mulheres que homens todos os anos nesta profissão;

Restringir-me-ei apenas a estas duas, para não mencionar as cada vez maiores dificuldades que o internato médico apresenta, que fazem parelha com as do Serviço Nacional de Saúde e, potencialmente, com o problema fundamental da governação de Portugal durante a maior parte dos anos em Liberdade.


A primeira dor – cefaleia de tensão de classe

Se a história que contei nos parece bastante típica, nem todos a partilham: não podemos escolher onde nascemos, a nossa consciência social é moldada pelo meio em que nos desenvolvemos, o nosso cérebro é uma floresta onde toda a gente com que nos relacionamos deixa uma indelével marca da sua passagem.

Será óbvio, pois, que outros não tenham tido estes contactos, e felizmente tenham tido um crescimento mais tranquilo e lontano dessas situações agrestes. Não terão certamente culpa de assim ter sido, a vida apenas é atualmente assim, e não quero com isto julgar ninguém pelo seu estatuto de classe, condições socioeconómicas ou circunstâncias de desenvolvimento. No fundo, o que nos une como boa gente será a empatia, mais que a simpatia paternalista.

Com isto, quero dizer: as pessoas que andam nos colégios privados geralmente não têm culpa de lá andarem. São os pais que podem oferecer aos filhos um nível tipicamente mais diferenciado de educação, com turmas menores, docentes tipicamente mais motivados ou pelo menos mais atentos às necessidades e desejos dos alunos, um acompanhamento mais diferenciado e individualizado do estudo e todo um conjunto de ferramentas e infraestruturas educativas orientadas para o sucesso escolar e académico. O valor atrativo destas instituições de ensino contrasta com a escola pública, onde turmas são uma lotaria, onde professores repletos de turmas e horários apenas nominalmente de 35 horas e que devem conjugar alunos com necessidades educativas especiais (e muitas vezes fora das suas próprias competências) com o resto da classe, tentam puxar um pouco ocasionalmente pelos melhores alunos, quando ainda têm a visão da paixão pedagógica dentro de si.

O trabalho do professor na escola pública é diferente do trabalho do professor na escola privada por vários motivos, mas talvez o mais importante seja mesmo a exploração laboral que é metida às costas do professor e que hoje descamba em manifestações regulares, protestos convocados pelos principais sindicatos – FENPROF e STOP – contra o estado de degradação constante da escola pública.

Tive a sorte de ter professoras extraordinárias no ensino secundário que me motivaram a querer sempre um pouco mais, a estudar sempre para procurar a melhor nota possível num exame nacional ou num teste global (4) , e que no fim do 12.º ano se puderam orgulhar de ver três dos seus alunos ingressar no curso de Medicina que desejavam. Nem todos os casos são assim, espécie de unicórnio da escola pública suburbana com rankings geralmente maus, dos piores do concelho.

Quando, em contrapartida, se observam os rankings das melhores escolas secundárias por média de exames nacionais, sobressaem sempre as escolas privadas – penso que já esteja bem explícito o porquê, e faz todo o sentido que assim seja, tendo em conta que os próprios clientes financiam o seu funcionamento, exigem competitividade. Do ponto de vista da economia política, compreende-se o seu sucesso como modelo negocial numa economia liberal e o sucesso dos seus alumni, um pouco à semelhança dos Old Etonians (5) no Reino Unido.

Este sistema de coexistência dual, cuja separação é um pouco comprometida entre cheques-escola e, algures, bolsas de mérito, gera contudo uma certa inequidade (6) na altura da candidatura ao Ensino Superior.

Não falaremos aqui do fantasma das leaks de exames nacionais, de notas inflacionadas ou de outro tipo de casos que, embora deixem uma nódoa na reputação das instituições privadas, não servem para negar o trabalho excecional que é feito com os alunos na altura da sua preparação para as provas de acesso ao Ensino Superior.

De facto, existem vários fatores, enumerados acima, que contribuem para esta liderança diferenciada do ensino privado na candidatura à universidade. Não impede que ocasionalmente existam escolas públicas que cheguem aos mesmos patamares, mas geralmente são escolas de zonas com um bom estatuto socioeconómico, nas quais os encarregados de educação podem, caso o apoio dado na escola não seja suficiente, contratar explicadores verdadeiramente qualificados (7) para dar apoio aos educandos.

Será, pois, que podemos falar num acesso ao Ensino Superior verdadeiramente meritocrático quando estas diferenças de base constituem fatores predisponentes tão importantes na probabilidade de um estudante aceder ou não ao curso a que deseja?

Colocamos isto sempre na base igual, também ela imaginária, de um estudante de uma cidade com universidade, ou de um estudante cuja família ou estrutura de apoio possa dar-lhe a segurança financeira suficiente para alugar um quarto, pagar alimentação, passes, livros, utilidades, enfim, todo o conjunto de despesas que compreende a vida da pessoa por si mesma. Como vimos acima, nem sempre isto se verifica. Há também quem trabalhe para se sustentar enquanto estuda: o trabalhador-estudante goza de alguns privilégios, claro, mas muitas vezes manifestamente insuficientes para proteger o seu estatuto de alguém que tenta conjugar duas realidades separadas, por vezes até com a própria vida familiar.

Quando passamos a incluir neste já complexo sistema todas as condicionantes socioeconómicas, isto é, de classe, que determinam, pois, até a própria escolha de ir ou não para a faculdade, de ir ou não para um determinado curso, para uma determinada cidade, etc. levanta-se outra questão, esta mais problemática, que não queremos bem encarar, mas a que devemos responder com alguma frontalidade:

Será que o ensino superior em Portugal é mesmo democrático?

Simplificando e sublimando a realidade dos ideais expressos no Artigo 76º da Constituição (8): será que qualquer jovem em Portugal que queira ir para a faculdade o pode fazer?

Não estamos a propor, pelo menos por enquanto, a anarquia total no acesso ao ensino superior, mas propomos, talvez como experiência de pensamento para terminar esta reflexão desta tensão de classe que se vive, deixando o mais importante para a vossa conclusão autónoma, o seguinte:

  • Será que, ao ter pessoas vindas preferencialmente de meios sociais privilegiados como a maioria em determinados cursos tidos como mais prestigiados pela sociedade, não estaremos a garantir a reprodução social desse mesmo privilégio e consequente desligamento da realidade social diferente noutros meios?

A resposta parece-nos óbvia. As ilações a retirar daí é que poderão ficar a vosso encargo, deixando nós aqui algumas perguntas à guisa de guia de estudo:

  • Que consequências terá a formação de classes profissionais maioritária e tendencialmente desligadas das experiências reais do resto da população?
  • E no caso da Medicina em concreto, e mais especificamente da Saúde Pública, por exemplo, qual será o grande problema de não se ouvir a voz do periférico, do divergente, do discriminado ou até do irracionalmente odiado?
  • E no caso ainda mais particular do ensino médico, que tipo de discriminação, de ódio, de perspetiva bafienta, misógina, homotransfóbica e tudo o resto, poderá estar a ser perpetuada através de uma classe docente que ressinta essa mesma dita democratização?
  • E que problemas poderá criar esta ilusão de democratização do ensino superior quando este se vir ameaçado por crises financeiras, políticas económicas austeras-conservadoras e visões sociais fascizantes?

A segunda dor – síndrome de visão em túnel cárpico

Falemos agora de algo mais próximo de nós, mais concreto. É um problema que é inextricável do problema prévio, precisamente porque nem a ilusão da democratização do ensino superior bastará para satisfazer os egos frágeis de algumas almas que, como o Anjo da História benjaminiano, ainda fitam as ruínas do passado com o vento que sopra do futuro a arrastá-las para diante e pelas costas.

A ars e a praxis médicas, cuja unidade forma a totalidade complexa da Medicina, estarão sempre num estado de permanente renovação e sublimação. É essa a base do lifelong learning para o qual somos teoricamente capacitados no ensino médico de qualidade.

O problema é quando o lifelong learning é aplicado ao ramo estreitíssimo, puramente hipotético, do conhecimento científico puro: conhecer novos fármacos, novas formas farmacêuticas, novos critérios de diagnóstico, novos meios complementares de diagnóstico, novas entidades nosológicas e agentes patogénicos, novas classificações patológicas, todas putativamente suspensas no vácuo irreal da pura meta-análise, da pura revisão sistemática, da pura revisão Cochrane.

Mas se mesmo os artigos originais de investigação apresentam sempre a discriminação dos conflitos de interesses potenciais dos autores, sobre a nudez forte da verdade recairá sempre o manto diáfano do conhecimento científico.

Expliquemo-nos: a medicina baseada na evidência (MBE) assenta em três pilares principais:

  • o primeiro, a vertente associada ao uso da melhor e mais atualizada evidência científica, é aquele que exprime a crescente aproximação da soma de todo o conhecimento humano à realidade dos factos, a continuada caça às malditas palavras “idiopático”, “criptogénico”, “primário”;
  • o segundo, que por defeito nos faltará a todos à entrada para o Internato de Formação Geral, é a vertente da experiência clínica do clínico, do grupo de trabalho, do serviço hospitalar: mais fácil será para um cirurgião utilizar uma técnica com a qual está familiarizado, que arriscar uma nova técnica para uma melhoria marginal de resultados (esta potencialmente expressa por algumas métricas de NNT e NNH), sem estar totalmente seguro da sua capacidade de a executar com mestria e zelo;
  • o terceiro, por fim, mas não menos importante, será a vertente dos desejos, necessidades e vontades do paciente; a Medicina não é um ato imposto sobre uma pessoa desesperada e disposta a tudo na esmagadora maioria dos casos, mas sim uma conversa, um diálogo, uma entrevista clínica constante que requer uma relação de confiança e de respeito mútuo pela volição e dignidade do outro, conforme aos valores hipocráticos da ars.

Ora, dos pilares da MBE surgirá como simples corolário:

A melhor prática médica, aquela mais responsável, mais zelosa pela segurança, saúde e bem-estar do meu paciente, é aquela que encara a doença como a verdade do paciente naquele momento, independentemente do juízo que possa fazer à parte da clínica.

Perante o paciente com algumas queixas álgicas inespecíficas, o bom médico não se limita a prescrever um analgésico e a mandar o doente embora; pergunta-se a si mesmo: “Mas haverá algo que este paciente me quererá dizer com esta queixa? Terá outros problemas? Qual o contexto psicossocial desta dor?”. Nem todas as lombalgias são hérnias discais! (9) Embora numas mais do que noutras, todas as especialidades devem um pouco da sua prática a este princípio.

Enfim, o exemplo da MBE também deve ser transposto para o ensino médico, e até certo ponto é um bom ponto de partida para o meu argumento, sobre o ambiente na Medicina e no mundo académico em geral.

Se outrora houvesse um modelo de ensino expositivo-teórico, mais vertical e paternalista; atualmente o ensino médico (e o ensino no geral) atravessa um período de mudança que promete acelerar rumo a um ensino mais dialético e horizontal nos seus moldes, com aprendizagem independente e maior foco numa vertente prática e instrumental (10). E estas exigências requerem uma abordagem mais (passe o cliché) holística aos estudantes, encarando-os não como uma massa bruta que se deve forçosamente moldar, mas como um processo educativo em curso, com capacidades de autodesenvolvimento e auto-aprendizagem, vontades, desejos e exigências próprias ao sistema de ensino.

Respeito, talvez seja esta a palavra que pauta o futuro do ensino médico.

Mas como pode haver respeito quando ainda existe quem ache que, por vetusto posto ou tamanho contributo, é licenciado para emitir as suas opiniões sem qualquer preocupação sobre como poderão recair sobre os ouvidos de quem é visado? Trocando por miúdos, como pode haver respeito sem que este seja mútuo? Sem que este não parta apenas em sentido hierarquicamente ascendente? Subir é sempre complicado, mas a descer todos os santos ajudam!

É um tique de uma certa franja da extrema-direita importar certos discursos americanizados para a esfera do nosso país, com um legado e uma carga histórica profundamente diferente da dos States. Se lá tais discursos são apenas a exploração populista de tensões que existem entre pequeno-burgueses pouco aprendidos, arruinados pela globalização da economia de mercado, e o mundo novo que sempre existiu, mas que aproveita a massificação das tecnologias de informação para finalmente se fazer sentir e ouvir; cá, onde a nossa pequeno-burguesia já nasceu arruinada e a nossa aristocracia embandeira em arco com cada crise que possa servir de exploração sociopolítica, exigir-se-ia outro nível de literacia para se compreender que o “wokismo” não passa de um bicho-papão inventado pelos Steve Bannon e Tucker Carlson desta vida para enganar e assustar, que o homem branco não está em vias de extinção, e que ninguém vai obrigar ninguém a usar saias, ou neopronomes, ou a amar alguém por quem não se sente romanticamente atraído. Em suma, é a ignorância voluntária, o retiro voluntário de todo um mundo de vivências e experiências valiosíssimas, que contêm em si a crítica das injustiças e a voz dos oprimidos e das oprimidas da sociedade atual, para ao invés disso se murmurar que existe uma cabala contra quem atualmente está no poder, que a extrema-esquerda anda por todas as faculdades a endoutrinar estudantes, e que antigamente é que era tudo bom. (E nós sabemos a que antigamente se refere esta classe!)

Perdoem-me por falar aqui de política, até porque quem me conhece sabe que eu geralmente gosto mais de recorrer ao diálogo que ao monólogo a que uma coluna de opinião me restringe. Mas há uma coisa que não tolero, mais até que a intolerância: a falsa tolerância. Aquela “tolerância” popperiana do “o que eles fazem lá nos quartos deles não é nada comigo”, aquela tolerância que pessoas como Trump sempre apregoaram acerca de casais do mesmo sexo. (11) Não chega ser-se “tolerante” assim, porque não há empatia por trás de um sentimento desses: é a inação pura. Há que se aceitar. Há que ter boa educação.

Penso que haja aqui uma confusão de ideias sobre a aceitação. Aceitar não obriga alguém a ser o que não é, não obriga alguém a imiscuir-se noutro estilo de vida. Mas obriga ao diálogo, pressupõe a empatia, necessita que a pessoa mergulhe no seu âmago e se conheça, seja segura da sua identidade, tenha compaixão e, mesmo que não se reveja ou não concorde com algo, compreenda a necessidade da auto-expressão e da liberdade do Outro ser como é. Não se está a pedir para ir além de toda a moral, até porque cada um terá a sua. Não se pede nada senão o compromisso que se faz quando se aceita a sua condição como cidadão do Estado, aquele Estado que segue a lógica que desde 1789 se firma na “igualdade de todos perante a Lei”.

Podíamos ir mais além e indagar sobre o que é, de facto, esta igualdade, mas fazê-lo seria indagar sobre a sociedade do porvir, e aí, pois, entrar na Política séria.

Aceitar não é curvar-se perante alguém, não é suplicar de joelhos pelos males que se fez. É ter-se boa educação. É ver-se o Outro como se vê a si mesmo. E, a propósito,  Miguel Esteves Cardoso, sobre o qual todos os seus leitores nutrem uma opinião diferente, escrevia assim sobre a “boa educação” numa crónica no Público em 2021:

“A boa educação não é seguir um conjunto de regras ao qual o acesso é forçosamente desigual numa sociedade desigual: é apenas fazer as coisas de maneira a que as outras pessoas se sintam à vontade. Não é sentirem-se bem. Isso é impossível. É à vontade: ou tão à-vontade como é possível estar-se em sociedade.” (12)

Penso que sejam estes os dois pontos principais que quis salientar com esta peça: um, mais prático, sobre a meritocracia, e talvez o que se possa fazer para a aperfeiçoar, ou aperfeiçoar o Ensino Superior no geral em Portugal. Outro, mais teórico, mas igualmente importante, sobre a aceitação. Talvez possa despedir-me com mais questões:

  • De que forma poderá estar ligada a composição tradicional dos cursos de Medicina em Portugal, mais predominantemente masculina e aristocrática até bem mais tarde do que no resto do Mundo, e a prevalência de certo tipo de talking-points que vão para além da aceitação para a imposição exógena de certos códigos morais? (vis-à-vis o aborto, a eutanásia, a identidade de género, ou a própria contraceção em casos mais radicais)
  • De que forma é que a composição da classe médica em Portugal poderá afetar a prática clínica, na medida em que se possa constituir como verdadeiramente baseada na evidência e no respeito pela dignidade, desejos e necessidades dos pacientes? E o ensino médico, com uma crescente diversidade na suposta democratização do mesmo?
  • De que forma é que se pode, em boa consciência, praticar a Medicina responsavelmente, se não se colocam de parte certos e determinados aspetos intimamente ligados à nossa experiência pessoal para nos ligarmos à experiência pessoal do paciente, que pode ser, e cada vez mais é, totalmente diversa da nossa? 

Mas se todo o mundo é composto de mudança, troquemos-lhe as voltas, que ‘inda o dia é uma criança”.

José Mário Branco, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Notas e referências

(1) – Para o contexto pandémico aqui evidenciado, consultar, p.ex.: Catarina Reis e Paula Sofia Luz, Refeições nas escolas. Pedidos de ajuda aumentam todos os dias, in Diário de Notícias, edição online, 27 de abril de 2020, disponível online em: dn.pt/pais/refeicoes-nas-escolas-pedidos-de-ajuda-aumentam-todos-os-dias-12116603.html (consultado a 7 de março de 2023).

(2) – É de relembrar que quando ingressei no Ensino Superior, no longínquo ano de 2018, a propina anual estava fixa a um valor de 1,3x o Salário Mínimo Nacional (cf. Lei n.º 37/2003, de 22/08), que, relembre-se, perfazia assim um valor de 1063€/ano.

(3) – E aqui de novo entra o passe Navegante Metropolitano como fonte de grande desconto quando comparado com assinaturas mensais da CP e Navegante Lisboa como seria feito para um estudante não residente no concelho de Lisboa pré-2019.

(4) – E porque a gratidão também tem nome, as professoras que mais me marcaram terão mesmo sido a Professora Helena Freitas, de Física e Química, e a Professora Vanda Vaz, de Matemática, na Escola Secundária de Ferreira Dias, em Agualva.

(5) – Ou seja, as pessoas que frequentaram o Eton College, prestigiado liceu privado britânico.

(6) – cf. o inglês “inequity”, exprimindo desigualdade de oportunidades, neste contexto.

(7) –  A diferença entre, digamos, um explicador com uma educação formal em Matemática, e eu: por melhor nota que possa ter tido a Matemática no secundário, existirão conceitos pedagógicos e objetivos didáticos que se me escaparão.

(8) –  Até porque, a meu ver, embora em teoria seja o documento de base do poder governativo e estatal em Portugal, na prática acaba por ser raramente o fundamento do progresso social, manietado por toda uma escola de pensamento que não sofreu a ruptura de Abril.

(9) – Mas será sempre importante saber qual a semiologia sugestiva, será sempre importante orientar os meios complementares de diagnóstico consoante as nossas hipóteses diagnósticas, como é óbvio.

(10) – Escrevi, em novembro, um pequeno artigo para a revista Esquerda Saúde em que precisamente abordei algumas das características dos diversos sistemas de ensino em Medicina. Deixo aqui o link para consulta de quem tiver interesse: https://www.esquerda.net/content/ensino-medico-da-academia-enfermaria/83883.

(11) –  Eli Stokols, Trump says he’s ‘fine’ with legalization of same-sex marriage, 13 de novembro de 2016, Politico.

(12) – Miguel Esteves Cardoso, É melhor fazer caso, 1 de junho de 2021, Jornal Público.


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